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8 de janeiro de 2016

O passado intransitivo







Defender o nosso patrimônio histórico
e artístico é alfabetização.

––  Mário de Andrade (1893-1945).  
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O Brasil e a maioria de suas cidades cresceram em torno de igrejas católicas – tanto que, durante séculos, ser brasileiro era quase um sinônimo de ser católico. Neste terceiro Milênio, o Brasil continua sendo o maior país católico do mundo, mesmo que as estatísticas demonstrem uma crescente redução no número de fiéis ao longo das últimas décadas: no primeiro censo aqui realizado, em 1872, a religião católica era seguida por 99,7% da população; no último censo do IBGE, divulgado em 2012, há 123 milhões de católicos no Brasil, o que representa 64,6% da população.

Muito além das questões de fé ou do significado religioso, as antigas igrejas católicas são importantes marcos da construção do patrimônio histórico e cultural do Brasil, mas a maior parte delas não sobreviveu até nossos dias. Da maioria, não restaram sequer ruínas, mas em alguns casos as igrejas que já não existem tiveram sua imagem preservada em belos registros feitos pelos pioneiros da fotografia no século 19 e no começo do século 20. Estas imagens, relíquias produzidas em técnicas diversas, antes restritas apenas para um pequeno grupo de pesquisadores, estão agora disponíveis para acesso público pela Internet através do portal Brasiliana Fotográfica.

Resultado de uma parceria entre a Fundação Biblioteca Nacional e o Instituto Moreira Salles (IMS), o Brasiliana Fotográfica publicou nesta primeira semana de 2016 uma galeria de imagens das antigas igrejas nos primeiros tempos da fotografia. No total, 184 imagens já foram publicadas pelo portal em alta resolução – todas elas provenientes dos acervos das valiosas e raríssimas coleções fotográficas que estão atualmente preservadas e sob a guarda da Biblioteca Nacional e do IMS.




 




Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
no alto da página, a Igreja Matriz do Santíssimo
Sacramento, em Jequitibá, Minas Gerais,
fotografada em 1868 por Augusto Riedel.
Acima, a Igreja Catholica da Rua da
Telheira, em Joinville, Santa Catarina, em
fotografia de 1866 de Louis Niemeyer.

Também acima e abaixo, fotografias datadas
de 1865 de Georges Leuzinger na região do
Centro do Rio de Janeiro, a Igreja de Santa Luzia
(antes da formação dos aterros que afastaram o
mar) e a Rua Direita com a Capela Imperial










Alguns dos primeiros e mais importantes nomes da fotografia no Brasil estão na galeria de imagens raras e preciosas apresentada pela série da Brasiliana Fotográfica, com destaque para Marc Ferrez (1843-1923), Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), Augusto Malta (1864-1957) e Guilherme Antônio dos Santos (1871-1966), entre vários outros. Mas não são apenas os primeiros fotógrafos brasileiros que tiveram obras selecionadas. Na galeria do portal também estão pioneiros de outros países que instalaram seus ateliês de ofício de fotografia e serviços gráficos no Brasil ou que viajaram pelas regiões do litoral e do interior do país registrando em imagens fotográficas os cenários, os povos e os monumentos que encontraram.



Ilustres e desconhecidos



Entre os estrangeiros que registraram em fotografias as antigas igrejas do Brasil, incluídos na série da Brasiliana Fotográfica, estão os alemães Revert Henrique Klumb (1830-1886), Augusto Riedel (1836-1877) e George Huebner (1862-1935); os franceses Jean-Victor Frond (1821-1881) e Theophile Auguste Stahl (1824-1877); os suíços George Leuzinger (1813-1892) e Guilherme Gaensly (1843-1928); o inglês Benjamin Robert Mulock (1829-1863), o português Felipe Augusto Fidanza (1847-1903) e outros pioneiros célebres. Há também, no acervo publicado pelo portal, diversas fotografias muito bem preservadas mas que têm autoria anônima, porque a identificação do fotógrafo se perdeu com o tempo.








