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8 de agosto de 2011

Woody Allen leitor de Machado






Fiquei realmente chocado ao perceber como ele é um
escritor encantador. Definitivamente, eu não conseguia
acreditar que ele viveu há tanto tempo, como ele viveu.
Você teria pensado que foi escrito ontem.

––  Woody Allen, sobre Machado de Assis,   
em entrevista ao jornal “The Guardian”.    
 



Há semelhanças e correlações entre os filmes de Woody Allen e a literatura que Machado de Assis publicou no Brasil nas últimas décadas do século 19 e começo do século 20? Esta é uma questão que tem ganhado espaço entre pesquisadores do Brasil e do exterior desde que, recentemente (no mês de maio), a pedido do jornal inglês "The Guardian", o cineasta norte-americano Woody Allen listou, entre os livros que mais o influenciaram, "Memórias Póstumas de Brás Cubas", romance que Machado de Assis publicou em 1881. O cineasta contou que recebeu o livro pelo correio. Segundo Woody Allen, algum estranho do Brasil enviou o livro, na tradução para o inglês feita por William L. Grossman, publicada com o título "The Epitaph for a small winner", com o seguinte recado: "Você vai gostar disso".

"Li porque era um livro fino. Se fosse grosso, teria descartado", escreveu o cineasta no artigo para publicação no "The Guardian". "E fiquei chocado com o quanto charmoso e incrível era esse brasileiro chamado Machado de Assis. Fiquei realmente chocado ao perceber como ele é um escritor encantador. Definitivamente, eu não conseguia acreditar que ele viveu há tanto tempo, como ele viveu. Você teria pensado que foi escrito ontem. É tão moderno, tão divertido. E é uma obra muito, muito original. Tocou uma campainha para mim, da mesma forma que 'O Apanhador no Campo de Centeio' tocou. Um livro sobre um assunto que me agradava e que era tratado com muita inteligência, grande originalidade e sem sentimentalismo", completou.

Na sua lista de livros preferidos, os que mais provocaram impacto sobre seus filmes e sobre sua forma de olhar para o mundo à sua volta, Woody Allen também incluiu, além de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", os livros "O Apanhador no Campo de Centeio", publicado em 1951 por  J. D. Salinger; "The World of SJ Perelman", publicado por Perelman no ano 2000; "Really the Blues", publicado em 1946 por Mezz Mezzrow e Bernard Wolfe; e "Elia Kazan: A Biograph", publicado em 2005 por  Richard Schickel.

Woody Allen também apontou algumas das referências que mais aprecia no escritor brasileiro, que por ironia também podem ser tomadas como características presentes nos melhores filmes do diretor de "Annie Hall - Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" (1977). São elas:


1. O cotidiano prosaico da burguesia;

2. o humor sofisticadamente ácido;

3. a divagação filosófica sintética disfarçada pelo trivial;

4. a crítica sutil às convenções sociais;

5. as citações constantes de outros autores e outras obras que o influenciaram;

6. a investigação psicológica despretensiosa e, entre outras mais, a construção de protagonistas com um mesmo tipo de perfil, desastrosos em suas relações pessoais e sociais, inclusive de moral duvidosa, ou pelo menos convenientemente flexível.


















Allan Stewart Königsberg em 1964,
fotografado em um hotel em Las Vegas,
às vésperas de gravar seu primeiro disco de
piadas com o nome Woody Allen. O disco
seria um dos indicados ao prêmio Grammy
daquele ano. No cinema, sua primeira
experiência aconteceria no ano seguinte,
quando completou 30 anos de idade:
depois de uma das apresentações no
bar do hotel em Las Vegas, Woody Allen
conquistou a simpatia de um produtor de
cinema, Charles Feldman, que o convidou
para escrever e estrelar uma paródia dos filmes
de 007 chamada O que é que há, gatinha?
(What's New Pussycat?). O papel principal
terminou com o veterano Peters Sellers,
mas Woody Allen rouba a cena em várias
sequências como coadjuvante –
contracenando com Romy Schneider
(imagem acima, na cena da biblioteca)







