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24 de agosto de 2022

Estratégias do Zé Carioca

 





O que faço é um trabalho de amor. Eu não entrei

neste negócio apenas para ganhar dinheiro.

Walt Disney (1901-1966).


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Criado por Walt Disney durante uma viagem ao Rio de Janeiro e, oficialmente, lançado em 24 de agosto de 1942, Zé Carioca completa hoje seu aniversário. Trata-se de um caso exemplar das estratégias políticas que usam personagens de histórias infantis e, na perspectiva do Brasil, um capítulo importante da invasão cultural norte-americana, como já foi apontado por diversos estudos. São 80 anos de existência do único personagem brasileiro na The Walt Disney Company – uma data comemorada com homenagens e grandes negócios anunciados para os próximos meses. Entre as homenagens, novas histórias em quadrinhos, com o relançamento da revista do personagem e de uma edição especial do “Almanaque do Zé Carioca”, além do lançamento de três livroinéditos: “O essencial do Zé Carioca: celebrando os 80 anos de sua estreia”, pela editora Culturama, que desde 2020 assumiu a publicação das revistas Disney no Brasil; “Zé Carioca conta a história do Brasil”, um projeto do escritor Eduardo Bueno; e "Muito prazer, Zé Carioca", uma biografia do personagem escrita por Jorge Carvalho de Mello. 

Entre os negócios anunciados também estão relançamentos do personagem no canal Disney Plus, uma programação de eventos criada em parceria da Disney com o canal ESPN e conteúdos especiais nos sites e redes sociais da empresa, além de coleções temáticas do Zé Carioca licenciadas pela primeira vez para roupas, brinquedos, instrumentos musicais e acessórios que serão vendidos em parcerias com diversas marcas no Brasil e em outros países. Com as estratégias comerciais, a meta é reposicionar o personagem em destaque entre os produtos da Disney, depois do quase esquecimento nas últimas décadas, quando até suas revistas tiveram publicação cancelada no mercado brasileiro. Nos últimos anos, o Zé Carioca apareceu apenas ocasionalmente em pequenas histórias no “Almanaque Disney”.







Estratégias do Zé Carioca: no alto, a nova versão do
personagem, que chega ao 80 anos. Acima, Zé Carioca
na nova imagem para o reposicionamento comercial.

Abaixo, Walt Disney e sua equipe desembarcando
no Rio de Janeiro, em 1941, no programa de governo
nomeado como Política da Boa Vizinhança; e o cartaz
original da estreia de Zé Carioca no cinema, ao lado
do Pato Donald, no filme de 1942 "Alô Amigos"




             

A história do Zé Carioca teve início sob encomenda para um projeto político: assim que foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial, Walt Disney foi destacado pelo Departamento de Estado para a missão de criar peças de cinema e de histórias em quadrinhos para a aproximação dos Estados Unidos com os países da América Latina, dentro das estratégias da chamada Política da Boa Vizinhança, criada pelo governo Franklin Roosevelt na década de 1930, e que ganhou força para conquistar a simpatia dos governos e dos povos latino-americanos em tempos de guerra contra os nazistas. No vértice brasileiro da aproximação estão acordos comerciais com o governo de Getúlio Vargas e a importação pelos Estados Unidos de Carmen Miranda, na época a maior estrela da música, do rádio, do cinema e do teatro de revista no Brasil. Carmen embarcou para os EUA em 1939, alcançando em pouco tempo um sucesso estrondoso na Broadway e em Hollywood.


Malandro, alegre, hospitaleiro


Na sequência dos acordos comerciais e de geopolítica dos EUA com o governo Vargas, viriam dois grandes projetos de cultura e política a cargo de Orson Welles e de Walt Disney. O filme de Orson Welles no Brasil, “It’s All True”, jamais foi concluído pelo cineasta, que retornou aos EUA no final de 1942 depois de filmagens que foram uma sucessão de escândalos e de acidentes. Walt Disney, por sua vez, chegou com sua equipe ao Brasil em 1941 e, assim como Welles, ficou encantado com a cultura brasileira. Durante a viagem de Disney veio a inspiração para criar o Zé Carioca, um papagaio malandro, alegre e hospitaleiro, que vivia no morro da favela, enrolava seu próprio cigarro, gostava de feijoada, de cachaça e de futebol. Sua estreia aconteceu em 1942, no filme “Alô Amigos” ("Saludos Amigos" / "Hello Friends"). Com o sucesso comercial do filme, nos EUA, no Brasil e em outros países, Zé Carioca retornaria em uma série de histórias em quadrinhos e em outros dois filmes: “Você já foi à Bahia?” ("The Three Caballeros", 1944) e “Tempo de Melodia” ("Melody Times", 1948).








Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
bebe cachaça com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, o presidente Getúlio Vargas
(à esquerda) com Walt Disney (à direita) no
Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Abaixo,
um encontro do maestro Heitor Vila Lobos com
Walt Disney, também no Rio de Janeiro






Em “Alô Amigos”, sexto longa-metragem de animação de Walt Disney (os anteriores foram "Branca de Neve e os Sete Anões", "Pinóquio", "Fantasia", "Dumbo" e "Bambi"), há quatro histórias, ou quatro segmentos, cada um representando um país, e todos estão interligados. No primeiro, "Lago Titicaca", o turista norte-americano Pato Donald visita o Peru; no segundo, "Pedro", um pequeno avião parte do Chile para buscar correspondência aérea na Argentina; no terceiro, "O Gaúcho", Pateta é o cowboy dos EUA que vai aos pampas argentinos; no quarto, "Aquarela do Brasil", Zé Carioca recebe o viajante dos EUA, o Pato Donald, e o acompanha em um passeio pelo Rio de Janeiro e por diferentes paisagens do Brasil, seguindo também pela América Latina. Donald, que havia estreado no cinema em 1934, em um episódio curto do filme “Sinfonias Tolas” (“Silly Simphony”), aparece em forma redesenhada e definitiva, com o uniforme azul e branco de marinheiro – na verdade um “mariner”, integrante do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, evidentemente destacado para um “esforço de guerra”.

No mesmo ano de 1942, Donald apareceria em outro filme de propaganda de guerra, o desenho anti-nazista “A Face do Fuehrer” (“Der Fuehrer’s Face”), que venceu em 1943 o Oscar de melhor curta-metragem de animação. Donald também é protagonista em “O Espírito de 1943” (“The Spirit of ‘43”), filme curto em que ele seráconvencido a doar parte de seu salário de trabalhador para as campanhas da guerra, e em outros dois filmes de animação em longa-metragem com Zé Carioca, os já citados “Você já foi à Bahia?” e “Tempo de Melodia”. “Alô Amigos” seria um grande sucesso comercial de Disney, apresentando na trilha sonora duas canções brasileiras que se tornariam populares no mundo inteiro: “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, e “Tico-Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu, que seriam gravadas em seguida por Carmen Miranda e por muitos artistas de diversos gêneros e nacionalidades, de Frank Sinatra e Ray Conniff a Paco de Lucia e Xavier Cugat, entre outros.






             






Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
dança o samba com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, Walt Disney (de bigode) e sua
equipe visitam a quadra da escola de samba Portela
na companhia de Paulo da Portela.

Abaixo, Carmen Miranda durante as filmagens
de "Uma Noite no Rio", em 1941, com
o músico Zezinho (de camisa listrada), que foi
um dos integrantes do grupo Bando da Lua e
o dublador de Zé Carioca em "Alô Amigos"
 









A gênese do papagaio carioca


O sucesso no cinema levou Zé Carioca para as páginas das histórias em quadrinhos. No final de 1942, ele surgiria em tirinhas publicadas por vários jornais nos EUA e, nos anos seguintes, chegaria ao Brasil e a outros países no formato de revista em quadrinhos que exploravam o exotismo das paisagens do Rio de Janeiro. Na biografia de Walt Disney publicada em 1994, “An American Original” (Disney Editions), o autor Bob Thomas descreve as circunstâncias que levaram Disney a criar o personagem em uma suíte do Hotel Copacabana Palace, que esteve temporariamente transformada em estúdio, enumerando referências que estão na gênese do filme "Alô Amigos" e do personagem do papagaio malandro. Tudo indica que na origem do Zé Carioca estão ideias originais de José Carlos de Brito e Cunha, mais conhecido como J. Carlos, cartunista que fazia sucesso na revista “O Tico-Tico”.