 




Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
a partir do alto, Igreja Catedral em Belém
do Pará, em fotografia de 1875 de
Felipe Augusto Fidanza; Igreja da
Piedade em Salvador, Bahia, em 1865,
fotografada por Camillo Vedani; e Igreja
de Madalena no Recife, Pernambuco, em
fotografia de 1880 de Moritz Lamberg.
Abaixo, relíquias do Aleijadinho registradas
em 1880 por Marc Ferrez nas antigas
cidades do Barroco em Minas Gerais:
a Igreja de São Francisco de Assis em
Ouro Preto e o Santuário do Senhor Bom
Jesus de Matosinhos com as capelas dos
Passos da Paixão de Cristo em Congonhas









 

Além das fotografias de autoria anônima, há também aquelas atribuídas a fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos – como Schleier J., que atuou em Salvador, Bahia, na década de 1870; Bernardo Scheidemantel, que atuou na região de Blumenau, Santa Catarina, na década de 1860; Louis Niemeyer, que atuou na região de Joinville, também em Santa Catarina na década de 1860; Camillo Vedani, que atuou no Rio de Janeiro e em Salvador, nas décadas de 1850 e 1860; e Reginald Gorham, identificado como autor de raridades como a vista panorâmica datada de 1927 que mostra a antiga igreja de Nossa Senhora da Conceição em Pedras de Maria da Cruz, Minas Gerais.

Entre os fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos, incluídos na série da Brasiliana Fotográfica sobre antigas igrejas, um caso singular é Augusto Flávio de Barros, conhecido tão somente porque realizou a primeira e única documentação em fotografia sobre a fase final da Guerra de Canudos. O fotógrafo esteve presente na quarta e última investida militar contra os seguidores do beato Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel), mas não se sabe ao certo se ele acompanhou as tropas como voluntário ou se foi convocado para o trabalho.












Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
relíquias registradas por Flávio de Barros
em ruínas, ao final da Guerra de Canudos,
no arraial de Antônio Conselheiro, sertão da
Bahia, em outubro de 1897 – a partir do alto,
a Igreja de Santo Antônio; o Flanco Esquerdo
da Igreja do Bom Jesus; e uma imagem frontal
dos escombros da Igreja do Bom Jesus.
Abaixo, Igreja da Boa Morte em Barbacena,
Minas Gerais, fotografada em 1924 por
Mário de Andrade durante a visita que
o grupo modernista fez a Minas





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Augusto Flávio de Barros foi o único fotógrafo a acompanhar a guerra, que terminou com a destruição completa e com cerca de 5 mil mortos no arraial de Canudos, no sertão da Bahia, entre o fim de setembro e o início de outubro de 1897. Na série divulgada pela Brasiliana Fotográfica estão cinco imagens de ruínas das igrejas de Canudos registradas, ao final da última batalha das tropas militares o contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro, pela impressionante reportagem fotográfica de Augusto Flávio Barros, que no total é formada por 164 fotografias – sendo que 72 delas pertencem ao Museu da Republica, no Rio de Janeiro; 24 permanecem no acervo da Casa de Cultura Euclides da Cunha de São José do Rio Pardo, em São Paulo; e, infelizmente, 68 das fotografias de Barros desapareceram do acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.



O fotógrafo Mário de Andrade



Na trajetória cronológica, as mais recentes fotografias de igrejas antigas na série publicada pela Brasiliana Fotográfica datam do final da década de 1920 – época em que Mário de Andrade, um dos principais expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922, liderou o engajamento pela preservação do patrimônio histórico e artístico. É quase inevitável relacionar a preservação do patrimônio e da memória nacional com Mário de Andrade – o intelectual, escritor, poeta, crítico literário, jornalista, musicólogo, ensaísta, folclorista, fotógrafo e, sobretudo, produtor de ideias, sempre a procura de um germe novo que se abriga na tradição e que traz à tona um Brasil muitas vezes esquecido e submetido a processos de conquista e dominação.