Como diretor, a estreia de Woody Allen
finalmente aconteceria em 1969, com o
filme Um assaltante bem trapalhão
(Take the money and run). Na imagem
do alto, o cartaz promocional de
Bananas, o segundo filme escrito
dirigido por ele, que chegou aos
cinemas em 1971. Abaixo, Woody Allen
cercado por belas mulheres em sua
peça Play it again, Samsucesso
na Broadway em 1969, fotografado
por Philippe Halsman. Também abaixo,
Woody Allen em Nova York, em 1972,
com sua amiga Nora Ephron, cineasta
e jornalista norte-americana que também
confessou em entrevistas que é leitora e
admiradora da obra de Machado de Assis;
e o cartaz de lançamento e duas cenas
de Annie Hallfilme de 1977 com
Diane Keatonroteiro, direção e atuação
de Woody Allen, que no Brasil recebeu
um título dos mais estranhos:
Noivo Neurótico, Noiva Nervosa





















  

As afinidades temáticas e de estilo entre o maior cânone da literatura brasileira e o cineasta Woody Allen são visíveis também na avaliação de Gustavo Bernardo, professor de teoria da literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do livro "O problema do realismo de Machado de Assis" (Editora Rocco). "Primeiro”, destaca o professor, em entrevista concedida por telefone (veja a íntegra da entrevista em Semióticas: O Bruxo e a crítica internacional), “tanto Machado de Assis como Woody Allen são tremendamente irônicos e engraçados, apesar de não provocarem gargalhadas, mas sim sorrisos inteligentes. Segundo, ambos são mestres na arte difícil da tragicomédia, a tal ponto que suas obras não evoluem da comédia para a tragédia, como de hábito, mas são cômicas e trágicas do início ao fim, da primeira à última página ou cena".


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Woody Allen leitor de Machado. In: Blog Semióticas, 8 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/semioticas-o-bruxo-e-critica.html (acessado em …/.../...). 



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Joaquim Maria Machado de Assis
aos 25 anos, em 1864, fotografado por
José Insley Pacheco (1830-1912).
No alto, Woody Allen ao lado de
Machado de Assis. Abaixo: 1) Machado
em caricatura anônima do século 19,
publicada na revista Semana Ilustrada;
2) Owen Wilson e Rachel McAdams
em cena de Meia-Noite em Paris,
filme de 2011 de Woody Allen; 
3) Woody Allen com Mira Sorvino em
cena do filme Poderosa Afrodite (1995);
4) Woody Allen em 1996, em fotografia de
Arnold Newman; e 5) e 6) Woody Allen no
traço do ilustrador argentino Pablo Lobato




























        





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18 de julho de 2011

O Bruxo e a crítica internacional





Machado de Assis é apenas o maior escritor já

produzido pela América Latina em qualquer época.

.........–– Susan Sontag, 1990.   




O maior cânone da literatura brasileira conquista cada vez mais prestígio fora do Brasil, reconhecido por muitos, em vários países – e muito além das fronteiras da língua portuguesa – como um dos maiores escritores de todos os tempos. Alguns dos mais importantes e influentes escritores, ensaístas e críticos literários de nossa época publicaram páginas de elogios a Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), Susan Sontag, Umberto Eco, Salman Rushdie, Carlos Fuentes, José Saramago, Allen Ginsberg, Michael Wood, John Updike, Philip Roth e Harold Bloom entre eles. Sobre Machado, citado em seus estudos "A Angústia da Influência" (1973) e "O Cânone Ocidental" (1994), Bloom dedicou um capítulo inteiro do livro de 2003 "Gênio  Os 100 autores mais criativos da história da literatura", no qual destaca a originalidade e a energia criativa do mestre brasileiro, definido por ele como "uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do gênio literário quanto a fatores como tempo e lugar, política e religião, e todo tipo de contextualização que falsamente se crê que possa produzir ou determinar os talentos e o espírito humano".

