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17 de dezembro de 2011

Diva descalça




Superado o estranhamento inicial, o que sobressai 
e permanece é a voz amorosa de Cesária Évora, sua 
tessitura única, quente como um pôr-do-sol tropical. 

–– Tad Hendrickson.   


O que impressiona, no primeiro momento, é a cadência rítmica mais lenta, as texturas sonoras estranhas, os arranjos de instrumentos que lembram o fado português, mas também lembram os clássicos do jazz da Louisiana, a música tradicional do Caribe e da velha guarda do samba do Brasil, o batuque dos rituais de dança e de celebração das tribos da África. Para o público brasileiro, a cena e a música podem parecer ainda mais estranhamente familiares: um grupo afinado e sorridente de músicos, todos negros, uma percussão suave, exótica, dançante e irresistível. Depois dos breves acordes iniciais, a velha senhora entra em cena e caminha, hesitante, descalça, para o centro do palco. A plateia do teatro aplaude com euforia.

A velha senhora também é negra, baixa estatura, mais gordinha, ou talvez "nutridinha", como ela entoa em um verso das canções que virão a seguir. Está vestida em tons escuros, de certa simplicidade, mas com indiscutível elegância e dignidade. Olhar humilde, alguma timidez, mas quando começa a cantar a voz encanta e evoca uma aura de respeito e sofisticação. Canta em português, com um sotaque de nuances indescritíveis, que misturam em sua voz personalíssima e triste, aqui e ali, uma ou outra palavra em francês, uma ou outra expressão que talvez venha dos dialetos africanos.

É Cesária Évora, rainha da morna, embaixadora da música de Cabo Verde, o pequeno arquipélago do Atlântico, na costa africana, que entoa dramática seus grandes sucessos – um repertório que além de mornas também reúne coladeiras, batuques e funanás, melodias e ritmos típicos de seu país, ao mesmo tempo próximos e distantes da música brasileira, da música de Portugal e de outros povos falantes da língua portuguesa, em seu parentesco que mistura alegria e melancolia com nostalgia e com sonoridades de outros lugares, outros continentes, outras tradições culturais.



















Aos 70 anos, a diva dos pés descalços, como foi batizada pela imprensa da França, na década de 1980, morreu hoje em sua terra natal, três meses depois de seus músicos terem anunciado o fim de uma carreira de mais de 50 anos, por conta do estado de saúde que atingiu uma situação muito delicada. Em sua trajetória de mais de cinco décadas dedicadas à música e aos palcos de sua terra natal e de outros países, Cesária lançou 25 discos, entre originais, coletâneas, remixes celebrados pelos principais DJs em atividade e parcerias com outros artistas – entre eles Caetano Veloso e Marisa Monte. “Sôdade”, lançada na década de 1980, foi o maior de seus grandes sucessos e com o passar dos anos permanece como a música mais conhecida da cantora e compositora de Cabo Verde.



Performance parisiense



Além dos discos gravados em formatos de LPs e CDs, ela lançou dois belos DVDs: “Cesária Évora Live D'Amor” e “Live in Paris”. O primeiro, gravado em abril de 2004 no Le Grand Rex, um dos principais teatros de Paris, traz um registro à perfeição que, além da íntegra das 20 canções do repertório do show, inclui três bônus de primeira: um documentário com os bastidores da performance parisiense (que a acompanha do desembarque no aeroporto da capital da França à entrada em cena no teatro), outro com entrevistas e cenas das turnês pelos Estados Unidos, Japão e capitais da Europa, e “Mar del Canal”, um comovente videoclipe com ela e sua banda, produzido para o World Food Programme, fundo humanitário da ONU que atende crianças carentes e refugiados de guerra em 70 países.















O segundo, “Live in Paris”, de 2002, é mais modesto, com o registro do show em som direto. Foi gravado ao vivo no Zenith parisiense e inclui como bônus duas breves sequências: cenas da apresentação de Cize (como era chamada carinhosamente pelos amigos e pelos músicos que a acompanhavam desde os anos 1980) em Havana, Cuba, com participação especial dos remanescentes do Buena Vista Social Club, e da apresentação no mesmo ano no Brasil, onde a rainha da morna dividiu a cena com Marisa Monte.