Entre outros personagens que o cartunista desenhava para “O Tico-Tico”, havia um papagaio sem nome que fumava charuto e aparecia ocasionalmente em charges e histórias de outros personagens. Ao tomar conhecimento dos projetos para o filme e para um novo personagem que seria criado, J. Carlos presenteou Disney, durante um jantar, com um desenho do tal papagaio que ele havia criado. No desenho, o papagaio abraçava o Pato Donald. Segundo o biógrafo Bob Thomas, o desenho de J. Carlos, associado a outras referências de pessoas do meio artístico que Disney conheceu no Brasil, levariam à concretização do personagem Zé Carioca. Entre as referências também estava o músico e humorista Zezinho (José do Patrocínio Oliveira), que tocava cavaquinho no grupo Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda. Não por acaso, Zezinho é o dono da voz que dubla o Zé Carioca em “Alô Amigos”.






Estratégias do Zé Carioca: acima, uma
reunião no hotel Copacabana Palace, no
Rio de Janeiro, em 1941, com Jorge Guinle,
dono do hotel, Carmen Miranda e Walt Disney.
Abaixo, Walt Disney filmando nas areias da
praia de Copacabana e passeando de barco
na baia da Guanabara com a equipe de trabalho
















Outras influências para a criação do personagem Zé Carioca vêm do charuto que o compositor Heitor Vila Lobos sempre fumava e dos olhos azuis do compositor Herivelto Martins – duas das personalidades muito populares da época, no meio artístico do Rio de Janeiro, que tiveram vários encontros com Walt Disney, tanto em reuniões de trabalho como em jantares e passeios pelos mais conhecidos cenários cariocas. O biógrafo também cita os convites que foram feitos pessoalmente por Disney para o compositor Ary Barroso, para o maestro Vila Lobos e para o cartunista J. Carlos, para que eles fossem trabalhar sob contrato com a equipe Disney em Hollywood, mas todos eles recusaram as propostas.

Nos anos seguintes, Ary Barroso venderia os direitos de algumas canções para filmes da Disney e para outros estúdios de Hollywood. Vila Lobos, no final da década de 1950, seria contratado para criar a trilha sonora de "Green Mansions" (no Brasil, "A flor que não morreu"), superprodução da Metro Goldwyn Mayer com direção de Mel Ferrer e com Audrey Hepburn e Anthony Perkins no elenco. O maestro brasileiro compôs uma peça sinfônica belíssima, hoje conhecida como "Floresta do Amazonas", mas ficou extremamente insatisfeito com o uso que fizeram de suas partituras na trilha sonora da versão final do filme e nunca mais quis repetir a experiência.


Do cinema para os quadrinhos


Na temporada de Disney no Brasil há também a presença de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, que acompanhou uma visita de Disney e sua equipe à quadra da escola de samba na Guanabara e deixou Disney impressionado por sua elegância, sua alegria e sua gentileza hospitaleira – as mesmas características que seriam levadas para o filme “Alô Amigos” e que ficaram visíveis na recepção que Zé Carioca faz para o Pato Donald no Rio de Janeiro. Bob Thomas também cita outro brasileiro como referência para a criação do papagaio: o advogado Manuel Vicente Alves, mais conhecido como Dr. Jacarandá, um tipo folclórico na época, na zona sul carioca, que também foi apresentado a Disney na visita da equipe à quadra da Portela. Tal como aconteceria com Zé Carioca, o Dr. Jacarandá sempre usava, sob o sol escaldante do Rio de Janeiro, chapéu panamá de aba reta, paletó de alfaiataria, camisa social com gravata borboleta colorida e um inseparável guarda-chuva.









Estratégias do Zé Carioca: no alto, a capa
da primeira edição do livro "An American Original",
biografia de Walt Disney escrita por Bob Thomas.
Acima, o Zé Carioca em sua imagem clássica.

Abaixo, os encontros de Walt Disney com
o compositor Ary Barroso e com Alceu Penna,
ilustrador da revista O Cruzeiro, no hotel
Copacabana Palace em 1941










Nos estúdios Disney, Zé Carioca ganhou vida também sem a presença do Pato Donald. As tirinhas e histórias em quadrinhos do personagem, criadas a partir de 1942, tiveram roteiro de Hubie Karp e desenhos de Bob Grant e Paul Murry – os três integrantes da equipe Disney que também trabalharam no filme “Alô Amigos”. O personagem, batizado como Joe Carioca, estreou nas páginas de jornais e revistas dos EUA em outubro de 1942 e quatro meses depois chegava ao Brasil publicado em “O Globo Juvenil”, suplemento mensal que circulou entre 1937 e 1952, em formato tabloide de 16 páginas impressas em papel jornal, tendo como editor Nelson Rodrigues, que ganharia notoriedade como cronista e dramaturgo. As histórias do Zé Carioca também tiveram uma edição especial publicada pela Editora Melhoramentos em 1945: o personagem, fumando seu charuto, aparece na capa tendo ao fundo a baía da Guanabara.

