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29 de julho de 2022

Retratos de August Sander






Nenhuma obra de arte é contemplada tão atentamente 

em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, 

de nossos parentes próximos, de nossos seres amados.

–– Alfred Lichtwark (1852-1914).   


A arte do retrato fotográfico, que teve início em meados do século 19, ganhou um capítulo especial no século 20 com as fotografias do alemão August Sander (1876-1964). Considerados um caso exemplar de fotografia documental, os retratos feitos por Sander são abordados como referência importante em alguns dos principais estudos já realizados sobre fotografia: ele é citado como “corpus extraordinário” por Walter Benjamin em “Pequena história da fotografia” (1931) e é um dos fotógrafos selecionados para as análises que Roland Barthes apresenta em “A câmara clara” (1980), assim como está destacado por suas “imagens de arquétipo” no estudo não menos célebre de Susan Sontag (em “Sobre a fotografia”, de 1973) e também surge como parâmetro e analogia para uma “idealização do poder” na leitura de John Berger (em “Para entender uma fotografia”, de 2013).

Um “revival” em homenagem à arte de August Sander aconteceu recentemente com uma exposição itinerante aberta no Museu de Arte Contemporânea da cidade de Siegen, na Alemanha. Depois de Siegen, a exposição seguirá uma extensa agenda em outros importantes museus da Europa e de outros continentes. Trata-se da primeira grande exposição sobre o acervo de Sander desde a década de 1960, quando depois de sua morte foram realizadas retrospectivas de seus retratos nos museus de Siegen (1964), de Herdorf (1965), terra natal do fotógrafo, e no MoMA de Nova York (1969). Nos anos seguintes, houve apenas pequenas amostragens da obra de Sander em exposições nos museus da Alemanha e de outros países.









Retratos de August Sander: no alto da página,
"Agricultores, 1914", uma das fotografias
destacadas por John Berger. Acima, "Notário",
o trabalhador do cartório na fotografia analisada
por Roland Barthes em A câmara clara;
e August Sander em autorretrato
da década de 1950.

Abaixo, "Desempregado, 1928";
e um quadro com as 70 fotografias do arquivo
de August Sander selecionadas pelo próprio
fotógrafo e apresentadas na exposição do
Museu de Arte Contemporânea
da cidade de Siegen, Alemanha
 










A nova exposição em Siegen traz uma seleção de 70 ampliações dos retratos de August Sander – seleção que havia sido feita pelo próprio fotógrafo no início da década de 1960. Com o título de “70 Porträts aus, Menschen des 20. Jahrhunderts” (70 retratos de pessoas do século 20), a exposição já é considerada a mais importante e mais abrangente já realizada com o trabalho de August Sander. A homenagem à arte do retrato segundo Sander ainda traz como atração adicional um evento paralelo incomum: a exposição acontece simultaneamente a uma outra mostra, apresentada no mesmo museu, chamada de “Nach August Sander, Menschen des 21. Jahrhunderts” (Depois de August Sander, pessoas do século 21), que reúne retratos feitos por 13 fotógrafos contemporâneos e que tem a proposta de estabelecer um diálogo conceitual com o acervo de Sander, com curadoria de Thomas Thiel.


Traduções de uma época


Durante décadas, August Sander fotografou grupos profissionais e classes sociais com um método muito planejado e com rigor de estudo antropológico. Ele começou a fotografar ainda na adolescência, quando acompanhava o pai, que era trabalhador em uma mina em Herdorf, e aprendeu os primeiros passos no ofício da fotografia ajudando fotógrafos profissionais que trabalhavam para a empresa que explorava as minas. Com apoio de um tio, comprou sua primeira câmera antes de prestar o serviço militar. Mais tarde, no exército, entre 1897 e 1899, atuou como assistente de fotografia e, nos anos seguintes, viajou por cidades da Alemanha trabalhando como fotógrafo e aperfeiçoando seu ofício.







Retratos de August Sander: acima, o casal
em fotografia de 1912 nomeada como
"Criação e Harmonia".