No Brasil, ainda nos anos 1980, Caetano Veloso foi o primeiro a elogiar as mornas e coladeiras de Cesária Évora. Nos shows do final da década de 1980 e começo dos anos 1990, Caetano incluía “Sôdade”, “Angola” e “Petit Pays”, imitando o sotaque de Cize, quase incompreensível aos ouvidos brasileiros. Eu mesmo, assim como muitos dos fãs da cantora que conheço, temos que confessar que foi através de Caetano que chegamos à arte de Cesária Évora.







Caetano alardeava em entrevistas sua admiração por Cize, a diva que saiu da simplicidade do pequeno país no litoral africano para ganhar o mundo, apresentando-se sempre com os pés descalços em solidariedade às mulheres e crianças miseráveis de seu país. Os elogios de Caetano por certo contribuíram para que os discos de Cesária fossem lançados por aqui, com boas críticas e surpreendente sucesso de vendas.


Mornas, blues, boleros e MPB



Em cenas dos documentários incluídos como bônus em “Live D'Amor”, Cesária Évora fala com carinho do seu público – especialmente dos fãs apaixonados que conheceu no Brasil, em Cuba, nos Estados Unidos e na França. Diz que canta porque não saberia fazer outra coisa na vida. Modéstia de uma artista genial, que comprova na performance gravada com a plateia do Le Grand Rex porque era considerada uma das presenças mais marcantes e poderosas da música contemporânea.

Sua arte cresceu em popularidade internacional especialmente a partir de 2004, quando bateu estrelas de primeira grandeza na mídia e conquistou o Grammy para melhor disco de “world music”. Sempre acompanhada pelos músicos de Cabo Verde, com quem trabalhava desde a gravação do primeiro disco na França, em 1988 (“La Diva aux Pieds Nus”), Cize mistura um aparente descompasso do fraseado com elaboradas harmonias acústicas de violões, cavaquinho, violino, acordeão, percussão e clarineta. 






 
Os ritmos são uma diversidade. As canções do repertório vão desde a morna tradicional de Cabo Verde até o bolero, passando pelo blues norte-americano, com um toque de música do Caribe, alguma coisa do fado português e muito do samba-canção da velha guarda da melhor música popular brasileira. Sim: a música brasileira é o que Cesária Évora destaca como sua maior referência.

Quando no documentário de “Live D'Amor” um jornalista pergunta sobre Billie Holiday e outras possíveis influências do jazz, Cesária sorri, baixa os olhos, faz silêncio, tira uma longa baforada do cigarro, recusa e diz que não concorda com a comparação. Fala com carinho da música dos Estados Unidos, agradece o carinho do público que cultiva em vários países, mas diz que prefere ser comparada às vozes brasileiras, que desde a infância ouvia no rádio.

Quem conhece seus discos sabe que Cize sempre incluiu aqui e ali algum clássico do samba, caso de “Beijo Roubado”, de Adelino Moreira, sucesso dos anos 1950 na voz de Ângela Maria e destaque no repertório de “Live D'Amor”. “Negue” (“seu amor, seu carinho...”), do mesmo Adelino Moreira, é outra pérola da MPB que sempre esteve presente nos shows de Cesária, além de canções dos baianos Dorival Caymmi e Caetano Veloso.






Amor e liberdade



Impressiona o toque sentimental de profunda devoção, algo entre o transe místico e o cantarolar casual numa mesa de bar, registrada por uma edição sempre discreta nas imagens de “Live D'Amor”. Ao invés do ritmo alucinante de videoclipe de hip-hop, que vem contaminando as gravações ao vivo de qualquer gênero, as imagens do show no Le Grand Rex são contemplativas, quase nunca se afastam da bela performance em closes e um ou outro passeio das câmeras pelo palco, no momento dos poucos e inspirados solos do violinista Julián Corrales Subida ou do pianista Fernando Andrade, responsável há décadas pelos arranjos das canções de Cesária.

As mornas e os sambas cantados com a voz sentida de Cesária Évora são acompanhados quase sempre em coro pela plateia parisiense, especialmente “Nho Antone Escaderode”, “Nha Cancera ka Tem Medida”, “Angola” e “Sôdade” (“quem mostrava este caminho longe...”). Mesmo as então inéditas “Isolada” e “Velocidade” provocam comoção e passagens espontâneas com palmas ritmadas.

São canções inesquecíveis, depois que se ouve uma delas pela primeira vez, com atenção, com sons de cordas e percussão suave, pautadas com gentileza, talvez por isso distantes dos ritmos brasileiros mais dançantes. Falando de saudade, de amores errados e de sentimentos que mais separam do que unem as pessoas, a música de Cesária Évora, com seu sotaque carregado que constrói enigmas para outros falantes da mesma língua portuguesa, é daqueles casos que encantam.







