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5 de janeiro de 2014

Tribos do fim do mundo









O inglês Jimmy Nelson apresentou ao público em livro e em seu site na Internet um acervo fascinante: centenas de fotografias que registram as tribos mais remotas nos cinco continentes do Planeta Terra. São imagens estranhas e belíssimas do projeto “Before They Pass Away” (Antes que desapareçam), iniciado pelo fotógrafo com a meta de visitar tribos e povos isolados nos confins que mantêm suas tradições com pouco ou nenhum contato com a “civilização” do resto do mundo.
Em 2009 eu decidi colocar em prática um antigo sonho de visitar as tribos mais isoladas em todos os continentes para registrar cenas de suas vidas cotidianas, suas tradições milenares, participar de seus rituais e alertar para o perigo de que o mundo 'civilizado' pode levar muito em breve todos estes povos indígenas e suas maravilhosas culturas à extinção”, relata o fotógrafo na apresentação do projeto.

As belas e surpreendentes fotografias da primeira etapa de "Before They Pass Away", registro das 13 excursões de Jimmy Nelson e sua equipe às tribos mais isoladas em 44 países, foram reunidas por ele em um site aberto ao público e em um livro – na verdade um luxuoso catálogo fotográfico de 464 páginas, 500 imagens e textos em inglês, alemão e francês. O livro está à venda exclusivamente na Amazon e no site do fotógrafo (veja links no final deste texto). A próxima etapa do projeto, segundo Jimmy Nelson, é transformar os registros em um documentário para cinema.














                                 




Tribos do fim do mundo segundo
o fotógrafo Jimmy Nelson: no alto,
guerreiro da tribo Masai na Tanzânia.
Acima, o fotógrafo em ação, no
território da tribo Huli, em Papua,
Nova Guiné; dois irmãos da tribo Huli;
a capa do primeiro catálogo e a
rota das expedições iniciadas em 2009
por Jimmy Nelson por 44 países, com os
 pontos de partida para territórios isolados.

Abaixo, os guardiões do povo Ngalop, no
Reino do Butão, sul da Ásia, extremo leste
dos Himalaias; guerreiros da tribo Samburu,
no Quênia, África; e guerreiros da tribo Yali,
na Indonésia, em fotografia de 2010



    


 


                                 
         
 

Histórico de massacres



Meu objetivo, desde o início do projeto, foi criar através das fotografias um documento estético ambicioso que pudesse resistir ao teste do tempo. O resultado é que acabei por reunir um grande acervo de registros insubstituíveis de um mundo que está desaparecendo muito rapidamente”, explica o fotógrafo. Desde o início de 2009, Jimmy Nelson e sua equipe de poucas pessoas passaram períodos de pelo menos duas semanas em cada uma das diferentes tribos fotografadas e o projeto prossegue em novas etapas, sem previsão para ser concluído..

A meta inicial do fotógrafo para esta primeira parte do projeto era registrar 31 tribos, mas no total foram visitadas 29. Duas das tribos, situadas na Amazônia do Brasil, por causa da legislação em vigor não puderam ser visitadas pelo fotógrafo e sua equipe: elas estão localizadas no Vale do Javari, uma extensa região de mata fechada e de difícil acesso onde se concentra o maior número de tribos isoladas do mundo, incluindo um número não identificado de povos que nunca tiveram nenhum contato com não-indígenas. Em cada uma das tribos contactadas nos 44 países, as fotos de Jimmy Nelson revelam belezas e surpresas que incluem os cenários naturais incomuns e as antigas tradições pouco conhecidas – como os elementos culturais de vestimentas, animais exóticos domesticados, alimentação, cerimônias festivas e rituais religiosos. 











Tribos do fim do mundo: no alto,
guerreiros da tribo Vanuatu nas
pequenas ilhas do arquipélo da
Melanésia, no Oceano Pacífico,
seguidos por guerreiros da tribo
Samburu, no Quênia, África, e pela 
tribo Kalam em Papua, Nova Guiné.

