14 de novembro de 2014

Segredos de Mafalda






Nós podemos realizar coisas agradáveis, 
inteligentes, que façam refletir os adultos 
e também as crianças. É preciso respeitar 
as crianças. Os adultos falam com elas 
como se fossem todas retardadas... 

––  Quino, criador de Mafalda.    
 

Mafalda, muito esperta e questionadora, conquista a maioria à primeira vista: tem paixão pela primavera e pelos Beatles e horror a sopa, a moscas e a guerras. Com seu humor pitoresco e observações tão breves quanto surpreendentes sobre o mundo, as pessoas, as coisas do dia a dia, as notícias delirantes da imprensa e da TV, que permanecem atualíssimas, Mafalda chegou aos 50 anos em plena popularidade muito além das fronteiras da Argentina, sua terra natal.

Oficialmente, ela é traduzida em várias línguas e publicada em mais de 30 países – mas, curiosamente, ainda permanece inédita nos Estados Unidos. No Brasil, faz sucesso desde os anos 1970 e tem tanto prestígio que disputa, há mais de uma década, com ninguém menos que Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, o título de recordista em citações nas questões apresentadas pelo ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio.

Na trajetória de meio século de Mafalda há, também, as lendas, as crises, as idas e vindas, os altos e baixos. Para começar, teve duas datas de nascimento: a princípio, ela foi criada em 1962, para compor um anúncio publicitário de eletrodomésticos, e seu nome tem a ver com as iniciais da marca do produto, mas até sobre a data verdadeira de seu aniversário pairam certas controvérsias que permanecem sem solução. 














Segredos de Mafalda: no alto,
Mafalda e Quino em fotografia de
setembro de 2014, em Buenos Aires,
fotografados por Natacha Pisarenko
na abertura da exposição El Mundo
Según Mafalda, em comemoração
aos 50 anos da personagem. Acima,
Quino em sessão de autógrafos em
Paris, 2004, e Mafalda com a família
e os amigos: a partir da esquerda,
Felipe, Manolito, Susanita, Liberdade,
Mamãe (Raquel), Papai (Pelicarpo),
Guilherme (seu irmão caçula, também
chamado de Guille ou Gui) e Miguelito.

Abaixo, dois dos primeiros cartuns da
Mafalda, no traço original, e amostras da
arte de Quino, muito além da Mafalda, sem
nenhuma palavra no álbum de 1980
com o título Qui est le Chef?





























O criador da Mafalda, o argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino, desenhou, em 15 de março de 1962, as primeiras charges e algumas tiras de histórias em quadrinhos sobre Mafalda para uma agência publicitária. A personagem deveria ser publicada em anúncios da empresa de eletrodomésticos Mansfield no jornal “Clarín”. Mas, por ironia do destino, a empresa acabou recusando os desenhos, o “Clarín” rompeu o contrato e Quino, contrariado, decidiu arquivar suas tiras.



Mafalda pelo mundo inteiro



Em 1964, a ideia das tiras e charges da "enfant terrible" é retomada por Quino, que consegue finalmente publicar sua criação no semanário da Argentina "Primera Plana". A primeira vez da Mafalda impressa aconteceu em 29 de setembro daquele ano. A popularidade da personagem, no entanto, só passaria a crescer no ano seguinte, quando os desenhos chegaram às páginas do jornal diário "El Mundo". De novo, vem a ironia do destino nos caminhos de Mafalda: apesar do sucesso das tirinhas da personagem criada por Quino, o jornal foi à falência em dezembro de 1967. 