Abaixo, "Faxineira", fotografia de 1928;
"Lavadeira", fotografia de 1930; e
"Garota em uma carroça na feira",
fotografia de 1932















Em 1901, Sander foi contratado por um estúdio fotográfico na cidade de Linz, onde permaneceu durante uma década, primeiro como funcionário e depois como sócio da empresa. Em 1909, abriu seu próprio estúdio na cidade de Colônia, iniciando a série “Retratos do século 20”, seu projeto ambicioso para montar um amplo catálogo fotográfico sobre a sociedade alemã. No projeto, chegou a reunir um grande acervo de centenas de retratos em 45 portfólios temáticos organizados em sete categorias identificadas como “O fazendeiro”, “O artesão”, “A mulher”, “As fazendas” (listando os trabalhadores pelas tarefas que desempenhavam), “Os artistas”, “A grande cidade” (moradores e trabalhadores das cidades) e “À margem”, que talvez represente a parte mais radical e mais polêmica de seu trabalho, com ciganos, imigrantes, andarilhos e pessoas que, por algum motivo, estavam marginalizadas pela sociedade de sua época.

A primeira seleção dos retratos de August Sander foi feita por ele mesmo, em 1929, quando publicou uma seleção de 60 fotografias em “Antlitz der Zeit(Rostos do nosso tempo), um livro que inspirou trabalhos similares de fotógrafos do primeiro time de outros países, entre eles os norte-americanos Walker Evans (1903-1975), Robert Frank (1924-2019) e Diane Arbus (1923-1971) ou o francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004). Porém, com a chegada dos nazistas ao poder, na Alemanha, o trabalho de Sander passou a sofrer censura e perseguições. Seu filho Erich, militante de um partido de esquerda, foi preso em 1934 e condenado a 10 anos de prisão. Em 1936, seu livro “Antlitz der Zeit” foi recolhido e proibido, tendo todas as matrizes de impressão destruídas, sob o argumento de que o fotógrafo promovia somente os pobres e as exceções da sociedade, e não os alemães “legítimos”.










Retratos de August Sander
: no alto, "Pugilistas",
fotografia de 1929; acima, "Estudante do ensino médio",
de 1926. Abaixo, "Meninas", fotografia de 1925;
e "Viúvo" (Witwer), fotografia de 1914












Fotografias e máscaras


Quando a Segunda Guerra Mundial começou, August Sander se mudou de Colônia para a área rural e durante anos passou a fotografar apenas a natureza e as paisagens. No pós-guerra, Sander retorna à vida nas cidades e monta um acervo extenso sobre a arquitetura e as ruas dos centros urbanos da Alemanha, mas não retornou ao projeto original de “Retratos do século 20”. Quando morreu, em 1964, deixou um valioso acervo com mais de 40 mil imagens, incluindo negativos e ampliações, que levaram à criação do Arquivo August Sander, com sede na cidade de Colônia. Uma amostragem de 650 fotografias selecionadas do arquivo foi publicada em um catálogo em 1999, com edição da Taschen e curadoria de Susanne Lange-Greve.

Nos retratos de August Sander, Walter Benjamin percebeu a “grandeza anônima” de um rosto humano, que aparece nas fotografias com uma significação nova e, em suas palavras, “incomensurável”, ressaltada pelo prefácio da primeira edição de “Rostos do nosso tempo”, escrito por Alfred Düblin. Segundo a análise de Benjamin, “August Sander reuniu uma série de rostos que em nada ficam a dever à poderosa galeria fisionômica de um Eisenstein ou de um Pudovkin, e ele realizou este trabalho numa perspectiva científica” (Benjamin, “Pequena história da fotografia”. In: “Obras escolhidas”, vol. 1, editora Brasiliense, p. 102-103). Benjamin também elogia a “atualidade insuspeitada” da obra de Sander reunida no livro, que ele define como “mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos”.














Retratos de August Sander: no alto,
"Três gerações de uma família", fotografia
de 1912; acima, "As irmãs Fuchs", de 1912.

Abaixo, "Trabalhadores na região de Ruhr",
fotografia de 1928; e "Mestre de obras", de 1926 
 







Assim como Benjamin, Roland Barthes também considera o impacto da galeria fisionômica de August Sander, que ele nomeia como “máscaras”, figuras que revelam mitologias antes insuspeitadas. “Os grandes retratistas são grandes mitólogos: Nadar (a burguesia francesa), Sander (os alemães da Alemanha pré-nazista), Avedon (a ‘high-class’ nova-iorquina). A máscara é, no entanto, a região difícil da fotografia, porque a Fotografia da Máscara é, de fato, suficientemente crítica para inquietar (em 1934, os nazistas censuraram Sander porque seus ‘rostos da época’ não correspondiam ao arquétipo nazista da raça), mas por outro lado, é muito discreta (ou muito ‘distinta’) para constituir verdadeiramente uma crítica social eficaz, pelo menos segundo as exigências do militantismo: qual ciência engajada reconheceria o interesse da fisiognomonia?” (Barthes, “A câmara clara”, editora Nova Fronteira, p. 58-62). Uma das fotografias que Barthes toma como exemplo e parâmetro de sua abordagem é o retrato do “notário” de Sander, sobre o qual ele questiona e provoca: “A aptidão para perceber o sentido, político ou moral, de um rosto não é, em si mesma, um desvio de classe?”