Cantora de Mindelo



Cesária Joana Évora nasceu em agosto de 1941 em Mindelo, cidade portuária de São Vicente, uma das ilhas mais áridas, escarpadas e pobres do arquipélago de Cabo Verde, país formado por uma dúzia de pequenas ilhas montanhosas e quase sempre desérticas, de formação vulcânica, ao largo do Senegal, na costa da África no Atlântico. Descoberto em 1456, o arquipélago foi uma importante base de expansão marítima e do comércio colonial português, particularmente no tráfico de escravos.

Desde sua independência de Portugal, em 1975, entretanto, Cabo Verde tem enfrentado dificuldades econômicas as mais complicadas, motivo pelo qual se diz que a música de Cesária Évora é o principal produto de exportação daquele país, que sobrevive do cultivo de milho, café e processamento de pescado. As mornas e coladeiras que Cesária canta quase sempre tocam na história amarga e violenta da dominação portuguesa e do isolamento secular de Cabo Verde.













Na entrevista incluída em “Live D'Amor”, Cesária conta que nasceu em uma família de músicos e que canta desde a infância, em festas populares de sua terra-natal e em programas de rádio. Mas sua carreira ficou interrompida entre 1975 e 1985, quando parou de cantar para procurar trabalho em fábricas e no comércio fora de Cabo Verde.

Em 1985, a sorte sorriu para a diva dos pés descalços: a convite do proprietário de um restaurante e de uma discoteca com música ao vivo em Lisboa, ela volta a cantar e grava um disco, “Crioula Sofredora”, que passou despercebido. No ano seguinte, vai para Paris e é "descoberta" pela imprensa cantando em praças e bares. Dali seguiria para os palcos do mundo.












Em 2004, depois de vencer o Grammy, iniciou sua fase de maior popularidade e chegou às pistas de dança e ao circuito das “raves” por conta do lançamento de “Club Sodade”, surpreendente disco em que suas canções mais populares ganharam remixes e versões eletrônicas por alguns dos DJs mais famosos do planeta, como Rork & Demon Ritchie, Uwe Schmidt (Señor Coconut), Kerri Chandler, Carl Craig, Pepe Bradock, Cris Prolific e François K., entre outros.

Um dos parceiros de Cize de longa data, o músico cabo-verdiano Tito Paris foi entrevistado hoje pela agências de notícias France Presse (AFP) e lamentou a perda. "O artista e o poeta praticamente não morrem. Desaparecem mas não morrem e nós vamos ouvir Cesária até ao fim da nossa vida, ela vai existir com as suas mornas e coladeiras até ao último dia das nossas vidas", afirmou Tito. O mundo da música e Cabo Verde a partir de hoje ficaram mais pobres, tal como enriqueceram no dia em que Cesária Évora nasceu.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Diva descalça. In: Blog Semióticas, 17 de dezembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/12/diva-descalca.html (acessado em .../.../…).



Para comprar o CD de duetos "Cesária Évora",  clique aqui.





















26 de julho de 2011

Imagens do Oitocentos







Apenas em Paris eles fazem do jeito
que eu quero, que é um retrato exato,
mas com a suavidade de um desenho.

–– Charles Baudelaire, 1859.  
      
São imagens impressionantes, cada uma a seu modo, retratando escravos e seus senhores no século 19. Em uma das fotografias, datada de 1899, uma criança branca está montada sobre a babá negra – criança e babá enfeitadas, endomingadas, com aquele olhar de pergunta que têm às vezes as antigas fotografias, as duas em roupas de renda, insinuando através da brincadeira nada inocente o exato retrato de uma época. Em outra imagem, na verdade um cartão-postal datado de 1880, uma ama de leite negra traz outra criança branca, sorridente, amarrada às suas costas.

Um inventário sobre fotografias de negros e escravos no Brasil do século 19 foi reunido por Sandra Sofia Machado Koutsoukos, autora de um extenso dossiê intitulado "Negros no Estúdio do Fotógrafo", uma preciosidade publicada pela Editora Unicamp. Na maioria das fotografias selecionadas, os retratos dos personagens, quase todos na condição de escravizados, com poucas exceções, trazem aquela estranha melancolia que o tempo passado confere às faces e olhares de ilustres e anônimos.