Abaixo, guerreiros nômades da tribo
Masai no Parque Nacional de Seringeti,
ao norte da Tanzânia, África, com extensas
planícies que abrigam a maior migração
de mamíferos do planeta Terra; e um
chefe e seus dois filhos do povo Mursi,
nas montanhas isoladas ao sudoeste
da Etiópia, na África










 
O fotógrafo explica que ninguém sabe ao certo quantas tribos isoladas ainda existem atualmente no Planeta Terra. Os informes oficiais indicam que há pelo menos 150 – a maioria delas situada em regiões inacessíveis da Amazônia no Brasil e nas centenas de ilhas pouco conhecidas dos oceanos Índico e Pacífico, especialmente na região de Nova Guiné. Também há registros de tribos isoladas no Peru e em todos os países da área da floresta amazônica, assim como nas regiões de montanhas mais distantes de áreas urbanas da Índia, da Malásia e da África Central.
No Brasil, os levantamentos oficiais da Funai (Fundação Nacional do Índio) identificaram nos últimos anos pelo menos 114 povos indígenas isolados nas regiões Norte e Centro-Oeste, sendo que apenas 28 foram contactados e identificados. Entre os restantes, está uma maioria de povos não-contactados, realmente desconhecidos de qualquer estudo ou de missões de reconhecimento de território, e também os “isolados voluntariamente”, aqueles que resistem a qualquer aproximação devido a contatos violentos no passado que resultaram em massacres de tribos inteiras. Pouco se sabe sobre estes grupos isolados: não é possível estimar os números da população de cada tribo nem a qual grupo linguístico pertencem, e sua existência tem apenas registros de objetos encontrados ou de raros avistamentos.

 







 
           




Registros de Jimmy Nelson sobre
as tribos do fim do mundo: no alto,
mulheres Maori, tribo que há muitos
séculos habita a Nova Zelândia.
Acima, os Dropka, tribo da Índia,
e a tribo Bana, na Etiópia. Abaixo,
tribo Iatmul em Papua, Nova Guiné;
tribo Nduga, das ilhas na Indonésia;
e os guerreiros Samburu no Quênia









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O perigo mortal do contato


Mas nem só de elogios foi a recepção do projeto de Jimmy Nelson. Entidades como a Survival Internacional, que tem sede em Londres e atua na defesa dos direitos das populações indígenas, alertam que os contatos com as tribos isoladas sempre representam um perigo mortal, pela violência do próprio contato ou por consequências imprevisíveis como a propagação de doenças “civilizadas”: um simples vírus que provoca uma gripe sem gravidade pode dizimar tribos inteiras em poucos dias.  
Há também quem acuse Jimmy Nelson de buscar promoção pessoal repetindo o trabalho já realizado por outros fotógrafos, como o brasileiro Sebastião Salgado. As críticas partem de um argumento que pode ser facilmente constatado, porque os mesmos povos e as mesmas regiões isoladas do planeta que Sebastião Salgado vem fotografando há mais de uma década para o projeto Gênesis, em impecável preto-e-branco, agora surgem fotografados em cores vibrantes no projeto de Jimmy Nelson.
 




                                  



                                  





O fotógrafo Jimmy Nelson em 2010,
fotografado no Tibete; em 2009, com
crianças da tribo Goroka, na Indonésia;
e em 2012, em uma das tribos no Sudão

Abaixo: 1) e 2) nativos das Ilhas Marquesas,
um dos cinco arquipélagos da Polinésia
Francesa, em áreas remotas do Oceano
Pacífico; 3) nativos do arquipélago de
Vanuatu
, na Melanésia, região do Oceano
Pacífico situada ao nordeste da Austrália;
4) o fotógrafo em ação, na África,
acompanhando mulheres da tribo
Himba no deserto da Namíbia;
5) e 6) meninos brincando e um
casal da tribo Karo, habitantes do
vale arqueológico do Omo, na Etiópia;
7) a família de esquimós da tribo
Nenets, povo nômade das regiões
remotas da Sibéria, ao norte da Rússia




    















Alheio a todas as críticas e às polêmicas, Jimmy Nelson anuncia em seu site que o projeto "Before They Pass Away" vai continuar e que já estão sendo planejadas novas expedições às regiões mais inóspitas da Terra. Um detalhe interessante é o equipamento usado por Jimmy Nelson: uma antiga câmera 4 X 5 e negativos de grande formato que estão há décadas fora do mercado e que a maioria dos profissionais considera obsoletos.  
“O ser humano é muito parecido em qualquer lugar, nas cidades, nas montanhas, nos campos de gelo, na selva, ao longo dos rios e nos vales silenciosos que se perdem de vista no horizonte”, explica o fotógrafo, relatando que em muitos casos ele sabia que estava diante dos últimos membros de cada tribo. “Meu trabalho pode contribuir para que o mundo nunca esqueça no futuro a forma como as coisas eram”, conclui.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Tribos do fim do mundo. In: Blog Semióticas, 15 de janeiro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/01/tribos-do-fim-do-mundo.html (acessado em .../.../...).