Bloom também confessa que já havia lido e se apaixonado pela obra de Machado, especialmente por "Memórias Póstumas de Brás Cubas", antes de saber que o mestre brasileiro era mulato, neto de escravos, em um Brasil onde a escravidão só foi abolida em 1888, quando Machado estava para completar 50 anos. "Ao ler Machado de Assis, presumi, erroneamente, que fosse o que chamamos 'branco' (mas que E. M. Foster, com muita graça, chamava de 'rosa-cinzento')", completa, reconhecendo em Machado mérito e honraria surpreendentes: segundo Harold Bloom, Machado de Assis deve ser considerado "the supreme black literary artist to date" (o maior artista literário negro até os dias de hoje).

Mais de um século antes do reconhecimento incondicional por Bloom e outros avatares internacionais da crítica e do pensamento contemporâneo, Machado, o romancista, dramaturgo, contista, poeta, jornalista, crítico, cronista, político respeitado e fundador da Academia Brasileira de Letras, foi aclamado em vida por seus pares e convivas. Depois de morto, passou a ser publicado e respeitado primeiro em Portugal, depois na Argentina e em outros países da América Latina. Na década de 1950, começou a ganhar as primeiras traduções em inglês e outras línguas, com a divulgação de sua obra no exterior ficando mais acentuada a partir dos anos 1960, quando foi incluído talvez por acidente nos pacotes de lançamentos na Europa e Estados Unidos dos escritores do "boom" do realismo mágico latino-americano, aos quais Machado antecedia desde o século 19.

Ironia do destino – pois ainda que o mestre brasileiro tenha incorporado o universo fantástico a seu repertório de tramas e personagens, o realismo mágico ou realismo fantástico é, a rigor, uma referência específica à geração de escritores contemporâneos ou posteriores a Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, na Argentina, a Gabriel García Márquez na Colômbia, a Carlos Fuentes e Juan Rulfo no México, a Mario Vargas Llosa no Peru, entre outros que escreveram e publicaram pela primeira vez décadas e décadas depois da morte de Machado. Mais uma façanha do Bruxo do Cosme Velho, 'avant la lettre' (veja também Semióticas: Bodas do 'boom'). "Bruxo do Cosme Velho", aliás, é um antigo elogio – um codinome pelo qual Machado é conhecido nos meios literários desde o começo do século 20, pela força e pelos "encantamentos" da sua literatura. O termo ganhou força também a partir dos anos 1960, depois que Carlos Drummond de Andrade publicou o poema "A um bruxo, com amor" (no livro “A Vida Passada a Limpo”, de 1959), no qual o poeta fez referência à casa número 18 da rua Cosme Velho, situada no bairro de mesmo nome, no Rio de Janeiro, endereço lendário porque ali morou, durante muitos anos, o bruxo Machado de Assis. 

 




O Bruxo e a crítica internacional: no alto,
Machado de Assis em 1884, no Rio de Janeiro,
fotografado por Marc Ferrez, seis anos antes da
publicação do romance Memórias Póstumas de
Brás Cubas, uma de suas obras-primas, que
causou grande polêmica. Acima, o escritor
em pintura em óleo sobre tela de 1905,
retratado por Henrique Bernardelli.

Abaixo, as capas de duas edições em inglês
para Memórias Póstumas de Brás Cubas:
a primeira, que foi publicada em 1955
como Epitaph for a small winner e assinada
por William L. Grossman, foi relançada em 2008;
a segunda, assinada por Gregory Rabassa, foi
publicada em 1997 pela Oxford University Press











Assim como as gerações da vanguarda no Brasil e na América Latina que viriam depois dele, o autor de "O Alienista" (1882), "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), “Dom Casmurro” (1899) e outras obras-primas em gêneros narrativos diversos desafiou as convenções estabelecidas da literatura em sua época. A recepção sobre a literatura de Machado teve uma trajetória crescente desde sua morte e ganhou ainda mais destaque a partir da segunda metade do século 20, quando ele, aclamado como um dos maiores escritores do século 19, surgiu no mercado editorial e nos estudos da crítica do Primeiro Mundo na mesma leva em que surgiram grandes nomes da literatura da América Latina. Machado à frente de seu tempo: não é pouco.