Imagens do acervo do fotógrafo
Mário de Andrade: acima, as ruínas
da única igreja que Mário encontrou
em Porto Velho, Rondônia, na viagem
que fez em 1927. Abaixo, a Igreja
de Nossa Senhora do Rosário na
localidade de Goiana, Pernambuco,
em 1929; e uma vista panorâmica do
antigo convento da cidade de Catolé
do Rocha, Paraíba, também em 1929






 







A relação de Mário de Andrade com as questões do resgate das tradições artísticas e da memória da cultura nacional vem de antes da Semana de Arte Moderna de 1922 e culmina com o anteprojeto que ele redigiu para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a pedido de Gustavo Capanema, ministro da Educação de 1934 a 1945, durante o governo de Getúlio Vargas. Mário foi o primeiro secretário de cultura do Brasil, na época em que exerceu o cargo de diretor e fundador do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, e sempre esteve ligado às questões da preservação da memória e do patrimônio da cultura nacional, mas tudo indica que esta dedicação passou a ter para ele maior importância depois de sua primeira viagem a Minas Gerais, em 1919.

Desta primeira viagem de Mário a Minas resultou a publicação de seu estudo sobre os monumentos e igrejas das cidades mineiras do Ciclo do Ouro, intitulado “Arte Religiosa em Minas Gerais”. Sua segunda e lendária viagem a Minas aconteceria em 1924, em companhia de um grupo de amigos modernistas que incluía Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e o poeta e escritor francês Blaise Cendrars. Naquela viagem o grupo redescobriria o encanto da Arte Barroca, sua arquitetura, sua pintura, sua religiosidade popular, como uma manifestação legítima das mais preciosas e autênticas raízes e matrizes da cultura brasileira, que teve em Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu mais importante intérprete.










Fotografias de Mário de Andrade:
no alto, a Igreja de São Bento em Olinda,
Pernambuco, fotografada por Mário na
viagem de 1929; acima, Igreja Matriz de
São Paulo e São Pedro, construída pelos
Jesuítas por volta de 1930 em Mamanguape,
Paraíba, também fotografada em 1929.

Abaixo, Mário e Luís da Câmara Cascudo
fotografados durante a viagem pelo Rio Grande
do Norte, em 1929; Mário proseando com
Cândido Portinari na rua, em São Paulo,
em março de 1940; e o casal Oswald de
Andrade e Tarsila do Amaral fotografado
por Mário em São João Del Rei, em 1924,
durante a viagem do grupo modernista
pelas antigas cidades de Minas Gerais.

Também abaixo, Mário de Andrade com
Tarsila do Amaral e amigos na praia do
Chapéu Virado, também conhecida por
praia do Mosqueiro, em Belém, no Pará, em
1927, durante a expedição comandada por
Mário pela Amazônia para documentar o
folclore nacional, depois transcrita
no livro "O Turista Aprendiz";
e os jangadeiros na Praia de Iracema,
em Fortaleza, Ceará, em fotografia de
agosto de 1927 de Mário de Andrade






















O Turista Aprendiz



Depois viriam outras viagens, outros livros e outros projetos da maior importância. Algumas destas viagens de Mário pelo Brasil foram registradas por ele no relato para o livro ilustrado com suas fotos “O Turista Aprendiz”, concluído em 1943, mas publicado pela primeira vez somente em 1976. O livro agora está sendo relançado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelo IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo), em edição organizada pelas professoras Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo.

A nova edição ilustrada, com 462 páginas, inclui um CD-Rom com os diários de Mário de Andrade fotógrafo, formado por imagens e legendas feitas por ele com muito bom humor e em tom de informalidade, narrando sua trajetória de viagens e suas descobertas pelo interior do Brasil. A edição também traz encartado um DVD com o documentário de autoria de Luiz Bargmann, “A Casa do Mário”, que através de imagens de arquivo, fotografias, peças de sua coleção de arte, livros e discos, reconstitui o cotidiano familiar e social do ilustre paulistano na casa em que morou entre 1921 e 1945, situada em um endereço que se tornou lendário para seus amigos e leitores, na Rua Lopes Chaves, n° 546, Barra Funda, em São Paulo.