Para visitar o site oficial do fotógrafo  Jimmy Nelson,  clique aqui.


Para comprar o catálogo fotográfico  Before They Pass Away,  clique aqui.





















26 de outubro de 2013

Darcy Guarani Kaiowá







A história política brasileira não cabe nas ficções do
realismo mágico porque é por demais inacreditável.
(...) O povo brasileiro pagou, historicamente, um
preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas
de que se tem registro na história, sem conseguir
sair, através delas, da situação de dependência
e opressão em que vive e peleja.

–– Darcy Ribeiro, “O povo brasileiro” (1995). 

      


Polêmico por sua defesa intransigente do foco em relação aos direitos dos índios e à prioridade para a educação no Brasil, antropólogo, sociólogo, educador, político, Darcy Ribeiro (1922–1997) foi atuante em projetos que marcaram época como a criação do Parque Nacional do Xingu e do Museu do Índio, além de ser um dos criadores e primeiro reitor da Universidade de Brasília e também autor de livros importantes, incluindo romances e estudos sobre os povos indígenas.

Em livros e projetos, Darcy Ribeiro continua correndo mundo, décadas depois de sua morte, aos 75 anos, em fevereiro de 1997. Recebeu muitas homenagens, concedeu entrevistas que marcaram época, defendeu causas que antes dele permaneciam no anonimato. Tive a sorte de participar de um breve encontro em 1994 com Darcy Ribeiro. A entrevista, publicada por um jornal de Belo Horizonte, foi um reencontro do então senador com jornalistas e fotógrafos em sua casa, em Brasília, depois de um longo período de tratamento médico.

Sempre engajado nas questões políticas, presença em momentos definitivos da História como ministro-chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, no último governo democrático antes do golpe e da ditadura militar que tomou o poder em 1964, foi obrigado ao exílio, como muitos intelectuais brasileiros. Foi para o Uruguai. Em 1969, faria seu primeiro retorno ao Brasil, graças a um habeas corpus, mas com o AI-5, teve seus direitos novamente suspensos, acabou conduzido à prisão e depois ao exílio forçado, desta vez na Venezuela, no Chile e no Peru. No Chile, entre outras atividades, assessorou o presidente Salvador Allende, de quem se tornou grande admirador. 






               
   






Darcy Ribeiro: a partir do alto, em
fotografia de 1994 de Bob Wolfenson.
Acima e abaixo, Darcy nas décadas de
1940 e 1950 com os povos indígenas
Kadiwéu, Urubu-Kaapor, Ofayé-Xavante
e outros grupos estudados por ele,
em imagens selecionadas para a mostra
realizada em 2010 pelo Ministério da Cultura
e pela Funai, com curadoria do fotógrafo
Milton Guran, intitulada
O olhar precioso de Darcy Ribeiro, que
apresentou fotografias de 1946 a 1956.

Também abaixo, mulheres Kadiwéu e
Berta Ribeiro, esposa de Darcy e também
antropóloga, fotografadas por ele na tribo
dos Kadiwéu em Mato Grosso, em
1948. Berta e Darcy viveram durante
anos com os povos indígenas, estudaram
seus costumes, sua cultura, e publicaram
livros e artigos científicos sobre o tema












 
Saudades do Brasil



O retorno ao Brasil, com a redemocratização, o levaria de volta à militância política e Darcy se elegeu vice-governador do Rio de Janeiro, de 1983 a 1987. Na gestão da agenda social do governo de Leonel Brizola, Darcy criou, planejou e dirigiu a implantação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), um projeto pedagógico visionário e revolucionário no Brasil de assistência em tempo integral a crianças, incluindo atividades recreativas e culturais para além do ensino formal, em 500 unidades instaladas no estado do Rio de Janeiro para atendimento integral aos alunos da rede estadual, incluindo ações complementares de apoio didático, atendimento médico e odontológico.

Depois da experiência como vice-governador viriam outros cargos e gestões, até a eleição como senador, também pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte. Naquela entrevista, em 1994, como éramos mineiros, em maioria, Minas Gerais acabou sendo o tema principal. “Saí de Montes Claros, Minas Gerais, para estudar, e minha carreira me lançou aos índios, ao Rio de Janeiro, a Brasília, a São Paulo, ao exterior. A vida da gente são caminhos que se bifurcam”.