Abrangência e complexidade



Político dos mais hábeis em sua época, elevado à categoria de efígie impressa nas notas de cruzeiro e de cruzado novo no último século, retratado como personagem no cinema e na TV, como tema de carnaval no samba-enredo de escolas de samba, Machado de Assis, quando vivo, assistiu a evoluções e transformações das mais marcantes na vida política, social e cultural da nação – entre elas grandes descobertas científicas, o fim da escravidão e a proclamação da República. A abrangência e a complexidade das obras de Machado, e sua fortuna crítica, receberam mais um tributo à altura com os ensaios reunidos em "Machado de Assis e a Crítica Internacional", livro organizado por Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta, publicado pela Editora Unesp.











Machado e sua esposa, Dona Carolina,
em fotografia datada de 1900 (de autor
desconhecido) e uma foto de Dona Carolina
nos arquivos do escritor. A esposa exerceu
grande influência sobre a literatura de Machado,
como primeira leitora, revisora e até co-autora,
mesmo que não creditada. O casal esteve unido
de 1869 a 1904, quando a morte de Carolina, aos
70 anos, os separou. O escritor passou os anos
seguintes muito abatido pela morte de Carolina.

Abaixo, a 
escritora e professora norte-americana
Helen Caldwell, em 1959,
mostra uma imagem
da máscara mortuária
de Machado de Assis.
Caldwell publicou
em 1960 um livro que marcou
época:
O Othelo brasileiro de Machado de Assis,
um estudo sobre Dom Casmurro que só
foi publicado no Brasil depois de 40 anos.

Também abaixo: 1) as capas de outro célebre
estudo crítico de um pesquisador estrangeiro sobre
Dom Casmurro, publicado em 1984 em inglês
por John Gledson e traduzido no Brasil com o
título Machado de Assis: Impostura e Realismo;
2) Dona Carolina em daguerreótipo datado de
1890; e 3) tres retratos de Machado, em
1864, aos 25 anos, e em 1874, aos 35 anos,
em fotografias realizadas no estúdio do
Rio de Janeiro do fotógrafo português
Joaquim José Insley Pacheco, que veio
trabalhar no Brasil a partir da década de
1850; e uma fotografia de Machado
aos 57 anos, em 1896 













Machado de Assis como testemunha de revoluções de seu tempo e como tradutor do turbilhão realista para uma dimensão de alta literatura, atemporal e universal, é uma tese que permeia o discurso da maioria dos 12 autores do Brasil e de outros países reunidos no dossiê de Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta. O ponto de partida foi o Simpósio Caminhos Cruzados: Machado de Assis pela Crítica Mundial, realizado em 2008, ano do centenário da morte do autor, em São Paulo, com diversos estudiosos internacionais de Machado apresentando suas críticas, relatos de pesquisa e novos olhares sobre a obra do mestre.

Na equipe de críticos convidados, Roberto Schwarz, Jean Michel Massa, K. David Jackson, Paul Dixon, Thomas Sträter, Todd Garth, Élide Valarini Oliver, Amina Di Munno, Luiz Roncari e Daphne Patai, além dos organizadores, trazem contribuições privilegiadas que intensificam e ampliam o debate sobre o Bruxo, estimulando novas abordagens e interpretações sobre a literatura que ele produziu e que permanece muito sedutora e muito atual, mesmo depois de mais de um século das publicações originais do autor.

Na apresentação aos ensaios reunidos, Antunes e Motta constatam a crescente valorização do Machado no exterior, bem como o interesse despertado pelas ambiguidades surpreendentes em seus trabalhos. Entre os tantos destaques na diversidade, Schwarz, no texto "Martinha vs. Lucrecia", discute a divisão entre críticos universalistas e localistas, lembrando que "a grandeza de Machado suscitou linhas de explicação contrárias que em algum momento teriam de discutir e competir".