Nas páginas de “O Globo Juvenil”, Zé Carioca faria sucesso com suas histórias e tirinhas intercaladas com quadrinhos que traziam heróis estrangeiros como Superman, Mandrake, O Fantasma, Flash Gordon, Brucutu e Ferdinando, entre outros. A primeira vez que Zé Carioca apareceu na capa de uma revista foi na primeira edição de “O Pato Donald”, que inaugurou a parceria comercial entre Disney e a Editora Abril, em julho de 1950, participando apenas de uma história. Depois desta primeira fase do personagem, Zé Carioca retornaria somente na década de 1960 às revistas dos personagens Disney. Em 1961, ele ganharia sua própria revista de publicação semanal com histórias inéditas, criadas no Brasil, e com adaptações de histórias de outros personagens da Disney, tendo na capa da primeira edição o título "O Pato Donald apresenta Zé Carioca". Em 2018, depois de 68 anos, a Editora Abril encerrou seu contrato de publicação das revistas Disney, que desde 2020 passaram a ser publicadas pela Editora Culturama, mas várias revistas permanecem canceladas.







Estratégias do Zé Carioca: acima, o papagaio
malandro criado por J. Carlos para as charges
da revista "O Tico-Tico", uma das fontes de
inspiração para Walt Disney criar o Zé Carioca.

Abaixo, uma sequência dos primeiros esboços
da equipe Disney para o personagem; e a capa
da primeira edição da revista "O Pato Donald"
no Brasil, em junho de 1950, que teve a presença
de Zé Carioca como convidado especial








As intenções políticas


O encontro de Zé Carioca com o Pato Donald em “Alô Amigos” também é um campo fértil para estudos políticos e de historiografia. No livro “The Hispanic Image on the Silver Screen” (“A imagem hispânica na tela de prata”, Editora Greenwood, 1992), o historiador Alfred Charles Richard Jr. apresenta uma constatação que se tornou célebre: segundo ele, o filme “Alô Amigos” conseguiu consolidar, para grande parte do público de países da América Latina, em poucos meses, mais simpatia pelos Estados Unidos do que as ofensivas do Departamento de Estado norte-americano conseguiram antes em mais de 50 anos de ocupações militares e de ações diplomáticas.

Em seu estudo, Richard Jr. avalia os efeitos que o cinema de Hollywood teve sobre o público na formação e na propagação de estereótipos, assim como as relações muito próximas entre o cinema norte-americano e a política de outros países da América, com filmes que, com muita frequência, justificavam e glorificavam a intervenção dos Estados Unidos nos assuntos das nações latino-americanas. No caso brasileiro, tais intervenções são especialmente visíveis em dois momentos de regimes ditatoriais: primeiro, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, que coincide com a vigência da Política da Boa Vizinhança do governo Roosevelt; e posteriormente na ditadura militar que tomou o poder no período de 1964 até os anos 1980.










Estratégias do Zé Carioca: acima, Walt Disney
passeando na praia de Copacabana, em 1941;
e desenhando croquis e cenários para o filme
"Alô Amigos" com Mary Blair na varanda do hotel,
no Rio de Janeiro. Abaixo, Walt Disney passeando,
anônimo no meio da multidão na Avenida Rio Branco,
centro do Rio de Janeiro, fotografado para reportagem
da revista "Life" por Hart Preston; e o encontro
entre o presidente do EUA, Franklin Roosevelt,
e o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, em
Natal, Rio Grande do Norte, em janeiro de 1943.