Comprometido com o mandato de senador em Brasília e travando sua batalha existencial contra a doença, Darcy dizia que não via a hora de retornar a Minas sem agenda, sem hora para voltar. “O fato concreto é que sou um mineiro isolado e, por isso, às vezes passa pela minha cabeça fazer uma coisa em Minas ou participar da vida mineira. Minas está ficando careca, de Belo Horizonte a Montes Claros. E me dói ver como a canalha está acabando com a vegetação. Pequi, então, estão derrubando tudo para fazer carvão. Acabando com o cerrado, aquela beleza prodigiosa”.



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Darcy ainda reclamou e ironizou os efeitos dos medicamentos, fez graça com os resultados da quimioterapia, da radioterapia. Depois brincou com os fotógrafos, dizendo que estavam proibidos os closes e os enquadramentos com planos fechados no rosto. “Só plano à distância. Close-up está proibido. Não tenho mais cabelos, não tenho sobrancelhas. Respeitem o velhinho. Está proibido!”, declarou, logo no começo da entrevista, encontrando piada para fazer rir seus entrevistadores e para comentar as mudanças que o tratamento prolongado contra o câncer provocava. Também quis saber o nome completo e a cidade de cada jornalista, cada fotógrafo.



Memórias da Mantiqueira



Minas exporta minérios e exporta mineiros. Mas a gente que é exportado, que vai para a Diáspora, continua com Minas no coração”, ele reconheceu, enquanto explicava que tinha pressa e falava sem parar, esticando o assunto com a história de vida de cada repórter. Quando chegou a minha vez, perguntei sobre as andanças e expedições de Darcy e comentei sobre minhas origens na Serra da Mantiqueira, dos meus antepassados migrantes nas fazendas Catauá e Cabangu desde o século 19, italianos, turcos, holandeses. Ele ficou animado com a conversa e fez muitas perguntas, até que o assunto chegou nos irmãos Villas Boas e Darcy Ribeiro foi longe, provando por A mais B que conhecia muito mais detalhes sobre aquela região e sobre a história de meus antepassados do que eu jamais poderia supor.












O assunto Mantiqueira levaria Darcy Ribeiro aos comentários saborosos sobre a língua dos povos Tupi Guarani e daí a “Maíra”, seu romance autobiográfico de 1976, que relata passagens com os irmãos Villas Boas e seu próprio envolvimento com a causa indígena. Também falou dos outros romances, escritos durante as temporadas no exílio, mas reconheceu que são as páginas de “Maíra” que trazem o encantamento que também o levou às pesquisas de campo.

Em 1946, Darcy formou-se em Antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal Matogrossense, do Brasil Central e da Amazônia (1946-1956). Quando Darcy deixou Montes Claros e chegou a São Paulo para estudar, vinha de outra experiência marcante, depois de desistir do curso de Medicina em Belo Horizonte.














Temporadas entre povos indígenas



Saí de Minas com sentimento forte de missão. Na época eu recebi uma bolsa do sociólogo norte-americano Donald Pierson, fui ver no que dava o curso e acabei cumprindo o bacharelado em Ciências Políticas e Sociais”, ela recordou, com memória prodigiosa para datas, nomes, números, acontecimentos da História. Em 1947, foi contratado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão indigenista criado no início do século pelo marechal Cândido Rondon, uma das figuras a inspirar Darcy no trabalho de assistência às populações indígenas.

No SPI, Darcy realizou pesquisas etnológicas, a maior parte durante períodos prolongados junto aos índios. Em mais de uma década de convívio em longas temporadas visitando os povos do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia, ele escreveria uma série de estudos e teses de referência em Antropologia e Etnologia, entre eles “Religião e Mitologia Kadiwéu” (1950), livro com o qual ganhou o importante prêmio Fábio Prado e, com ele, certa notoriedade. 











Em todas as obras e artigos que escreveu e publicou neste período, Darcy destaca a parceria fundamental da esposa, a antropóloga Berta Gleiser Ribeiro, que o acompanhava em viagens e pesquisas de campo, além de aparecer como co-autora em várias obras. Berta retorna à conversa e à história de Darcy várias vezes, assim como as lembranças de Minas e sua fala apaixonada pela causa indígena, que o levaram a participar de projetos como a criação do Museu do Índio e do Parque Indígena do Xingu.