No artigo que encerra o livro "Machado de Assis e a Crítica Internacional", Jean Michel Massa provoca e destaca, a partir do título: "A França que nos legou Machado de Assis". Na argumentação de Massa, a cada ano que passa Machado de Assis é cada vez menos "um estrangeiro fora de seus país". Massa sugere que os leitores façam o caminho inverso daquele que sempre foi apontado pelos muitos críticos brasileiros que se dedicaram aos estudos sobre Machado, buscando desta vez um certo olhar de Machado para o exterior.

Nestes tantos caminhos cruzados, o leitor atento mais familiarizado com o universo literário de Machado acaba percebendo uma breve cartografia dos estudos, das tendências e das conquistas crítico-analíticas nacionais e internacionais em relação à obra ímpar e extensa de um dos maiores nomes da literatura. Benedito Antunes e Sérgio Motta, professores de Literatura e Cultura Brasileira da Unesp, destacam que tanto o simpósio de 2008 como o livro agora lançado representam importante passo para a descoberta de comentários não só inovadores, mas multiplicadores das formas de ler Machado de Assis. 









Retrato atualizado: o escritor, que
foi apelidado por seus pares de Bruxo
do Cosme Velho, nas ilustrações em estilo
Pop Art da capa e da contracapa do livro
Machado de Assis e a Crítica Internacional.

Também abaixo, Machado de Assis em sua última
fotografia conhecida, feita em estúdio, com data
de 1907, que pertence ao acervo da família de
Mário de Alencar, filho de José de Alencar












"Trata-se de um autor que oferece reflexões universais sobre a alma e o comportamento humano, mesmo se reconhecidos seus vínculos regionais", diz Antunes. Os caminhos cruzados entre a crítica nacional e internacional, segundo Antunes, resultam em panoramas surpreendentes que destacam a qualidade do grande escritor e verificam como sua valorização no exterior é gradual e progressiva.

Na apresentação aos ensaios, Antunes e Motta ainda apontam que "há um universalismo que Machado legou à nossa literatura e uma projeção de nossa literatura à esfera internacional, ao construir uma arte ao mesmo tempo brasileira e universal". A invenção machadiana já pressupunha, portanto, os "caminhos cruzados".









Machado de Assis fotografado por seus
contemporâneos: acima, o escritor é acudido
na rua, no Rio de Janeiro, em 1907, durante
o que se supõe ser uma crise de epilepsia,
em fotografia de Augusto Malta.; e Machado
de chapéu
no "terrasse" da Confeitaria Castelões,
na antiga Avenida Central (atual Avenida Rio Branco),
no centro do Rio de Janeiro. Na mesa com Machado,
Euclides da Cunha, José Veríssimo e Waldrido Ribreiro.
Foto publicada pela revista Fon-Fon em 1907.

Abaixo, Machado em duas fotografias atribuídas
a Augusto Malta com autoridades e a elite da
literatura brasileira em sua época: na primeira
fotografia, com amigos e patronos da Academia
Brasileira de Letras, estão, de pé, Rodolfo Amoedo,
Artur Azevedo, Inglês de Souza, Olavo Bilac,
José Veríssimo, Sousa Bandeira, Filinto de Almeida,
Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo
Bernardelli, Rodrigo Octavio e Rodolfo Peixoto;
sentados, João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio
Furtado de Mendonça e José Júlio da Silva Ramos.

Na segunda fotografia, com data de 1906,
que registrou os convidados para um almoço
no Clube dos Diários oferecido pelo general
colombiano Rafael Uribe, em sua
visita ao Rio de Janeiro, estão, entre outros,
Machado de Assis (o segundo na primeira fila)
e, a seu lado, à direita da foto, Joaquim Nabuco;
o colombiano Rafael Uribe; o prefeito do Rio de
Janeiro, na época Distrito Federal, Francisco
Pereira Passos; Oswaldo Cruz e Olavo Bilac





     
 



Machado de Assis era um realista?