Também abaixo, a capa da edição brasileira
do livro de Ariel Dorfman e Armand Mattelart,
"Para ler o Pato Donald"; e uma seleção de
capas históricas do Zé Carioca no Brasil:

1) Zé Carioca, edição especial da Melhoramentos em
1945; 2) Zé Carioca na capa de "O Globo Juvenil" em
janeiro de 1944; e 3) Zé Carioca na primeira edição de
sua revista, em 1961, que traz na capa o título
"O Pato Donald apresenta Zé Carioca"







Tais associações entre ações políticas, cinema, literatura e estereótipos instrumentalizados na cultura brasileira são também abordadas em diversos estudos de crítica literária, de comunicação social, de sociologia e de antropologia, entre eles “Dialética da Malandragem” (Revista de Estudos Brasileiros da USP, 1970), de Antonio Candido; “Carnavais, Malandros e Heróis” (Editora Rocco, 1979), de Roberto da Matta; e "A Invasão Cultural Norte-Americana" (Editora Moderna, 1988), de Júlia Falivene Alves. Uma abordagem mais específica sobre o tema, feita a partir da análise de personagens de Walt Disney e de sua influência na América Latina, foi publicada em 1971, no Chile, por Ariel Dorfman e Armand Mattelart, e se tornaria um clássico incontornável: “Para ler o Pato Donald – Comunicação de massa e colonialismo”, que teve primeira edição no Brasil em 1977, pela Editora Paz e Terra, em tradução do historiador de quadrinhos Álvaro de Moya.

Dorfman, nascido na Argentina, e Mattelart, nascido na Bélgica, ambos militantes de esquerda na luta pelos Direitos Humanos, propõem, em suas próprias palavras, um “manual de descolonização” a partir de uma leitura dos quadrinhos por um viés marxista. Uma definição reveladora sobre o estudo é apresentada de forma resumida, pelos próprios autores, na abertura do terceiro capítulo do livro: “Os povos subdesenvolvidos são para Disney, então, como as crianças; devem ser tratados como tais, e se não aceitam essa definição de seu ser, é preciso descer suas calças e lhes dar uma boa surra. Para que aprendam!” Observadas com um intervalo histórico de mais de 50 anos, pode-se perceber com muita clareza o quanto as análises radicais e ideológicas de Dorfman e Mattelart removeram as máscaras de inocência e de ingenuidade que, por muito tempo, conseguiram disfarçar o aparato violento de dominação cultural e os mecanismos agressivos de propaganda política, manipulados, desde sempre, para favorecer e fortalecer os interesses do império norte-americano.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Estratégias do Zé Carioca. In: Blog Semióticas, 24 de agosto de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/08/estrategias-do-ze-carioca.html (acessado em .../.../…).

















4 de julho de 2012

Alice volta ao futuro






Preciso dizer que, quando acordei hoje de 
manhã, eu sabia quem eu era, mas acho 
que já mudei muitas vezes desde então. 

(Alice no País das Maravilhas)   



Os inúmeros trocadilhos e enigmas de matemática, de lógica, de gramática e de ocultismo cifrados nas viagens de “Alice no País das Maravilhas” (1865) e “Alice Através do Espelho” (1872) encantaram a pequena Alice Pleasance Liddell (1852–1934) desde que ela ouviu pela primeira vez os relatos da imaginação de seu professor, o matemático, poeta e pioneiro da fotografia Charles Lutwidge Dodgson (1832–1898). As aventuras da garotinha que cai no buraco do coelho e descobre um estranho mundo de simetrias e disparates também passaram a encantar uma legião infinita de leitores quando foram publicadas por Dodgson sob o pseudônimo “Lewis Carroll” – na verdade, um anagrama em analogia para “Alice Liddell”.

O pseudônimo adotado pelo professor Dodgson ganhou lugar cativo entre os grandes mestres da literatura universal e as aventuras cifradas de Alice, que causaram espanto e admiração entre seus conterrâneos e contemporâneos, resistem incólumes. Transformada em clássico dos clássicos da fantasia e das heterotopias, “Alice” atravessou as décadas e os séculos ganhando novas edições e incontáveis versões, incluindo variações e paródias em livros, histórias em quadrinhos, peças de teatro, músicas, balés, filmes, séries de TV e até videogames (como "Alice: Madness Returns", game criado para várias plataformas pelo designer American James McGee, que transformou a história em uma saga de horror). As aventuras de Alice, seja no original de Lewis Carroll ou em suas variantes em outros formatos e mídias, há tempos vêm influenciando e seduzindo listas intermináveis de artistas, entre eles nomes díspares e mestres consagrados como Walt Disney (1901–1966) e Salvador Dalí (1904–1989).









Alice Pleasance Liddell fotografada
por Lewis Carroll aos 8 anos de idade e aos
18. No alto, Alice fotografada aos 20 anos,
em 1872, por Julia Margaret Cameron.