Tempo da Utopia, o futuro




Os projetos da causa indígena, os rumos da educação pública e momentos importantes como a criação da Universidade de Brasília estavam no centro de atenção, durante a entrevista com Darcy, que enumerava projetos, possibilidades no futuro, o tempo da Utopia. “Dediquei a vida aos índios, à minha paixão por eles e também à escola pública. Minha vida é feita de projetos impessoais para passar o Brasil a limpo, porque o Brasil é máquina de gastar gente. Gastou seis milhões de índios e o equivalente de negros. Para eles? Não! Para adoçar a boca do europeu com açúcar, para enriquecer uns poucos. O povo foi gasto como carvão neste país bruto”.




 



Ele disse que eram ideias para um livro que estava finalizando, que reuniria algumas de suas confissões. “Mas não serão confissões sobre a culpa, à moda de Santo Agostinho. Será um acerto de contas com projetos e histórias que ficaram interrompidos no passado, será um inventário de lembranças importantes, para mim e para o Brasil. Vou falar até de Montes Claros, para que alguém se lembre daquele tal de Darcy Ribeiro que nasceu lá na terra do cerrado”, explica, trazendo de novo a ironia por causa dos efeitos do tratamento de quimioterapia e radioterapia.

Agora não posso aparecer por lá, em Montes Claros, porque vão fugir de mim. A doença me derrubou, derrubou meus cabelos. Estou vivendo períodos em que nem eu me reconheço. Olho no espelho e não vejo a minha cara. Eu tinha cabelos de poeta, adorava aquele cabelão. Até meus adversários admiravam e elogiavam meus cabelos e minhas sobrancelhas longas, desgrenhadas”, disse, entre a graça e o lamento sincero.



Visão de mundo



Prosador veterano, sábio, invariavelmente polêmico, Darcy fala com propriedade da visão de mundo dos índios e das grandes personalidades com as quais conviveu – as vezes em que encontrou Getúlio Vargas, o humor à flor da pele de Juscelino Kubitschek, a época de João Goulart, os capítulos de sua biografia que mais parecem um cronograma de História do Brasil: em 1955, foi encarregado por JK de comandar um programa nacional de alfabetização; em 1961, tornou-se o primeiro reitor da Universidade de Brasília; em 1963, assume o gabinete civil do presidente João Goulart. Depois veio a ditadura militar, a prisão, a vida no exílio.





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A sinceridade de Darcy Ribeiro nunca evitou as críticas nem aos amigos mais próximos nem aos adversários. Ele citava de memória denúncias e dossiês sobre massacres e acusava seus pares da Antropologia de terem rompido seu compromisso com os povos que estudavam, em especial com os indígenas. Segundo Darcy, os antropólogos, em sua maioria, estavam transformados em “cavalos de santo” – aqueles que nos cultos de origem africana são tomados por entidades que vêm falar por meio deles. “Só que, no caso brasileiro, os antropólogos estão tomados por entidades do ‘primeiro mundo’, limitando-se a repetir em suas teses o que falavam os grandes intelectuais lá de fora”.

A conversa com Darcy Ribeiro tem a duração de pouco mais de uma hora, mas cada ponto da pauta rende do entrevistado revelações saborosas sobre a História e a Política, em Minas e em Brasília, no Brasil, sobre quem estava no poder e sobre os que já estiveram. Ele também envolve na prosa os grandes escritores mineiros do século 20, Drummond, Nava, Guimarães Rosa, Murilo Mendes, vai às referências do barroco, rende reverências ao gênio e às lendas sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

Minas é uma terra engraçada de gente engraçada que aceita a ideia de que um dos maiores escultores do mundo andava arrastando a bunda num pedaço de couro”, gracejou Darcy, rindo da própria piada até quase perder o fôlego. “O Aleijadinho é a prova concreta, cravada na pedra, de que Minas datou e atou o Brasil”, conclui Darcy. “Foi o espírito do barroco mineiro que garantiu a construção da alma brasileira. Tenho muito sentimento por isso e também o sentimento de que Minas tem pouco: é pouco dada, por exemplo, ao Aleijadinho”.






Confissões e sorrisos



O livro “Confissões” realmente foi publicado. Sairia em 1997 pela Companhia das Letras, com ilustrações de Oscar Niemeyer. Retornei à pauta daquela entrevista com Darcy Ribeiro no lançamento do livro e tempos depois, no final de 2010, quando foi aberta na Caixa Cultural Rio uma exposição inédita com 50 fotografias produzidas por Darcy Ribeiro nas temporadas que ele viveu com as tribos Kadiwéu, Urubu-Kaapor e Ofayé-Xavante.