Machado de Assis era um realista?

O ensaísta e professor Gustavo Bernardo defende uma tese que vai contra quase um século de crítica literária no Brasil. Em seu livro "O problema do realismo de Machado de Assis" (Editora Rocco), que está chegando às livrarias, ele argumenta que Machado, cânone maior da literatura no Brasil, não é um escritor realista. Na entrevista que fiz com ele, pelo telefone, para o jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte, Gustavo Bernardo aponta que seu estudo, por certo audacioso, busca mostrar que os escritos do Bruxo do Cosme Velho não condizem com a classificação acadêmica imposta e ensinada há décadas em salas de aula de todo o Brasil.


No livro você destaca que a ficção de mestres como Machado de Assis estabelece um duplo caráter da linguagem, que tanto diz mais do que queria dizer quanto não consegue dizer exatamente o que queria dizer. Diante de tantos paradoxos, qual é o lugar de Machado de Assis na literatura e na cultura brasileira?

Gustavo Bernardo – Eu quis dizer que toda a linguagem que usamos tem esse caráter duplo: sempre dizemos mais do que queríamos dizer e nunca conseguimos expressar exatamente o que queríamos dizer. Ao contrário do que imagina o senso comum escolar, a linguagem é fundamentalmente equívoca. A compreensão da língua de escritores como Machado faz com que eles explorem os equívocos de linguagem da sua sociedade e do seu tempo, em especial aqueles que confundem a realidade com os discursos sobre a realidade. Essa circunstância faz com que possamos considerar Machado de Assis não apenas nosso maior escritor mas também como nosso mais importante filósofo, uma vez que a sua obra até hoje parece pensar profundamente sobre os nossos equívocos, sobre os nossos paradoxos, sobre as nossas hipocrisias.




O Bruxo do Cosme Velho em adaptações
no cinema e na TV: acima Petrônio Gontijo
e Viétia Rocha vivem o jovem Brás Cubas
e sua amada Virgília em cena do filme de
2001, Memórias Póstumas, com roteiro e
direção de André Klotzel. Abaixo, o casal
Michel Melamed e Maria Fernanda Cândido
vivem Bentinho e Capitu na minissérie de
2008 da TV Globo Capitu, com roteiro
adaptado do romance Dom Casmurro
e direção de Luiz Fernando Carvalho



 






Considerando a literatura em língua portuguesa e a literatura produzida no Brasil, o gênio de Machado de Assis encontra algum precursor?

Não há precursor na literatura em língua portuguesa para Machado de Assis. É certo que autores como Eça de Queirós e José de Alencar foram muito importantes para ele, mas para que escrevesse antes contra eles do que como se os sucedesse esteticamente. Dom Casmurro é de certa forma uma resposta a ambos, tanto a O primo Basílio, de Eça, quanto a Lucíola, de Alencar: o romance machadiano desmonta tanto o realismo do autor português quanto o romantismo do brasileiro, de tabela desconstruindo radicalmente a visão que ambos tinham da mulher. Luísa e Lúcia/Maria da Glória começam suas histórias como personagens femininas densas e fortes, mas os autores as enfraquecem tanto que chegam mesmo a matá-las ao final, enquanto Capitu mantém sua força, sua densidade, sua ambiguidade e sua dignidade do princípio ao fim do romance, morrendo não em função das ações e omissões do narrador mas sim em função da idade. 

Então é um erro apontar Eça de Queirós ou José de Alencar como precursores da literatura de Machado de Assis?

Encontro precursores verdadeiros para Machado quer no filósofo francês Michel de Montaigne quer no escritor espanhol Miguel de Cervantes. Concordo inteiramente com o escritor mexicano Carlos Fuentes, que considera Machado de Assis o único herdeiro literário de Cervantes em toda a América, chegando a chamá-lo pela alcunha de “Machado de La Mancha”. Na nossa língua, o melhor sucessor de Machado, até porque muito diferente dele, é João Guimarães Rosa, que por mágica coincidência nascia no mesmo ano em que morria Machado de Assis. Sua Diadorim, de Grande sertão: veredas, é sem dúvida a melhor companheira de Capitu na literatura brasileira.