Segredos de Mafalda: acima,
a trajetória de evolução dos traços da
personagem desde 1964 e Mafalda e
Quino em maio de 2014, fotografados
para a agência EFE. Abaixo, o retrato de
Mafalda em tempos de autoritarismo
e ditadura militar em sua terra natal,
Argentina, com os cidadãos proibidos
em sua liberdade de falar, de ouvir,
de ver, e Mafalda no Brasil, nas capas
da revista Patota, publicada na década
de 1970 pela Editora Artenova, e nas
primeiras versões em livro, em 1982,
publicadas pela Global Editora





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Mafalda retornaria firme e forte seis meses depois, em outro jornal, o “Siete Días Illustrados”. Com o crescente sucesso de público da pequena Mafalda em seu país de origem, as tirinhas não demoraram a ser reunidas em livros. O primeiro deles, editado por Quino, teve uma marca impressionante: toda a tiragem de 5 mil exemplares foi vendida em Buenos Aires em apenas dois dias. Com o sucesso, a tirinha e os livros com coleções de tirinhas logo cruzaram as fronteiras da Argentina e passaram a ser conhecidos em outros países da América Latina e também na Europa, onde Mafalda teve popularidade imediata na Itália, França, Espanha, Grécia, Portugal e outros países.

Na Europa, Mafalda desde o início foi publicada com a tarja indicando que se tratava de “história em quadrinhos para adultos” – e não demorou a conquistar a simpatia dos intelectuais ligados aos movimentos sociais e aos partidos de Esquerda. Um dos primeiros a saudar a personagem foi o italiano Umberto Eco, mestre da Semiótica, que dedicou à criação de Quino um célebre ensaio, publicado pela primeira vez em 1969, em que destacava: “Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara...”







Mafalda em terras brasileiras



No Brasil, Mafalda apareceu primeiro sem periodicidade, como presença ocasional em charges reproduzidas no final da década de 1960 nas páginas do lendário “Pasquim”. Em 1972, também no “Pasquim”, foi saudada por Ziraldo: “Mafalda é uma personagem criada na América Latina que logrou obter uma fama universal; acho incrível que uma menina da classe média da Argentina tenha podido ter sucesso na Finlândia”.

A estreia oficial, sob contrato, aconteceria por aqui somente em 1972, nas páginas de uma revista infantil chamada “Patota”, publicada pela Editora Artenova em 27 edições mensais, entre 1972 e 1975, em coletâneas que incluíam outros personagens de autores na maioria norte-americanos, entre eles o guerreiro viking trapalhão Hagar, o Horrível (criado por Dik Browne), a dupla Frank e Ernest (de Bob Thaves), Snoopy e a turma do Charlie Brown (de Charles Schulz), além da presença ocasional de personagens brasileiros como o psiquiatra Doutor Fraud, criado por Renato Canini. Nos anos seguintes, Mafalda apareceria ocasionalmente em outros jornais e revistas brasileiros, por conta da comercialização de séries limitadas de charges e tirinhas, também por intermédio da Editora Artenova.




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Em 1982, a presença de Mafalda no Brasil ganharia um capítulo importante: com os direitos de publicação transferidos da Artenova para a Global Editora, os cartuns originais de Quino passaram a contar com uma parceria especialíssima na tradução e adaptação por um dos grandes nomes do humor e do cartum brasileiro, Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988), célebre por seu trabalho de resistência à ditadura militar e de apoio aos movimentos sociais com a Graúna, os Fradinhos, a Mãe e outras criações geniais que marcaram época.

A aventura de Mafalda em tradução de Mouzar Benedito e edição final de Henfil foi publicada em cinco livretos pela Global Editora, em preto e branco, exceto na capa, com formato de brochura horizontal em dimensões de em 14cm por 21cm. Os livretos, que alcançaram uma surpreendente vendagem de 30 mil exemplares na primeira edição, tiveram cinco números consecutivos, de fevereiro a julho de 1982, com 76 páginas e duas tirinhas por página. Em 1988, a trajetória de Mafalda em terras brasileiras passaria por outra transferência de editora e de tradução, desta vez com versões para o português por Monica Stahel para a Martins Fontes. A nova editora reeditou, em formato de livretos, todos os cartuns, até 1991, quando toda a saga da personagem lendária de Quino foi finalmente reunida no livro de capa dura “Toda Mafalda”.









Segredos de Mafalda: acima,
Quino em Buenos Aires, em

visita à exposição El Mundo Según
Mafalda, e na prancheta de trabalho,
em autorretrato dos anos 1970.