Em “O Turista Aprendiz”, Mário de Andrade registra detalhes saborosos sobre as viagens de pesquisa que fez à região Norte, até as fronteiras com Peru e Bolívia, em 1927, e depois, em 1928, ao Nordeste, incluindo Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte. Vale lembrar que, além das imagens publicadas no livro, Mário também deixou cerca de 1600 fotografias em positivo e centenas em negativo que comprovam suas habilidades como exímio fotógrafo.

Todas as fotografias das viagens foram feitas com sua câmera Kodak tipo “caixão” (máquina Codaque, como ele mesmo escrevia), durante suas viagens e nas expedições folclóricas que coordenou. A maior parte do acervo de Mário, que inclui suas fotografias, seus rascunhos, cartas, gravações de áudio, objetos recolhidos durante o trajeto das viagens, manuscritos e anotações diversas, somando cerca de 30 mil peças, mais sua biblioteca (com 17.624 volumes) e sua coleção de artes plásticas e mobiliário (1.234 peças) está, atualmente, no arquivo do escritor sob a guarda do IEB-USP.






Fotografias de Mário de Andrade: acima,

o barqueiro fotografado por Mário em 1927

durante o trajeto da viagem pelo rio, no Pará,

tendo ao fundo a cidade de Santarém. Abaixo,

Mário na Ilha do Mosqueiro, no Pará; no barco,

durante a travessia; e na floresta amazônica,

em fotografias feitas durante a viagem de 1927















Visão abrangente e contemporânea



Na viagem de 1927, Mário teve como acompanhantes sua amiga, aristocrata do café e mecenas dos modernistas, Olívia Guedes Penteado, sua sobrinha Margarida Guedes Penteado e a filha de Tarsila do Amaral, Dulce do Amaral Pinto. Outros amigos planejavam participar, entre eles o casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, mas terminaram adiando por conta de outros compromissos. Durante três meses, a partir de maio daquele ano, a comitiva de Mário seguiu do Rio de Janeiro a Iquitos, no Peru, navegando pelos rios Amazonas, Solimões e Madeira, incluindo uma temporada em Manaus.

Na segunda viagem, iniciada em novembro em 1928, Mário de Andrade partiu sozinho para o Nordeste, onde permaneceu até fevereiro do ano seguinte e foi recebido por outros célebres pesquisadores do folclore e da cultura popular, entre eles Ascenso Ferreira, Jorge de Lima, Cícero Dias e Luís da Câmara Cascudo. O contato com a floresta e com o sertão, as cidades, vilarejos, seus habitantes e suas manifestações culturais, a religiosidade, os folguedos, as danças, as músicas, quase sempre impregnadas de muito sincretismo e superstição, causam em Mário um grande impacto, consolidando uma visão de nacionalidade muito mais abrangente, em oposição às concepções dominantes da época, copiadas principalmente dos ambientes das cidades da Europa. Entre a primeira e segunda viagem, Mário escreveu e publicou uma de suas obras-primas, o romance “Macunaíma”.










Mário no estúdio de trabalho na casa em
que morou entre 1921 e 1945, e em caricatura
feita em Iquitos, Peru, por Victor Morel, durante
a viagem do escritor ao norte do Brasil em 1927.
Abaixo, Mário com o casal Oneyda Alvarenga
e Sylvio Alvarenga (Oneyda foi responsável pela
organização do acervo de Mário e pela publicação
dos inéditos, após a morte do escritor) e Mário em
passeio pelas ruas de São Paulo em 1936, quando
dirigia o Departamento Municipal de Cultura
de São Paulo, em fotografia do álbum de família.

Também abaixo, uma fotografia do mesmo estúdio
de trabalho do escritor no ano da morte de Mário,
1945, onde se vê a escrivaninha e as pinturas
A família do Fuzileiro Naval, de Guignard
(junto à escrivaninha), e Colona, de Portinari,
à direita; e a fachada da casa, na Barra Funda,
em São Paulo, endereço que se tornou
referência lendária para seus amigos e leitores:
Rua Lopes Chaves, n° 546









  

Mais tarde, em 1936, Mário de Andrade aceita o convite do ministro Gustavo Capanema para redigir o anteprojeto para o futuro SPHAN (atualmente Iphan), que foi criado em 1937 e teve como primeiro diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade. Ainda hoje a proposta elaborada e redigida por Mário impressiona por conta de sua visão abrangente e contemporânea. Organizado em três capítulos, o anteprojeto estabelece as competências do Serviço do Patrimônio, as categorias dos bens culturais e os critérios de seleção para tombamento em quatro livros do tombo. A fundamental presença de Mário na criação e no apoio à gestão do SPHAN iria se estender de 1936 até a sua morte precoce, aos 52 anos, em 25 de fevereiro de 1945.