A época em questão, pontuada de contrastes, era marcada pela divisão rigorosa da sociedade em duas categorias de pessoas: os senhores e seus escravos. Os primeiros, europeus em sua maioria, exerciam o poder com mão de ferro e não hesitavam em comprar, vender, subjugar, prender, reprimir ou matar o escravo ou o negro recém-libertado que ousasse contrariar suas vontades ou não se curvasse às suas exigências.









 
 

O segundo grupo, com pessoas nascidas na África ou descendentes diretos de africanos, formava a parte mais numerosa da população no Brasil de nossos avós e de seus pais e parentes, há pouco mais de 100 anos. Esta sociedade dividida entre escravos e senhores, traduzida em fotografias pelo dossiê publicado por Sandra Koutsoukos, também foi registrada pelas tintas e pinceis dos artistas e naturalistas que viajaram em expedições e missões pelo território nacional


Brasil em preto e branco  


Depois das míticas missões de naturalistas estrangeiros, quase sempre comandadas pelos europeus, que rastreavam o território coletando e documentando espécies vegetais e animais e retratando em pinturas e desenhos o povo nativo e seus costumes tropicais, entrariam em cena outros artistas com novas técnicas e maquinarias, uma delas batizada de fotografia ("photographie") por um desenhista, pintor e inventor no Brasil, pelo menos cinco anos antes da palavra e das técnicas fotográficas serem adotadas por outros pioneiros em países da Europa.
 

 

                 
Imagens do Oitocentos: acima,
autorretrato de Hercules Florence,
pioneiro das técnicas processos
fotográficos e inventor da palavra
photographie, em daguerreótipo
datado de 1875. Nas imagens a partir
do alto: 1) daguerreótipo de autor
desconhecido, datado de 1859, que
registra o fidalgo João Ferreira Villela
Artur Gomes Leal com Mônica, uma
escrava identificada como propriedade de
sua família (acervo Museu Afro-Brasil);
2) babá com criança, fotografia de 1882
de Alberto Henschel; e 3) retrato de casal,
fotografia em cartão de visita datado de
1879 de Militão Augusto de Azevedo;
e 4) cerimônia de adivinhação e dança
do século 17 em raro domingo de folga de
escravos em uma fazenda de Pernambuco,
uma das 109 ilustrações em policromia
do diário do Brasil Holandês do
alemão Zacharias Wagener

Abaixo, aquarela que Hércules Florence
produziu (quando acompanhava, contratado
como desenhista e pintor, a Expedição do
Barão Langsdorff pelo território nacional)
para identificar uma fazenda de café em 1829
situada na região da Serra da Mantiqueira,
na Província de Minas Gerais. Também
abaixo, mulher escravizada carrega seu filho
em Salvador, Bahia, em fotografia de 1884
de Marc Ferrez; e três registros fotográficos
sobre as imensas levas de africanos
capturados para trabalhar como escravos
que chegavam ao Rio de Janeiro em
navios negreiros: na primeira e na segunda
imagem, fotografias de autores anônimos
em meados do século 19; na terceira imagem,
fotografia de Marc Ferrez de 1882 registra
um grupo de escravos libertados antes do
desembarque no Rio de Janeiro, a bordo
do HMS London, navio inglês que perseguia
traficantes de cativos africanos nos oceanos
Índico e Atlântico, devolvendo-os à liberdade















A palavra, que vem do grego antigo φως [fós] ("luz") e γραφις [grafis] ("estilo", "pincel''), formando γραφη [grafê], que significa "desenhar com luz e contraste”, ao que se sabe teria sido usada pela primeira vez por Hercules Florence (1804-1879), francês naturalizado brasileiro. Integrante da lendária Expedição do Barão Langsdorff, Hércules Florence chegou ao Rio de Janeiro em 1824 com a tarefa de fazer o relato completo da aventura da expedição, que percorreu mais de 13 mil quilômetros do ainda desconhecido território nacional, entre os anos de 1825 a 1829

Além de concluir o único relato completo sobre a expedição científica, Hércules Florence também produziu a maior parte da documentação iconográfica com suas habilidades incomuns de desenhista, polígrafo e incansável inventor de novas técnicas e processos – uma de suas invenções, somente reconhecida recentemente, quase dois séculos depois de suas primeiras experiências, foi o processo fotográfico.