Mundo em desaparecimento


As “máscaras” que August Sander registrou também estão em destaque na análise de Susan Sontag, para quem os célebres retratos que o fotógrafo fez das pessoas comuns não são apenas imagens documentais e sim, “apesar de seu realismo de classe, uma das obras mais verdadeiramente abstratas da história da fotografia” (Sontag, “Sobre a fotografia”, editora Arbor, p. 59-62). Sontag também ressalta que nas fotografias de Sander os pobres não deixam de ter um ar de dignidade, o que não se deve a qualquer altruísmo ou qualquer intenção de compaixão: eles têm dignidade, segundo Sontag, porque são vistos (e fotografados) do mesmo modo frio que qualquer outra pessoa de classes sociais mais abastadas. Susan Sontag também percebe que o fotógrafo não sabia que estava registrando um mundo em desaparecimento, provocado pelo avanço acelerado do nazismo: o próprio August Sander não pensava que estava revelando a verdade das pessoas, mas sim capturando, de uma forma técnica e isenta de preconceitos, as “máscaras sociais” de sua identidade e sua individualidade.















Retratos de August Sander: no alto,
"Carregador de tijolos", fotografia de 1928;
acima, "Fazendeiro", de 1910.

Abaixo, "Dois jovens boêmios
(Willi Bongard e Gottfried Brockmann)"
,
fotografia de 1925







John Berger foi outro teórico importante que não resistiu à analogia das fotografias com “máscaras”, apresentadas a partir dos retratos de August Sander como reveladoras da classe social, do lugar no mundo, das aspirações existenciais de cada indivíduo anônimo ou bem posicionado na escala da sociedade e da hierarquia de seu tempo. Berger vê o “retrato político” na obra de Sander, mas considerando um amplo alcance para o adjetivo “político”, nunca redutível à sedução das instâncias do poder na época ou à resistência diante do que fosse injusto ou opressivo – ainda que seja impossível não considerar a trajetória do projeto fotográfico de Sander frente ao avanço do nazi-fascismo, à destruição e à violência como programa de governo que teriam a Segunda Guerra como desfecho.

Para Berger, alguns dos retratos, na extensa galeria de tipos dos mais diversos extratos sociais que Sander fotografou, são especialmente evidentes quanto à idealização do “poder puramente sedentário” e podem ser destacados como uma ilustração da hegemonia que antecede a tomada do poder na Alemanha pelo nazismo (Berger, “Para entender uma fotografia”, editora Companhia das Letras, p. 63-66). Um dos exemplos, que Berger considera “cristalino” e “sedutor”, é a fotografia que mostra três camponeses felizes, vestindo terno, a caminho do baile. Trata-se, segundo Berger, de uma lição prática sobre a quantidade de informação que existe ali para ser descoberta e revelada.
















Retratos de August Sander: no alto,
"O artista austríaco Raoul Hausmann e suas
amigas Hedwig Mankiewitz e Vera Broido"
,
fotografia de 1929; acima, "Artista de circo",
de 1932; e "Artistas no Carnaval da cidade de
Colônia"
, de 1931. Abaixo, "Cigano", fotografia
de 1930, e "O confeiteiro", de 1928.

No final da página, três amostras das releituras
contemporâneas dos retratos de Sander, que
fazem parte da exposição 
Depois de August Sander,
pessoas do século 21
, também apresentada
no Museu de Arte Contemporânea de Siegen:
"Camouflage" (2006), de Hans Eijkelboom;
"Golden" (2018), de Tobias Zielony; e
"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr











Diálogo contemporâneo


O plural de leituras que a galeria de retratos de August Sander proporciona foi a referência para a escolha dos 13 fotógrafos contemporâneos, alemães e estrangeiros, que tiveram suas obras selecionadas para a mostra “Depois de August Sander, pessoas do século 21”. Foram convidados pelos curadores: Mohamed Bourouissa, Jos de Gruyter & Harald Thys, Hans Eijkelboom, Omer Fast, Soham Gupta, Sharon Hayes, Bouchra Khalili, Ilya Lipkin, Sandra Schäfer, Collier Schorr, Tobias Zielony Artur Żmijewski. O foco para a escolha dos retratos, feitos por cada um dos fotógrafos, foi a possibilidade de diálogo com as 70 fotografias selecionadas pelo próprio August Sander, no começo da década de 1960, agora apresentadas no Museu de Arte Contemporânea de Siegen.