Desde então a obra literária de Mário de Andrade, sua atuação como mentor nas questões da cultura nacional e também sua correspondência com uma legião de discípulos (como Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Tarsila do Amaral, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Gustavo Capanema e muitos e muitos outros) assumem importância crescente e estabelecem a crônica e o cenário de uma época em que, após séculos de colonialismo, o Brasil forma sua imagem e identidade. Neste cenário, a preservação e a valorização do patrimônio nacional, em suas múltiplas interfaces, têm muito da presença ideológica de Mário de Andrade e a criação do SPHAN significa, por certo, sua certidão de nascimento.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O passado intransitivo. In: Blog Semióticas, 8 de janeiro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/01/o-passado-intransitivo.html (acessado em .../.../...).






Para visitar o acervo da Brasiliana Fotográfica,  clique aqui.


Para visitar o acervo de Mário de Andrade no IEB-USP,  clique aqui.

 
Para assistir o documentário A Casa do Mário, de Luiz Bargmann,  clique aqui.



https://vimeo.com/73811716








5 de dezembro de 2014

Lina da Casa de Vidro





Arquitetura é, sempre, a vontade

de uma época traduzida em espaço.


Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969).  





Italiana de nascimento e brasileira por escolha a partir de 1946, Achillina Bo, mais conhecida como Lina Bo Bardi (Roma, 1914 – São Paulo, 1992), que exatamente hoje completaria 100 anos, recebeu recentemente uma homenagem de peso na mídia internacional especializada nos circuitos de arte e arquitetura: o suíço Hans Ulrich Obrist surpreendeu a todos quando, em entrevista à revista britânica “Art Review”, destacou a importância e a superioridade da arquitetura do Brasil no cenário internacional. Como se não bastasse, Obrist deixou de lado a obra monumental de Oscar Niemeyer e elegeu a Casa de Vidro de Lina Bo Bardi – onde a arquiteta viveu como o marido, Pietro Maria Bardi, por mais de 40 anos, em São Paulo – como seu projeto preferido da arquitetura brasileira.

A surpresa com a avaliação do especialista suíço sobre Lina Bo Bardi e sobre a arquitetura do Brasil ganhou maiores proporções porque Obrist é o que se pode chamar de autoridade: diretor de projetos internacionais da cultuada galeria Serpentine, em Londres, ele foi apontado, em pesquisa feita com dezenas de especialistas pela mesma revista "Art Review", a mais conceituada “bíblia” da arte e da arquitetura contemporâneas, como a personalidade mais influente das artes plásticas em nossa época. Obrist também ostenta um currículo invejável, com nada menos que 200 exposições realizadas, além de 30 livros publicados, entre eles "Uma breve história da curadoria" (lançamento no Brasil pela Editora BEI Comunicação, 2010), e “Entrevistas Brasileiras”, uma série de livros em cinco volumes, com expoentes da arte brasileira, lançada em 2009 pela Editora Cobogó.










 




O casal Lina Bo Bardi e Pietro Maria
Bardi na Casa de Vidromarco da
arquitetura brasileira, criação de
Lina Bo Bardi e residência do casal
durante mais de 40 anos.