Mais de 100 anos depois da morte de Hércules Florence, o exame detalhado de manuscritos e relíquias de acervo do pioneiro foi feito pelo especialista Boris Kossoy. As peças do acervo e os relatos registrados em sua época pelas autoridades do Império e pelo próprio Florence, levaram Kossoy a comprovar o emprego pioneiro por Hércules Florence da palavra "photographie", pelo menos cinco anos antes que o vocábulo e também o processo a que se referiam fosse utilizado pela primeira vez na Europa.

Entre as experiências impressionantes realizadas por Hércules Florence está, entre várias outras, a fotografia, em 1833, em Campinas, São Paulo, da imagem de uma janela. O pioneiro, de acordo com seus próprios relatos, registrados em documentos cartoriais, utilizou uma caixa equipada com uma lente e um papel embebido em nitrato de prata. Cinco anos depois, em 1837, em Paris, França, Louis-Jacques Mandé Daguerre aperfeiçoa o sistema, que também vinha sendo testado por Joseph-Nicéphore Niepce, e vende a patente do “daguerreótipo” para o governo da França.


















A fotografia no fim do mundo 
 


A prática da escravidão, disseminada em todo o território brasileiro e garantida por leis até o final do século 19, também deixou como registros as imagens fotográficas: os escravos e seus senhores foram registrados pela maioria dos pioneiros da fotografia que atuaram no Brasil – à maneira do que fizeram antes, utilizando desenhos e pinturas, artistas como o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) e o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), como aponta a pesquisadora Sandra Sofia Machado Koutsoukos em "Negros no Estúdio do Fotógrafo" (Editora da Unicamp, 2010). 

Graduada em Belas Artes pela UFRJ, mestre em Artes e doutora em Multimeios, Mídia e Comunicação pelo Instituto de Artes da Unicamp, com pesquisa de pós-doutorado apoiada pela Fapesp, Sandra Koutsoukos apresenta em seu livro-tese um acervo de documentos pouco conhecidos e imagens raras, belas e impressionantes, garimpado em diversas instituições pelos quatro cantos do Brasil.

 
 




Acima, imagem reproduzida na capa do
livro Negros no Estúdio do Fotógrafo:
senhora da família Costa Carvalho em
Salvador, Bahia, na cadeirinha de passeio,
também chamada de "liteira", com dois
escravos descalços a seu serviço, em
daguerreótipo anônimo datado de 1860.

Abaixo, duas cenas de rua também com
liteiras de transporte com os senhores
carregados por seus escravos: em Manaus,
no Amazonas, em 1860, em fotografia de
George Leuzinger, e em Salvador, Bahia,
em fotografia de 1869 de Alberto Henschel.
Também abaixo, daguerreótipos que
registram o trabalho de escravos em
fazendas de café, na região da Serra da
Mantiqueira, nas províncias dos estados
de Minas Gerais e São Paulo




















"Negros no Estúdio do Fotógrafo" surge como um estudo pioneiro, reunindo imagens que permaneciam inéditas sobre as representações de pessoas negras, livres, forras e escravas, produzidas em estúdios de fotografia, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. “As cenas construídas nos estúdios, com os símbolos que expunham, eram 'narrativas', mensagens facilmente entendidas pelos parentes e amigos que recebiam os retratos dos entes queridos ou dos conhecidos”, explica Sandra Koutsoukos. “Os retratos deviam deixar explícita a posição que a pessoa ocupava, ou que pretendia demonstrar que ocupava. Embora fossem cenas 'construídas', ou por isso mesmo, costumavam deixar claro o papel de cada um”.

A pesquisadora também destaca em cada fotografia os sinais legíveis, a “narrativa construída” sobre o que o corpo de um escravo ou ex-escravo podia conter, das marcas e cicatrizes às mutilações pelo trabalho ou por açoites, até indicativos simbólicos como o sapato, que em pé de negro costumava indicar liberdade. O livro está organizado em três capítulos, tão breves quanto reveladores. São eles "A fotografia no Brasil no século 19", "Entre liberdade e escravidão, na fotografia" e "Na casa de correção da corte, a Galeria dos Condenados". Em cada capítulo, Sandra Koutsoukos enumera fotografias e estudos de fontes agrupadas em três categorias.