Abaixo, as irmãs Edith, Lorina e Alice
fotografadas em 1860 por Lewis Carroll;
Também abaixo, Alice, Dodgson e uma
das ilustrações criadas por John Tenniell
para a primeira edição de
Alice no País das Maravilhas






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O mestre dos desenhos animados, que sempre reconheceu a literatura de Lewis Carroll como influência marcante, elegeu “Alice” para seu primeiro projeto de longa-metragem nos cinemas desde que foi para Hollywood, em 1923, mas sua produção seria atropelada diversas vezes por lançamentos dos concorrentes. “Alice”, na versão dos Estúdios Disney, só seria concluído em 1951, contando com a luxuosa supervisão de Salvador Dalí. O lançamento do filme, contudo, seria precedido por desentendimentos que interromperam a promissora parceria entre o mestre dos desenhos animados e o mestre surrealista.

Disney e Dalí romperam relações antes de “Alice” chegar aos cinemas: o nome de Dalí seria eliminado dos créditos e um outro projeto ambicioso da parceria, batizado de “Destino”, que começou a ser produzido em 1945 e que tentaria recriar a obra original do professor Dodgson, ficaria inacabado. Na autobiografia “Diário de um Gênio” (Tusquets Editores), Dalí lamenta o rompimento e afirma que sua parceria com Disney poderia ter dado origem a um filme diferente de tudo o que tinha sido visto no cinema. Anos depois, no final da década de 1950, Dalí e Disney voltaram a se entender e conviveram como amigos, mas os antigos projetos não foram retomados.












Dodgson, Disney, Dalí: D'Alice



A ideia de Dalí, a princípio endossada por Disney, era apresentar sequências que lembrariam sonhos, desenvolvendo uma técnica de projeção em que a imagem seria reconhecida como algo familiar e, lentamente, forçaria a visualização de formas cada vez mais estranhas, que poderiam revelar algo novo. O projeto foi conduzido por Dalí e por John Hench, veterano roteirista e artista de confiança de Disney para a criação em storyboard, durante meses, de 1945 até o final de 1946, mas dificuldades financeiras interromperam definitivamente a produção. Depois da morte de Disney e de Dalí, o projeto “Destino” foi retomado para fazer parte de “Fantasia 2000”, mas as controvérsias não demoraram a surgir.

Quando as equipes começaram, depois de meio século, a trabalhar nos arquivos e storyboards de “Destino”, descobriram que Disney planejava com o filme retomar a literatura de Lewis Carroll com uma Alice levada à vida adulta e envolvida em sonhos sobre as emoções do primeiro amor – enquanto Dalí tinha em mente um argumento em que o deus Chronos, personificação do tempo na mitologia grega, se apaixonava radicalmente por uma mortal.



 



A parceria interrompida de dois artistas geniais:
Salvador Dalí e Walt Disney fotografados na
Espanha, na década de 1950, e trabalhando
na criação e na montagem de protótipos nos
Estúdios Disneyem Hollywood, 1948 (abaixo)








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Ou seja: eram dois filmes diferentes. Um, descrito por Dalí como "a exibição mágica do problema da vida no labirinto do tempo"; outro, descrito por Disney como "a história simples sobre uma jovem em busca do verdadeiro amor". “Destino” seria finalmente simplificado e concluído em 2003 por Baker Bloodworth e por Roy Edward Disney, sobrinho de Walt Disney, mobilizando uma grande equipe, com o francês Dominique Monféry assinando a direção e tendo na trilha sonora a composições do mexicano Armando Dominguez criadas sob encomenda para o projeto original, em performance da cantora Dora Luz. John Hech, já aposentado e com mais de 90 anos, foi convidado a acompanhar a produção e é creditado como co-autor do roteiro, junto com Dalí e com o editor e animador Donald W. Ernst. 

A versão final de "Destino", entretanto, dividiu opiniões. Para alguns, trata-se de uma preciosidade que deixa transparecer nuances adultos presentes tanto em “Alice” quantos nas obras-primas atribuídas a Salvador Dalí e a Walt Disney; para outros, uma versão convencional e melancólica sobre um projeto que poderia ter atingido outras dimensões. Na forma de uma animação de seis minutos e apresentando apenas 18 segundos do projeto original (a sequência das tartarugas), o enredo onírico apresenta a protagonista entre imagens abstratas e estranhas figuras suspensas pelo ar. “Destino” foi exibido em festivais e chegou a ser indicado ao Oscar de Melhor Curta de Animação em 2003, mas não foi lançado nos cinemas nem em DVD.