Enquanto os retratos em preto e branco de August Sander ocupam as galerias principais do museu de Siegen, os convidados têm seus trabalhos, em cores, na grande maioria, apresentados em galerias paralelas. Na comparação entre o preto e branco das fotografias antigas e o colorido intenso dos retratos contemporâneos, o impacto das imagens de Sander permanece inalterado, mas os fotógrafos convidados surpreendem com retratos que atualizam o tema das classes sociais e suas ocupações com originalidade.

O salto no tempo, com um intervalo que tem aproximadamente 100 anos, entre os retratos de August Sander e os retratos contemporâneos selecionados, torna visíveis mudanças de atitude e de comportamento em relação à vida cotidiana e novas questões políticas sobre pessoas comuns. A observação atenta dos retratos de August Sander levou Susan Sontag, em “Sobre a fotografia”, a lembrar aquela máxima do poeta Sthépane Mallarmé de que tudo no mundo existe para terminar num livro. Parodiando Sontag e Mallarmé, podemos chegar à conclusão de que observar estes retratos, com um intervalo de quase um século, revela que todos os rostos do mundo existem para serem fotografados.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos de August Sander. In: Blog Semióticas, 29 de julho de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/07/retratos-de-august-sander.html (acessado em .../.../…).


Para fazer uma visita virtual à exposição no Museu de Siegen,  clique aqui.




Para comprar o catálogo fotográfico de August Sander,  clique aqui.







"Camouflage"
 (2006), de Hans Eijkelboom
     





"Golden" (2018), de Tobias Zielony

  



"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr


12 de maio de 2019

O brinquedo nazista








Os jogos infantis são impregnados de comportamentos
miméticos que não se limitam de modo algum à imitação
de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante
ou professor, mas também de ser moinho de vento e trem.
A questão importante, contudo, é saber qual a utilidade
para a criança desse adestramento da atitude mimética.

–– Walter Benjamin, 1928.    



No senso comum está, muitas vezes, a ideia de que tanto jogos, brinquedos e brincadeiras, como as etiquetas do antigo comportamento em geral eram muito melhores que os de hoje em dia, seja esta ideia um modo melancólico de utopia nostálgica ou mesmo um argumento para criticar e contrapor, em nossos dias, a onipresença cotidiana de objetos eletrônicos e virtuais, videogames e telemáticas de formatos e definições variadas, computadores, celulares e seus similares. A percepção do senso comum também confirma que jogos e brinquedos formam uma parte importante da nossa identidade na trajetória de nossas vidas individuais e coletivas, assim como fazem e sempre fizeram parte de todas as culturas em todas as épocas. Mas o que as maneiras de brincar dizem sobre uma sociedade?

A questão foi objeto de investigação filosófica e histórica por pensadores e pesquisadores das mais diversas áreas e nacionalidades, de Sigmund Freud e Ludwig Wittgenstein a Johan Huizinga, de Jean Piaget e Roger Caillois a Umberto Eco, de Maria Montessori e Joffre Dumazedier a Ellen Key, de Lev Vygotsky e Melanie Klein a Roland Barthes, de Walter Benjamin a Paulo Freire e Tizuko Kishimoto, entre outros. Na Antiguidade Clássica, Aristóteles já destacava o valor do jogo por sua autossuficiência, nos livros de sua “Arte Retórica” (publicados em texto integral no Brasil pela Editora Edipro), e interrogava sobre sua causa final em variáveis como luta e disputa, derrota e vitória, para concluir que, em toda circunstância, são as formas do prazer pelo próprio jogo o que procuram aqueles que jogam. Sobre as reflexões pioneiras de Aristóteles talvez seja também importante lembrar que, em grego, há uma revelação etimológica sobre as relações que se estabelecem entre infância, jogos e brincadeiras: todos os vocábulos referentes às atividades lúdicas estão ligados à palavra criança (“pais”, paidí“paidós”) e o verbo paizeim, que se traduz por “brincar”, também pode ser traduzido literalmente por “hora de brincar” ou “agir como criança”.