Na primeira categoria listada por Kotsoukos, estão fotografias de negros transformados em escravos para o trabalho doméstico que foram levados aos estúdios por seus senhores, os quais queriam aquelas fotos em seus álbuns de família. Na segunda categoria estão as fotografias que foram exploradas na chave do "exótico" e vendidas como souvenir a estrangeiros. Na terceira categoria, fotografias etnográficas, produzidas para servir de suporte a teorias racistas que na época estavam em voga e que são repetidas ainda hoje de forma criminosa por grupos racistas de extrema direita e por fascistas em geral. 
 

Acervo de escravos e libertos



A Galeria dos Condenados representou a maior surpresa para Sandra Koutsoukos, autora de "Negros no Estúdio do Fotógrafo". Na extensa trajetória de anos de pesquisas e viagens pelo Brasil e por acervos do exterior, relata a autora, foi um susto a descoberta das fotos de negros escravos na condição de presos em dois álbuns por ela localizados e que permaneciam praticamente inéditos há mais de um século. 














Assombra o leitor, no relato de Sandra Koutsoukos, não só as minúcias descritivas mas também as imagens fotográficas que ilustram o texto sobre a tal Galeria dos Condenados – impressionante também pela curiosidade adicional da feitura dos álbuns na época, decorrentes do fato de que o próprio fotógrafo era um dos prisioneiros. Os motivos que levaram à montagem dos álbuns, entretanto, ainda permanecem como enigmas.

"No decorrer do trabalho de pesquisa nos arquivos, bibliotecas e coleções, a surpresa maior foi quando pus as mãos nos dois álbuns da Galeria dos Condenados, com fotos de presos que estavam na Casa de Correção da Corte na década de 1870, constantes da Coleção Dona Theresa Christina na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro", destaca Koutsoukos.










Memórias da escravidão: as amas
de leite negras eram encomendadas e
compradas pelos nobres e senhores de
engenho para servir à casa grande e para
cuidar de suas crianças brancas
 










"Surpresa, pela riqueza, qualidade e quantidade de fotos. Susto, pelo trabalho que não contava que iria ter. Como falar daquelas fotos? Falar o quê, se eu nem sequer imaginava para que os álbuns haviam sido montados? Por onde começar", ela recorda, reconstituindo os passos que levaram à conclusão da pesquisa e à sua posterior transformação no livro agora lançado pela Unicamp.

Sandra Koutsoukos também destaca a importância do estudo na abordagem pioneira entre liberdade e escravidão no universo da fotografia: para uma pessoa negra livre ou forra "parecer livre", havia a necessidade de se fazer aceita (ou, ao menos, tolerada) pela sociedade e, dessa forma, tentar abrir nela o seu espaço. Estar representado em uma imagem fotográfica trazia para o indivíduo uma posição simbólica que o distinguia na esfera social.









"Comparo, no livro, algumas fotos de negros livres e de negros forros com fotos de escravos domésticos. Nas fotos, os pés, calçados ou descalços, costumavam expor a condição social do retratado. Pelo menos, os símbolos pé descalço ou sapato eram dessa forma exibidos e entendidos", explica a autora. 



Amas de leite e amas-secas



Sobre as amas de leite e amas-secas, Sandra Koutsoukos destaca que elas são maioria no acervo enumerado ao longo dos anos de pesquisa. "No texto, tento traçar a complexidade do tema da amamentação (por mãe, por ama, por animal, por objeto) à época, e os problemas que advinham dele para as partes envolvidas: o bebê branco é o interesse da fotografia encomendada", aponta. 








A questão, ela explica, volta-se para o entendimento dos motivos pelos quais as amas foram retratadas sempre de forma que se pretendia tão "positiva" - tentando passar ideias de intimidade, harmonia e afeto, num período em que já se condenava o uso de amas de leite e se tentava estimular a construção da imagem da "nova mãe", a mãe branca que amamentava seus próprios filhos.

Aos raros e pioneiros estúdios fotográficos do século 19, destaca Koutsoukos, iam pessoas de todas as camadas sociais, desde a alta sociedade até os mais humildes. No livro, o que se vê são retratos impressionantes de uma época: negros libertos e escravos domésticos, além da sequência final com as fotos de presos da primeira penitenciária do Brasil.







Por meio de vasta pesquisa, a autora traça o caminho daqueles retratos, sua significação, sua circulação e seu armazenamento em álbuns. Ao explorar as histórias por trás das imagens, o livro dá vida a cada um dos personagens – trazendo à memória do leitor seus próprios álbuns e retratos.