Abaixo, o casal Pietro e Lina em 1950;
Lina fotografada em São Paulo, no mesmo
ano; Lina em 1960, em Salvador, com
pintor cearense Antônio Bandeira,
convidado por ela para expor na
inauguração do Museu de Arte
Moderna da Bahia; e com Glauber
Rocha (abaixado) e equipe técnica de
Deus e o Diabo na Terra do Sol,
durante as filmagens em Canudos, no
sertão da Bahia, fotografados em 1963













Se Oscar Niemeyer costuma monopolizar as atenções quando se fala de arquitetura brasileira, por que um especialista como Obrist escolheu Lina Bo Bardi? "Converso com artistas de vários países todos os dias e muitos me falam de Lina. Existe uma real obsessão em torno dela, o que não é nada surpreendente. Ela tem tudo a ver com o que há de mais interessante na cultura brasileira da segunda metade do século 20 e também com a maior parte dos projetos que venho desenvolvendo", explicou Obrist, na entrevista polêmica concedida à “Art Review” (para acessar a entrevista, clique aqui).



Achillina Bo



Lina Bo Bardi tornou-se uma presença incontornável da arte e da arquitetura do Brasil na segunda metade do século 20. Foi uma liderança capital nos rumos isolados e coletivos de diversos segmentos da cultura brasileira, a partir da década de 1950, exercendo influência central na segunda geração do Modernismo no Brasil e em artistas fundamentais de várias áreas, muito além da arquitetura e do design, como Glauber Rocha, Caetano Veloso, Zé Celso Martinez Corrêa e Hélio Oiticica, entre muitos outros nomes de referência do Concretismo, do teatro, do Cinema Novo e do Tropicalismo – apesar de, para a maioria dos leigos, sempre ter sido ofuscada pelo trabalho e pela presença de Niemeyer, outro gigante incontestável da arquitetura. 


 














Depois de deixar para trás a Itália arrasada pela Segunda Guerra, Lina passou a construir sua bagagem de referência sobre um entendimento muito particular do Brasil e da cultura brasileira em geral, a partir da arquitetura, entre interfaces do erudito e o popular – em estruturas planejadas sobre figuras geométricas básicas (como quadrados e triângulos), em lajes planas e em materiais de simplicidade rústica para complementos e revestimentos, tais como madeira, cerâmica, sapé.

O destaque de Obrist e outros especialistas, do Brasil e do cenário internacional, sobre o papel capital de Lina Bo Bardi, na verdade não surpreende, porque vem da importância incomparável das obras que ela produziu não só na arquitetura, mas também em atividades múltiplas. Além de profissional da arquitetura, Lina assumiu um papel de destaque na política e na cultura brasileira desde que aqui chegou com o marido, em 1946, e teve presença marcante como professora, como museóloga, como pesquisadora da cultura popular, como artista plástica e em criações e parcerias para o teatro, o cinema, as artes gráficas e o design, especialmente nos projetos para mobiliário.







Acima, Lina Bo Bardi em 1984,
fotografada por Niels Andreas.
Abaixo, Lina na década de 1960,
nas obras de construção do prédio
do MASP, em São Paulo, um dos seus
célebres projetos em arquitetura, e
uma vista aérea atual do edifício















 

Também merece destaque, na trajetória ímpar de Lina Bo Bardi, sua atuação como mentora de projetos culturais, sua dedicação à orientação de trabalhos e à curadoria de diversas exposições. Não menos importante foi sua contribuição como editora de “Habitat”, uma revista que circulou durante uma década, a partir de 1950, abordando desde as artes populares até a arquitetura, com ênfase em questões de inovação no ambiente sociocultural brasileiro.



Criações, intervenções, restaurações



Na arquitetura, Lina Bo Bardi é sempre lembrada pela criação do Museu de Arte de São Paulo, em 1958, considerada por muitos sua obra-prima. Mas não só: no acervo das obras da arquiteta também se destacam mais de 20 projetos grandiosos e visionários de criação ou intervenção em edificações como a Casa de Cultura de Pernambuco (1963), em Recife; a Igreja do Espírito Santo do Cerrado (1976), em Uberlândia, Minas Gerais; o Solar do Unhão, transformado por ela no começo da década de 1960 em Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador; o Teatro Oficina e o SESC Pompeia, ambos em São Paulo, em 1990, além de outros projetos inconclusos, entre eles o Palácio das Indústrias de São Paulo e o Teatro Politeama, em Jundiaí (SP). 