O brinquedo nazista: no alto, boneca produzida
pela tradicional empresa Käthe Kruse, que adotou
na década de 1930 uniformes militares nazistas
ou da Juventude Hitlerista para sua extensa linha
de bonecas e bonecos. Acima, a capa do livro de
André Postert e a reconstituição pelo autor de
um quarto de criança de classe média
na Alemanha da década de 1930.

Abaixo, as peças originais do jogo de
tabuleiro A Corrida da Vitória da Suástica
(Der siegeslauf des hakenkreuzes), lançado
quando Hitler tomou o poder em 1934.
Todas as imagens desta página fazem parte
do acervo reunido por André Postert












No último século, Walter Benjamin, vivendo na Alemanha em tempos sombrios que testemunhavam o avanço rumo ao poder e à destruição do nazismo, também deixou pesquisas e escritos reveladores sobre a prática de jogos como repetição e sobre as formas alegóricas de brincar. No ensaio “Brinquedos e jogos”, publicado em 1928 com o subtítulo “Observações marginais sobre uma obra monumental” (publicado no Brasil em “Reflexões sobre o brinquedo, a criança e a educação”, livro da Editora 34), Benjamin ressalta a polissemia da palavra “jogos” – na língua alemã, “spiel” (no singular) ou “spiele” (no plural) é um substantivo que pode ser traduzido tanto por “jogos” como por “brincadeiras”. “Spieler” se traduz por jogador; “spielerisch”, por brincalhão; assim como “spielen”, o verbo relacionado ao termo, tem, entre outros significados, “brincar”, “jogar” ou “representar”.



Ideologia bélica e macabra



No duplo sentido, em alemão, da palavra “spiele” e da prática de jogos e brincadeiras, Benjamin faz referências sobre as maneiras de brincar e sobre as fantasias e percepções construídas na brincadeira, nas lutas e na destruição dos brinquedos, nos objetos e na imaginação que marcam a vida cotidiana estampada no singular e no plural. “A essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformar a experiência mais comovente em hábito”, alerta Benjamin, para concluir que “o hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo que em formas mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho da brincadeira”. Se é verdade, como questiona Benjamin, que para cada um existe uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro submerge, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma velha caixa de brinquedos? 








.


O brinquedo nazista: no alto, fotografia de
álbum de família na Alemanha da década de 1930.
Acima, bonecos produzidos pela Käthe Kruse:
à esquerda, folheto com anúncio do lançamento
Friedebald Puppe, boneco com mecanismo para
erguer o braço para a saudação a Hitler e que
esgotou rapidamente no mercado pela demanda
de exportações no começo da Segunda Guerra;
à direita, soldadinho de feltro, também
produzido pela Käthe Kruse, com enchimento
de algodão e uniforme militar completo.

Abaixo, bonecos em metal para a
coleção Mini-Nazis, que eram vendidos
separadamente; e fotografia de álbum de família
com meninos em 1938 estreando os presentes
de jogos de guerra sob a árvore de Natal













O questionamento filosófico e nostálgico identificado por Walter Benjamin em 1928 parece ter sido tomado literalmente como fio condutor pelo historiador André Postert, que desde 2014 atua como pesquisador associado do Instituto Hannah Arendt na cidade alemã de Dresden. Postert investigou durante anos, em arquivos e bibliotecas da Alemanha, os registros mais variados sobre os jogos infantis e as velhas caixas de brinquedos. Os resultados das pesquisas agora estão reunidos no livro “Kinderspiel, Glücksspiel, Kriegsspiel: Große Geschichte in kleinen Dingen 1900-1945” (em tradução livre, Jogo infantil, jogo de sorte, jogo de guerra, Grande História em pequenas coisas 1900-1945”), lançamento da Editora DTV em alemão e outras línguas (veja o link para leitura dos primeiros capítulos no final deste artigo).

Limitando sua investigação à primeira metade do século 20, Postert descreve práticas e objetos muitas vezes macabros que foram extremamente populares: de bonecas e bonecos em seus uniformes militares a carrinhos e miniaturas de aviões, tanques e submarinos, réplicas de armas, jogos de tabuleiro, cartas de baralhos, cartelas de sorteios, dados, livros infantis e fichas impressas e ilustradas, brinquedos com algum teor erótico, peças de xadrez ou uma variedade de peças para montar. Os itens do inventário que Postert organizou surpreendem porque comprovam os indicativos explícitos de uma profunda e intensa propaganda para a ideologia bélica, violenta e antissemita. Como agravante, no perfil da grande maioria dos brinquedos e dos jogos com estratégias de batalha, na época das duas guerras mundiais, todos com muitas estampas de armas, suásticas, escudos e outros símbolos nazistas, os apelos para crianças e adultos eram sempre anunciados em destaque como “educativos”.