E a literatura brasileira hoje? Está melhor ou pior do que há tempos passados?

Darei uma resposta categórica: não sei! Acho que não temos como responder a essa pergunta, e sempre me incomodam aqueles que tentam, o que acontece periodicamente. Como diria o historiador Fernand Braudel, “a fumaça dos acontecimentos nubla a visão dos contemporâneos”. Primeiro, não temos a distância necessária para avaliar a literatura contemporânea; segundo, não temos meios adequados para comparar termos incomparáveis, quais sejam os escritores e as suas obras. O estudo da literatura, no meu entender, é o estudo da singularidade, não da similaridade. Penso que empobrece a literatura e a leitura enquadrar obras e autores, quer nos escolares estilos de época, quer nos modernos rankings de melhores e piores.






Dos tantos escritos que compõem a obra de Machado, qual você escolhe como o seu favorito?

São justamente tantos e tão bons que esta pergunta se faz a mais difícil de todas. Meu primeiro impulso é oscilar entre Dom Casmurro O alienista, pela crítica devastadora que ambos os títulos fazem à maneira moderna de pensar, mas logo me vem à mente um romance da chamada primeira fase, tão desprestigiada e tão excepcional quanto a chamada segunda fase. Trata-se justamente do primeiro romance de Machado de Assis, sua obra-prima nos dois sentidos do termo: Ressurreição. Este romance, de maneira discreta, já contém em germe todas as qualidades estéticas e filosóficas de Machado, a começar pela excepcional ironia contida no título: não há ressurreição alguma.

Esta ironia é um golpe de “canhões de pelica” no romantismo...

Isso mesmo. Machado é o nosso escritor mais cético. Aliás, são três as qualidades de Machado que mais incomodam nossa crítica e nossa pedagogia, por isso seus próceres tentam negá-las quase desesperadamente: primeiro, nosso maior escritor é negro, logo, tentam embranquecê-lo de diversas maneiras pouco sutis; segundo, nosso maior escritor é o maior adversário do realismo, logo, tentam sustentar o absurdo de que ele mesmo seria não só realista como o próprio fundador do realismo no Brasil; terceiro, nosso maior escritor é cético, logo, tentam desqualificar seu ceticismo, vendo-o equivocadamente como pessimismo ou niilismo.







Woody Allen, em recente entrevista ao jornal inglês The Guardian, destaca que Machado é um de seus escritores preferidos e que ele se identifica com o estilo e as tramas do autor de Dom Casmurro. Você concorda que há semelhanças entre os filmes de Woody Allen e a literatura de Machado?

Sim, sem dúvida. Primeiro, ambos são tremendamente irônicos e engraçados, apesar de não provocarem gargalhadas mas sim sorrisos inteligentes. Segundo, ambos são mestres na arte difícil da tragicomédia, a tal ponto que suas obras não evoluem da comédia para a tragédia, como de hábito, mas são cômicas e trágicas do início ao fim, da primeira à última página ou cena. Terceiro, ambos são herdeiros da meta-ficção de Cervantes, porque ambos quebram a cada página ou cena o contrato de ilusão realista entre autor e leitor, ou entre diretor e espectador. Quarto, ambos questionam a raiz de todos os discursos humanos, desconfiando sempre de que não sabemos o que temos certeza de que sabemos, o que prova que ambos são profundamente céticos – o que não torna nem um nem outro pessimista ou niilista, mas todo o contrário. Ambos, por fim, são príncipes da dúvida, da inteligência e da tolerância.



por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O Bruxo e a crítica internacional. In: Blog Semióticas, 18 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/o-bruxo-e-critica-internacional.html (acessado em .../.../...).



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