Ou, como conclui a autora ao final de seu relato em "Negros no Estúdio do Fotógrafo", trata-se de um acerto de imagens que não só impressionam, mas que são também reveladoras sobre as dimensões dos problemas do Brasil atual, na medida em que as lições do passado costumam equacionar as melhores soluções para os desafios do presente.


Arturos, um tributo à tradição


Enquanto o livro “Negros no Estúdio do Fotógrafo” resgata um acervo inédito sobre os primórdios da fotografia no Brasil, um outro trabalho de pesquisa registrado em belas imagens em preto-e-branco pelo fotógrafo e pesquisador Mário Espinosa apresenta a beleza e a tradição da Comunidade Negra dos Arturos em Minas Gerais. Uma seleção de 20 imagens belas e surpreendentes de Espinosa ganhou uma exposição recente e incomum na praça do Big Shopping, em Contagem, Minas Gerais. 

 





Nascido em 1943 em Montevidéu, Uruguai, e naturalizado brasileiro desde 1974, quando se casou com uma brasileira, Mário Espinosa, que é afro-descendente e professor universitário, pesquisa há décadas as manifestações culturais que ele define como "afro-diaspóricas" – aquelas que sobrevivem em remanescentes de comunidades quilombolas.

A mostra, que ele define como ''um estudo sobre a abolição da escravatura no Brasil'', destacou as tradições culturais de um dos mais importantes patrimônios históricos de Contagem. As 20 fotografias, que registram a festa da Abolição da Escravatura realizada pela comunidade em maio de 2007, foram doadas pelo próprio Mário Espinosa para os Arturos. 

 




"Foi um amigo de Minas Gerais, também jornalista, quem me passou a sugestão para visitar a comunidade quilombola dos Arturos. Fui conferir e foi uma paixão à primeira vista. Desde então tenho viajado a Contagem com muita frequência, pelo menos duas vezes por ano, e com duas datas marcadas: na festa do Rosário e na festa da Abolição da Escravatura. Não tem mais jeito de evitar: além da relação de pesquisa, também já estabeleci com a comunidade uma relação afetiva muito forte", destaca o fotógrafo.

Nas fotografias de Mário Espinosa, a música e as danças religiosas do congado estão representadas em cenas expressivas que revelam a intimidade dos Arturos, remanescente de um antigo quilombo que é considerado um dos patrimônios históricos e também, de forma até contraditória, um cartão postal de Contagem, mais conhecida por ser uma cidade industrial.

 
Escravos e seus descendentes


A comunidade dos Arturos foi fundada há cerca de 120 anos, em meados do século 19, pelos escravos Artur Camilo Silvério e sua esposa Carmelinda Maria da Silva. Seus descendentes, filhos, netos e bisnetos, constituem cerca de 70 famílias que se dedicam a preservar sua identidade cultural de origem africana, transmitida de geração em geração há quase dois séculos.

"Estas fotos que doei para a comunidade dos Arturos fazem parte de um acervo muito maior, que hoje soma mais de 5 mil imagens", explica Mário Espinosa, que tem planos de realizar uma grande exposição itinerante por outras cidades do Brasil e de outros países sobre o tema e publicar um livro com uma seleção representativa de seu acervo sobre a comunidade quilombola.




"Já encaminhei o projeto completo para um edital de incentivo e agora estou aguardando o resultado. Se tudo der certo, começaremos em breve a apresentar esta grande exposição itinerante que deve reunir cerca de 70 fotografias ampliadas em grande formato, com um catálogo que registre a exposição e uma amostragem geral sobre estes anos de pesquisa e contato com a comunidade dos Arturos", explica o fotógrafo, que para a publicação do catálogo já conta com parceria com o jornalista Oswaldo Faustino.

"Em comum a todas as fotos está a memória das tradições de origem africana que sobreviveram até os nossos dias. E tudo registrado em preto-e-branco, porque só o preto-e-branco traduz a beleza e a melancolia de um tema como este. A cor é muito festiva. Prefiro o preto-e-branco pelo resultado plástico e porque é a técnica sobre a qual tenho mais domínio. Creio que imagens coloridas não conseguiriam jamais alcançar o efeito que tenho procurado", completa.

por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Imagens do Oitocentos. In: Blog Semióticas, 26 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/imagens-do-oitocentos.html (acessado em .../.../...).










Imagens do Oitocentos: fotografia com data
de 1899, extraída do álbum de família
do autor do Blog Semióticas, mostra
uma criança branca montada a cavalo
sobre as costas de uma babá negra



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