O brinquedo nazista: no alto, miniaturas de
tanque de guerra, sucesso de vendas no
começo da década de 1940. Acima, pai e
filho brincam com miniatura de submarino
em fotografia promocional de 1941.

Abaixo, os tabuleiros e peças de
Juden raus! (Fora judeus!), lançado
em 1936 pela Günther & Co. com o rótulo de
um jogo para toda a família” e no qual o
vencedor era o jogador que primeiro conseguisse
recolher” seis judeus antes dos outros. Também
abaixo, outro jogo de tabuleiro de conteúdo
antissemita, Sakampf, em que os jogadores
disputavam pelo título de ser o primeiro a
destruir a democracia na Alemanha












.

Suásticas no tabuleiro



Na apresentação a seu inventário, André Postert destaca que jogos e brinquedos são reveladores sobre o comportamento de uma sociedade: eles representam o “zeitgest”, o “espírito da época” ou o sinal dos tempos. Segundo Postert, jogos, brinquedos e brincadeiras podem ser bons indicadores sobre o passado no tempo presente porque retratam a história em todos os seus aspectos, incluindo aqueles que em sua época não foram compreendidos, ou porque foram ignorados ou porque foram mascarados com sérias intenções ideológicas: tanto aspectos referentes às questões de tecnologia e economia como as implicações sobre política, educação, comportamento, racismo, fanatismo, religião, injustiça, crimes e guerras. “Alguns jogos e brinquedos são apenas uma moda passageira”, aponta Postert, “enquanto outros às vezes experimentam um renascimento inesperado depois de décadas. Acredito que isso acontece porque jogos e brinquedos não apenas escrevem a história, mas também refletem a história”.

A chegada de Adolf Hitler ao poder e à ditadura nazista na Alemanha abrange o período que vai de 1933 até o fim da Segunda Guerra, 1945, mas desde o começo do século 20 os jogos e brinquedos com orientação bélica e racista já ocupavam o mercado e as linhas de produção da poderosa indústria alemã. O auge para tal indústria antecede a Segunda Guerra e termina por alcançar os índices recordes de maior produção global para a Alemanha nas décadas de 1920 e 1930. Sob o controle de Hitler e do Partido Nazista (NSDAP), a Alemanha foi transformada em um estado totalitário fascista em que a vontade do Führer (líder) estava acima das leis e controlava todos os aspectos da vida dos cidadãos. Na Alemanha Nazista, também chamada de Terceiro Reich, a indústria de brinquedos foi transformada em mais uma engrenagem de sua gigantesca máquina de propaganda.












O brinquedo nazista: no alto, página do
catálogo de 1936 de miniaturas militares
da Hausser, uma das maiores fabricantes de
brinquedos da Alemanha na década de 1930.
Acima, o tabuleiro original de Guetto,
jogo que tem como tema a vida cotidiana no
campo de concentração de Theresienstadt
e que foi criado por um artista judeu,
Oswald Pöck, sequestrado em Viena, na
Áustria, em novembro de 1941, para ser
executado em Theresienstadt. Pöck
sobreviveu durante anos no cativeiro e
morreu em setembro de 1944, assassinado
no campo de concentração de Auschwitz.

Abaixo, a caixa original e uma seleção
de fichas de outro campeão de vendas,
o jogo de tabuleiro Weltkrieges Spiel
(Jogo da Segunda Guerra Mundial)












Enquanto os grandes fabricantes de brinquedos abraçavam as bandeiras do Terceiro Reich, em suas causas bélicas e racistas de perseguição e assassinato de judeus e outros grupos considerados indesejáveis, Joseph Goebbels, o todo poderoso ministro da Propaganda, atuava para lançar mão de todos os recursos para controle da opinião pública alemã, censurando e também assassinando qualquer oposição na cena política, nas escolas e na cultura em geral, promovendo determinadas formas de expressão artística favoráveis aos planos nazistas e fascistas e proibindo qualquer questionamento. Postert destaca que a indústria de brinquedos aceitou todas as formas de controle sem nenhuma resistência e que o próprio Hitler, assim como Goebbels, ia publicamente a mercados, a empresas e a grandes lojas de departamentos no Natal e em datas cívicas para promover, em ações direcionadas de publicidade, certos jogos e brinquedos, distribuindo presentes na presença da imprensa e de grandes plateias em situações planejadas nos mínimos detalhes. A mensagem era direta: “nós amamos as crianças e as crianças nos amam”.