Denominada “O Olhar Precioso de Darcy Ribeiro”, a mostra selecionou imagens que pertencem ao acervo do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), incorporado desde 2008 ao Registro Nacional do Programa Memória do Mundo, da Unesco. Nas fotografias de trabalho de Darcy, cenas do cotidiano das aldeias, tatuagens faciais de personagens diversos, rituais e anotações visuais acompanhadas de pequenos textos-legenda, para maiores explicações.

“O Olhar Precioso de Darcy Ribeiro” também incluiu a projeção do clássico filme de autoria de Hans Foerthmann “Um dia de uma tribo na floresta tropical”, recentemente restaurado e digitalizado, que conta a história dos índios Urubu-Kaapor, contactados por Darcy na década de 1940. Milton Guran, organizador da mostra, destacou no texto de apresentação distribuído à imprensa que as séries de fotografias de Darcy são realmente especiais porque ele, ao fotografar, misturava os ânimos da descoberta científica e da experiência humana que os encontros interculturais possibilitam. 
















Darcy Guarani Kaiowá: a partir do alto,
1) Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do
governo João Goulart, é expulso de Brasília
para o exílio no Uruguai, em 1964, quando
é deflagrado o golpe militar; 2) Darcy Ribeiro,
de volta do exílio, no final dos anos 1970, tem
encontro com intelectuais e presos políticos,
ainda durante a ditadura militar: a partir da
esquerda, Jorge Raymundo, Manoel Henrique
Ferreira, Perly Cipriano, Darcy, Antonio Houaiss
e Oscar Niemeyer; 3) acima, Darcy com
Brizola e Niemeyer no apartamento em que
Darcy morava em Copacabana, no Rio de
Janeiro, em 1995, na época do lançamento
da Fundação Darcy Ribeiro.

Abaixo: 1) DarcyLuiz Inácio Lula da Silva,
então dirigente sindical, em 1984, no
Congresso da Internacional Socialista
no Rio de Janeiro; 2) em visita a uma das
salas de aula dos CIEPs (Centro Integrado de
Educação Pública) que instalou no Rio de Janeiro,
depois de se eleger como vice do governador
Leonel Brizola, em 1992; e 3) um encontro de
Darcy e Paulo Freire em 1991, no Rio de Janeiro,
em um seminário que teve como tema os CIEPS;
4) Darcy beija Brizola, governador do Rio;
5) um encontro de Darcy em Brasília, em 1995,
com lideranças dos povos do Parque
Nacional do XinguTambém abaixo,
Darcy na praia de Copacabana, em 1976,
quando retornou ao Brasil depois do exílio
imposto em 1964 pela ditadura militar.
No final da página, Darcy com os índios
Kadiwéu na década de 1940 



















"Ele fotografava para entrar em contato e produzia uma memória desse encontro. Sua fotografia superou o registro descritivo e adentrou pelo mundo da imaginação. Em suas imagens, a impressão que temos é que Darcy se deu ao luxo de agir como um flâneur, como se fora um turista acidental a cultivar relações e recolher lembranças”, explica Milton Guran, enumerando algumas das reflexões originais que o pensamento teórico e as imagens documentais de Darcy Ribeiro representam.

O resultado da exposição, que segue em agenda itinerante pelas capitais, é um rico painel sobre as diferenças e a visão de mundo dos povos indígenas – que recebem de Darcy um registro fraternal e respeitoso, ainda que profundamente melancólico, mesmo quando um raro sorriso aberto do pesquisador abraçado aos índios Kadiweu no Mato Grosso do Sul, em 1947, é enquadrado pela câmera de Berta Ribeiro, sua esposa e companheira de missão.










Ao concluir este artigo sobre aquela entrevista de 1994 e sobre as fotografias de Darcy Ribeiro com os índios, recordo algumas de suas frases que fizeram história. Muitas delas, especialmente, são reveladoras sobre seu pensamento, sobre o acervo que ele deixou e sobre sua militância política. Palavras de Darcy, lançadas em "O Brasil como problema", livro que ele publicou em 1995 pela Editora Francisco Alves e que retornariam depois com o livro "Confissões", publicado em 1997 pela Companhia das Letras:

"Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil se desenvolver de forma autônoma e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu". E, nas páginas seguintes, uma citação que também poderia ser tomada como conclusão e como lição de vida: "Coragem! Mas vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada".


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Darcy Guarani Kaiowá. In: Blog Semióticas, 26 de outubro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/10/darcy-guarani-kaiowa.html (acessado em .../.../...).









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