      




Dois gênios: acima, "Five O'Clock Shadows in
Disney-Dalí Land" (Sombras de cinco horas da
tarde na terra de Disney e Dalí
), pintura em óleo
sobre tela de 1996 de Todd Schorr, um retrato
irônico sobre os desentendimentos durante
a polêmica parceria entre Disney e Dalí.

Abaixo, uma imagem 
em que o encontro de
Disney e Dalí, metamorfoseados 
em tartarugas,
forma ao centro uma figura feminina, n
a
sequência final de Destino
Também abaixo,
a íntegra do filme que foi 
concluído e
lançado em DVD em 2003




      






Apaixonados pela literatura de Lewis Carroll desde a infância, Disney e Dalí se aproximaram depois de um jantar em 1945 na casa de Jack Warner, o todo-poderoso chefão da Warner Brothers. Dalí, que naquela época estava contratado para criar a sequência do pesadelo do personagem de Gregory Peck em “Spellbound” (1945), de Alfred Hitchcock, chegou a Hollywood precedido pelo sucesso como artista plástico e como criador de duas obras-primas do cinema e do Surrealismo: “Um Cão Andaluz” (1928) e “A Idade do Ouro” (1930), realizados em parceria com Luis Buñuel.



Política da Boa Vizinhança



A parceria com Salvador Dalí aconteceu em um período especialmente difícil para Walt Disney. O projeto de “Fantasia” (1940), que consumiu anos de produção e teve altos custos, não alcançou sucesso comercial. A situação piorou mais ainda com a drástica redução do mercado de exibição na Europa, em decorrência da Segunda Guerra. Disney perdeu as linhas de crédito do Bank of America e, para não perder os estúdios, passou a fazer todo tipo de concessão comercial e a colaborar com o FBI e as forças armadas.

É nesta época – no intervalo entre as produções de “Bambi” (1942) e “Cinderela” (1950), considerado o período mais fraco de sua trajetória na arte da animação – que Disney é forçado por seus credores a se envolver com a produção de filmes para treinamento militar e propaganda, incluindo “Alô, Amigos” (“Saludos Amigos, 1943) e “Você Já Foi à Bahia?” (“The Three Caballeros”, 1945), projetos sob encomenda para a “política da boa vizinhança” do governo dos EUA com o objetivo de aproximação com o Brasil e demais países da América Latina.







Terminada a Segunda Guerra, Disney participa da Aliança do Cinema para a Preservação dos Ideais Estadunidenses, com a meta de combater o comunismo no meio artístico, e presta voluntariamente diversos depoimentos na Comissão de Atividades Antiamericanas, um "comitê de caça aos comunistas" comandado pelo senador republicano Joseph McCarthy. Do primeiro encontro, em 1945, até o rompimento da parceria, em 1950, Disney e Dalí mantiveram sigilo sobre os projetos de “Alice” e “Destino”, que envolveram um grande número de contratados nas equipes técnicas, substituídas continuamente.

Para ensinar a Dalí as técnicas de animação do estúdio foi convocado John Hench, artista que tinha trabalhado com Disney em “Fantasia” (1940), “Dumbo” (1941) e “Bambi” (1942). Para protagonista de “Alice”, Disney queria Ginger Rogers, estrela dos musicais, contracenando com os desenhos animados, que por sua vez seriam baseados nas ilustrações de John Tenniel publicadas na primeira edição do livro de Lewis Carroll. A meta de Disney era aprimorar com “Alice” a tecnologia inaugurada por seus estúdios em “Você Já Foi à Bahia”, que trouxe Aurora Miranda, irmã de Carmen Miranda, cantando e dançando em cena com os desenhos do Pato Donald e do Zé Carioca.








   



Como não conseguiu contratar Ginger Rogers, que estava envolvida em outros projetos simultâneos, Disney passou dois anos fazendo testes e audições com mais de 200 atrizes. Por fim, escolheu Kathryn Beaumont como modelo de referência para o trabalho das equipes de desenhistas e dos técnicos de animação. Kathryn estava com 10 anos na época dos testes de seleção, no final de 1948. Ela havia participado de filmes da série “Lassie” e teve pequenos papeis em musicais. Após atuar na produção de “Alice”, também participou como modelo e dubladora de Wendy Darling, a garotinha de Peter Pan, filme de 1953 dos estúdios de Walt Disney.