Abaixo, 
uma seleção das tirinhas
da Mafalda
em versão nacional,
em tradução e adaptação de
Mouzar Benedito e de Henfil; e Quino
em Buenos 
Aires, na praça batizada
em homenagem 
a Mafalda e na abertura
da exposição 
El Mundo Según Mafalda 




                 

  
 
As versões de Quino



Mesmo com todo sucesso na Argentina e em outros países, Quino, o criador, decidiu acabar com a publicação das histórias da Mafalda em 1973. Desde então, Quino ainda voltaria a desenhar Mafalda algumas poucas vezes, principalmente para promover campanhas sobre os Direitos Humanos – como aconteceu em 1976, quando Quino aceitou o convite para fazer um pôster para a UNICEF ilustrando a Declaração Universal dos Direitos da Criança.

Filho de imigrantes espanhóis, Quino nasceu em Mendoza, Argentina, em 1932, e mantém uma rotina discreta em Madri, Espanha, onde mora há duas décadas. Sempre avesso à curiosidade dos fãs de Mafalda e aos convites para participar de programas de TV, Quino abriu uma exceção no começo deste ano, quando foi anunciado vencedor do prestigiado Prêmio Príncipe das Astúrias, na Espanha, e concedeu uma longa entrevista à agência de notícias EFE.
















Na entrevista, Quino afirmou que permanece marxista e pessimista em relação à política, lembrou as situações que levaram à criação e ao sucesso de Mafalda, reconheceu que, para ele, a célebre e insolente garotinha é um "mais um desenho" e se autodefiniu como um carpinteiro que projetou um "móvel lindo".

"Eu sou como um carpinteiro que fabrica um móvel, e Mafalda é um móvel que fez sucesso, lindo, mas para mim continua sendo um móvel, e faço isto por amor à madeira em que trabalho", minimizou Quino, explicando que há décadas sofre de um problema de visão que o faz viver em um "mundo um pouco desfocado". Para surpresa do entrevistador, Quino também declarou que Mafalda não foi sua "melhor aliada" para dizer "o que queria e quando queria".















O futuro de Mafalda



"Meu melhor aliado fui eu mesmo, porque deixei de dizer muitas coisas que gostaria e não se podia dizer. Desde que cheguei a Buenos Aires com minha pastinha (em 1954), me disseram que não podia fazer desenhos sobre militares, sobre a igreja, o divórcio, a moral. Então me acostumei a desenhar as coisas que me permitiam", lembrou. Quino também reconheceu que a primeira encomenda para criar Mafalda pedia algo no estilo de Charlie Brown e a turma de Peanuts, a mais famosa criação de Charles Schulz (1922–2000).

"Copiei as cenas de minha rotina e de minha casa, e as pessoas gostaram, porque poucos desenhistas faziam isso. Charlie Brown me agrada muito, mas me parece um horror que não haja adultos. Em meu trabalho, apelava para as notícias do dia a dia, e escrevia sobre o que saía nos jornais. O mundo era assim. Eu não decidi e disse 'vou a fazer uma menina contestadora'. Não. Simplesmente saiu assim".



















Quino também declarou na entrevista à agência EFE que está consciente sobre o sucesso de Mafalda, que continua sendo uma personagem muito popular e muito querida no mundo todo, por leitores de todas as idades. Contudo, na conclusão da entrevista ele faz questão de dizer que não tem nenhuma ilusão sobre o que poderá acontecer com Mafalda no futuro.

"Não acredito que Mafalda ultrapasse as fronteiras da História e se transforme em algo parecido com a música de Mozart”, destacou Quino. “Haverá no futuro outras temáticas muito mais importantes do que as coisas que Mafalda disse há tanto tempo. Além disso, aparecerão muitos outros suportes de mídia que ainda não se conhece, outras muitas personagens, talvez mais interessantes. Hoje, olhando para o passado, penso que ou o mundo não evoluiu ou então a Mafalda é que sempre foi muito evoluída".


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Segredos de Mafalda. In: Blog Semióticas, 14 de novembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/11/segredos-de-mafalda_14.html (acessado em .../.../…).










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