A propaganda explícita



Entre as grandes empresas que comandavam a produção industrial, listadas no inventário de Postert, há muitos casos que impressionam pelo conteúdo bélico e racista dos jogos e brinquedos, de propaganda do estado totalitário, e pelos altos volumes de vendas que tais itens alcançaram. Entre eles está o marco representado pela empresa Käthe Kruse, que adotou uniformes militares nazistas ou da Juventude Hitlerista para sua extensa linha de bonecas e bonecos, ou o macabro “Juden raus!” (Fora judeus!), lançado em 1936 pela Günther & Co. com o rótulo de “um jogo para toda a família”. Na estratégia do “Juden raus!”, jogadores assumem nas peças do tabuleiro o papel de policiais e, ao ritmo de lances de dados, podem invadir propriedades, confiscar bens, prender famílias inteiras de judeus e fazer deportação de sequestrados para os campos de concentração. O vencedor era o jogador que conseguisse “recolher” seis judeus antes dos outros.












O brinquedo nazista: a partir do alto,
Hitler ao lado de um de seus comandantes
de alta patente recebem crianças em foto
promocional distribuída à imprensa no Natal
de 1939. Acima, o ministro da Propaganda
do Terceiro Reich, Joseph Goebbels, leva
as filhas Hilde e Helga (à esquerda) para
uma visita às lojas de brinquedos no Natal de
1938. Também acima, Wehrschach Tak-Tik,
uma variação para o tradicional jogo de xadrez,
tendo peças em azul e vermelho com tanques,
aviões e militares de várias patentes no lugar
de peões, cavalos, bispos, torres e, substituindo
rei e rainha, uma águia (símbolo nazista da
superioridade racial e da invencibilidade,
colocada acima da cruz suástica porque
sempre estava “acima de tudo”).

Abaixo, foto promocional da linha de bonecos
bonecas em uniformes militares em 1938
um anúncio da Associação de Fabricantes
Alemães de Estanho que comemora
o fim da “corrida pacifista”









A iniciação macabra aos rituais, à ideologia e às instituições do Terceiro Reich prossegue em muitos outros jogos e brinquedos investigados no livro de Postert. Havia também uma variedade de coleções de papéis de cartas, cartilhas didáticas e baralhos completos com retratos dos principais chefes do regime nazista, de Hitler a Goebbels, Göring, Himmler e outros comandantes militares, além de miniaturas de veículos reconstruídos em detalhes com bonecos representando personagens reais em seus uniformes militares oficiais. Hitler, com seu motorista e sua limusine preta, figuram como recordistas de vendas.

Outro campeão de vendas “para toda a família” foi o jogo “A Corrida da Vitória da Suástica” (Der siegeslauf des hakenkreuzes), uma peça de propaganda explícita lançada quando Hitler tomou o poder, em 1934. No jogo, as peças com suásticas eram movidas pelos jogadores de um campo a outro do tabuleiro, cada campo indicando momentos históricos do partido nazista desde sua fundação. O jogador que, depois de vários lances, pudesse ultrapassar os obstáculos dos opositores para chegar ao campo final, indicando 1934, vencia a batalha e destruía a democracia alemã.

O extenso acervo de jogos de tabuleiro e de brinquedos reunidos por Postert também representa um arsenal de doutrinação e de destruição, já que, na prática dos jogos e brincadeiras, principalmente as crianças, mas também os jogadores de todas as idades, aprendiam, reforçavam e espalhavam a ideologia fascista do regime com requintes de propaganda racista, militar e política, incluindo a preparação social para a guerra e seus crimes em massa, seus genocídios. Entre os documentos que impressionam pelas formas explícitas de violência que propagam, Postert reproduz trechos de um comunicado público de 1933 da Associação de Fabricantes Alemães de Estanho que é revelador pelos termos que comemora: “Acabou-se com a corrida pacifista estúpida das sociedades da paz e das ligas femininas contra todos os brinquedos militares”.