Alice em heliogravura



Acontece que mesmo depois de todo o investimento, Disney não ficou satisfeito com as sequências misturando atores aos cenários em desenho animado para “Alice” e alterou os rumos do projeto, retornando ao roteiro com 100% de desenhos em animação. Quando o filme chegou aos cinemas, não foi um fracasso, mas também não alcançou o sucesso de público e crítica que era esperado. Entretanto, mesmo não estando entre seus maiores sucessos comerciais, a versão de “Alice” por Disney marcou o imaginário coletivo com qualidades que sobreviveram ao tempo e continua encantando crianças e adultos. Tal e qual o estranho livro escrito com exatas 36 mil palavras pelo professor Charles Lutwidge Dodgson.













Salvador Dalí com Alfred Hitchcock
em Hollywood, em 1944, na época em
que a parceria com Dalí rendeu ao Mestre
do Suspense ideias e sequências muito
especiais, entre elas as belas cenas do
pesadelo surrealista no filme de 1945
"Spellbound" (Quando Fala o Coração).
 
Abaixo, um flagrante de Dalí brincando com
crianças em 1952, em Paris, em foto de
Francesc Català-Roca; e no célebre estudo
"Dalí Atômico", que foi arquitetado e
produzido por Dalí em parceria com
Philippe Halsman em 1948













Depois da experiência interrompida com Disney, Dalí retornaria ao universo de “Alice” em vários outros projetos, incluindo o documentário “Impressões de Alta Mongólia” (1975), no qual apresenta a história sobre uma expedição em busca de cogumelos alucinógenos gigantes. Alusões a “Alice” também surgem em produções do mestre surrealista para estilistas de moda como Elsa Schiaparelli e Christian Dior, além de seus trabalhos em parceria com os fotógrafos Man Ray, Brassaï, Beaton e Philippe Halsman. Mas a tradução mais completa de Dalí para a obra de Lewis Carroll só seria conhecida em 2009, uma década após a morte do mestre surrealista.

Trata-se de uma série de ilustrações que Dalí produziu em policromia no processo conhecido como heliogravura, em que a impressão das imagens é feita através de placas gravadas em baixo-relevo. Identificada com a data de 1969, a série, que teria sido idealizada para uma edição especial de “Alice no País das Maravilhas”, foi descoberta nos arquivos que Dalí deixou na Catalunha, Espanha, e apresenta 13 ilustrações: uma capa e uma imagem para cada um dos capítulos do livro de Lewis Carroll.













"Alice" na versão de Dalí: acima,
imagem da capa e ilustrações
dos capítulos "Para baixo na toca
do coelho" e "A lagoa de lágrimas"




A série de ilustrações sobre “Alice” e outros trabalhos de Dalí, depois de uma negociação com os herdeiros, foram liberados para uma exposição permanente instalada na William Bennett Gallery, em Manhattan, Nova York, intitulada “O Universo Surreal de Salvador Dalí”. Os títulos de cada capítulo e as ilustrações do mestre surrealista resumem o itinerário da viagem de Alice:

"Para baixo na toca do coelho", "A lagoa de lágrimas", "Uma corrida de comitê e uma longa história", "O coelho manda Bill O Lagarto", "Conselho de uma lagarta", "Porco e pimenta", "Um chá maluco", "O jogo de críquete no campo da rainha", "A história da falsa tartaruga", "A dança da lagosta", "Quem roubou as tortas?" e "O depoimento de Alice", por certo, continuarão sua viagem rumo ao futuro, como tem sido nos últimos 150 anos da história – conforme previsto naquelas situações enigmáticas e nos diálogos fantásticos imaginados por um certo Lewis Carroll:

Alice: Quanto tempo dura o eterno?
Coelho: Às vezes apenas um segundo...



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Alice volta ao futuro. In: Blog Semióticas, 14 de julho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/07/alice-volta-ao-futuro.html (acessado em .../.../...).


 





















"Alice no País das Maravilhas" na versão
de Salvador Dalí: a partir do alto, ilustrações
para os capítulos "Uma corrida de comitê e uma
longa história", "O coelho manda Bill O Lagarto",
"Conselho de uma lagarta", "Porco e pimenta",
"Um chá maluco". Abaixo, "O jogo de críquete
no campo da rainha", "A história da falsa
tartaruga", "A dança da lagosta", "Quem roubou
as tortas?" e "O depoimento de Alice"















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