Algumas obras da arquiteta Lina Bo Bardi:
acima, o Segundo Subsolo e o Vão Livre
do MASP, na Avenida Paulista, em
São Paulo, e o Solar do Unhão, em
Salvador, restaurado e transformado
no Museu de Arte Moderna da Bahia
(MAM-BA), em projeto coordenado em
1963 por Lina Bo Bardi, que foi a primeira
diretora do museu na Bahia. Abaixo,
Lina fotografada na obra para instalação
do MAM-BA; Lina a bordo da Bowl Chair,
cadeira que ela criou em 1951; e fotografada
na década de 1950 por Chico Albuquerque.

Também abaixo: 1) Lina em reunião com
Zé Celso Martinez Corrêa, na época da
reformulação do prédio do Teatro Oficina, na
década de 1980; 2) o croqui para o teatro
e o prédio do Sesc Pompeia, em São Paulo,
criado por Lina em 1986 e destacado com
frequência pelos compêndios de arquitetura
entre os melhores edifícios de concreto do
mundo; 3) o interior revolucionário do
Teatro Oficina, também em São Paulo;
4) um croqui criado para um dos
projetos da arquiteta














Além da obra-prima consolidada na criação do MASP, um dos projetos centrais na trajetória de Lina Bo Bardi é o Instituto Pietro Maria Bardi, também conhecido como Casa de Vidro – um conjunto com uma base horizontal de concreto suspensa por tubos e revestido de vidro. Projetada em 1950 por Lina para ser a residência do casal, a Casa de Vidro abriga hoje parte da coleção de arte particular adquirida ao longo dos anos por Lina Bo e o marido, Pietro Maria Bardi (1900-1999). Lina e Pietro casaram-se em 1946 e, em seguida, trocaram a Itália pelo Brasil. Em 1951, adotaram a nacionalidade brasileira.

Logo que chegaram ao Brasil, em recepções, no Rio de Janeiro, Lina e Pietro conheceram personalidades como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Burle Marx e Assis Chateaubriand, de quem Pietro receberia o convite para fundar e dirigir um museu de arte. Do convite surgiu o projeto arquitetônico de Lina que abrigaria o MASP, o museu mais importante da América Latina. A primeira sede foi instalada em 1947, na rua Sete de Abril. Uma nova edificação começou a ser planejada por Lina em 1958 – mas a construção demoraria 10 anos para ser concluída e foi inaugurada oficialmente pela Rainha da Inglaterra, Elizabeth 2ª, em 1968.





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Entre tantos projetos e áreas de atuação, Lina Bo Bardi também sonhava em desenhar casas populares – mas os planos foram definitivamente adiados por questões de conjuntura política, para além da vontade da arquiteta. Entre outros projetos e utopias que nunca saíram do papel também estão a sede para um museu do Instituto Butantan e uma “floresta tropical” que seria criada sob os viadutos no Vale do Anhangabaú, no Centro de São Paulo.

"Eu tenho projetado algumas casas, mas só para pessoas que eu conheço. Tenho horror em projetar casas para madames”, ela confessa, em um dos textos reunidos em “Lina por escrito”, livro organizado por Silvana Rubino e Marina Grinover e publicado pela editora Cosac Naigy em 2008. "Entre madames, sempre entra aquela conversa insípida em torno da discussão de como vão ser as cortinas...", confidenciava, entre a ironia e as lembranças autobiográficas mais realistas. O mundo sonhado e construído por Lina Bo Bardi tinha outra dimensão e outras prioridades para uma realidade concreta.



por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Lina da Casa de Vidro. In: Blog Semióticas, 5 de dezembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/12/lina-da-casa-de-vidro.html (acessado em .../.../...).















Obras da arquiteta Lina Bo Bardi:
acima, dois croquis: o primeiro foi feito
para o bar do SESC Pompeia; o segundo,
para o projeto de reforma do Teatro Oficina
(obra que se arrastou por 14 anos até ser
finalizada em 1994). Abaixo, projeto para o
Vão Livre do MASP e Lina na
Casa de Vidro, fotografada em 1952













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