O brinquedo nazista: no alto, Hitler
estampado na caixa de Führer Quartett,
jogo de cartas lançado em 1934 com o
esquadrão completo do primeiro time das
forças policiais e militares do Terceiro Reich.
Acima, flautas com estampas de suásticas
que também foram usadas em tambores,
apitos, pequenos pianos mecânicos e outros
instrumentos musicais para crianças.

Abaixo, dois exemplares de bonecos que
representam judeus como seres diabólicos
em coleções de fantoches e de marionetes
anunciados pelos fabricantes como
brinquedos para toda a família”









A banalidade do mal



Macabro e fúnebre, o saldo criminoso e assustador do genocídio nazista gerou um cenário traumático que levou, no pós-guerra, pensadores como Hannah Arendt a chamar atenção para o que seria a “banalidade do mal”. Em 1961, depois de 15 anos do final da Segunda Guerra Mundial, Arendt, filósofa alemã de origem judaica que embarcou para os Estados Unidos fugindo do nazismo, é enviada pela revista “The New Yorker” para acompanhar o julgamento, em Israel, de Adolf Eichmann, tenente-coronel da Alemanha Nazista e um dos principais mentores do Holocausto, que havia sido localizado e preso em 1960 em Buenos Aires, Argentina. Com base nos relatos que escreveu para a revista norte-americana, Arendt publica em 1963 o livro “Eichmann em Jerusalém”, que tem por subtítulo “Um relato sobre a banalidade do mal” (editado no Brasil pela Companhia das Letras).

Arendt ressalta, considerando as estratégias nazistas que resultaram no assassinato em massa de cerca de seis milhões de judeus e outras etnias durante a Segunda Guerra, que o acusado naquele julgamento não apresentava características de um caráter distorcido ou doentio e que ele alegava ter feito o que fez porque acreditava ser aquele o seu dever, cumprindo ordens superiores sem questionar. Envolvido em polêmicas e muitas controvérsias, o julgamento, que terminou com Eichmann condenado à morte por enforcamento em 1962, fornece argumentos importantes para que Arendt reconheça, na banalidade do mal, uma ameaça constante para todas as sociedades democráticas, abordando o problema por uma perspectiva política e não moral ou religiosa.













O brinquedo nazista: no alto, o jogo de
salão Atenção, o inimigo está escutando!
(Achtung, Feind hört mit!), lançado em
1940 para promover o filme de propaganda
nazista de mesmo título com roteiro e
direção de Arthur Maria Rabenalt. Acima,
uma foto promocional distribuída pelo
Terceiro Reich nas lojas, às vésperas do
Natal de 1933, para anunciar que o
Führer” iria distribuir presentes para
filhos de pais desempregados e desejava
a todos os alemães um feliz Natal.

Abaixo, miniaturas de blindados militares
fabricados na década de 1930 em metal e
com detalhes cromados. Também abaixo,
Guerra Aéreajogo de tabuleiro fabricado
na Alemanha no início da década de 1940
e que após a Segunda Guerra se tornaria
ainda mais popular em vários países
com o nome de Batalha Naval.
Nas últimas imagens, abaixo,
meninos brincam com miniaturas de
soldados e de veículos de guerra em
fotografia da década de 1930 em um
orfanato na cidade alemã de Potsdam;
e o cartaz para os cinemas brasileiros
de O Tambor (Die Blechtrommel),
filme alegórico sobre um personagem
que vive a infância no período da ascenção
do nazismo, realizado em 1979 por
Volker Schlöndorff com roteiro adaptado
do livro homônimo publicado em 1959
por Günter GrassPrêmio Nobel de
Literatura de 1999







O mal, segundo Hannah Arendt, é um fenômeno político e histórico porque se manifesta apenas onde encontra espaço institucional – e sempre como resultado de uma escolha política: sua banalização corresponde ao vazio de pensamento que transforma a violência homicida em mero cumprimento de metas e organogramas burocráticos. Como a história comprova, a banalidade do mal sempre permanece à espreita, à procura da oportunidade  para se instalar, e até mesmo objetos e práticas na aparência triviais e do senso comum, como jogos, brinquedos e brincadeiras, podem ser instrumentos para espalhar e multiplicar, de forma monstruosa, o perigo de sua contaminação de ódio e violência. 


por José Antônio Orlando.




Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O brinquedo nazista. In: _____. Blog Semióticas, 12 de maio de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/05/o-brinquedo-nazista.html  (acessado em .../.../...).



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