Mostrando postagens com marcador velázquez. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador velázquez. Mostrar todas as postagens

20 de dezembro de 2014

Natal surreal de Salvador Dalí






Não há nenhum vestígio real, bem entendido, de
anjos, de riqueza ou de liberdade. Apenas imagens.
.....
––  Walter Benjamin em "O surrealismo, último  
instantâneo da inteligência europeia" (1929) 


Uma série de aquarelas com cenas bíblicas que permaneceu inédita por mais de meio século e duas coleções de cartões de Natal criadas por Salvador Dalí (1904-1979) são as mais recentes novidades do acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí com sede na Espanha. As obras foram incluídas no Catálogo Raisonné, que é a publicação completa dos trabalhos oficiais do artista, depois de aprovadas por especialistas em minuciosas avaliações comparativas e laudos técnicos. A série de 105 aquarelas foi pintada entre 1963 e 1964, sob encomenda para uma edição de luxo da Bíblia Sagrada em espanhol. Mas uma série de desentendimentos entre o artista e os editores interrompeu o projeto e só recentemente as aquarelas foram localizadas e autenticadas pelos técnicos da fundação.

Quanto às coleções de cartões de Natal, uma delas, com as aquarelas criadas por Salvador Dalí sob encomenda, no final década de 1950, para a editora norte-americana Hallmark, permanecia inédita. Quando recebeu a encomenda, Dalí exigiu um pagamento antecipado de 15 mil dólares para 10 cartões de felicitações com temas de Natal. O pagamento foi feito e a encomenda foi entregue no prazo previsto, mas os cartões foram considerados perturbadores e polêmicos demais para alcançarem sucesso comercial, motivo pelo qual a direção da empresa apresentou a série em uma exposição em sua galeria de arte, mas produziu apenas uma tiragem restrita. A outra coleção, com obras que em sua maioria também permaneciam inéditas, reúne aquarelas e ilustrações feitas entre 1958 e 1976 para os cartões que a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica enviava a um seleto grupo de clientes a cada final de ano. 

As obras que chegaram ao Catálogo Raissoné são surpreendentes e polêmicas, como sempre, em se tratando da arte de Dalí. “A diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista” – costumava dizer, em estado de provocação, o mestre Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol. Dalí sempre teve a seu favor uma técnica de pintura extraordinária, com habilidade e domínio criativo tão grandes quanto sua loucura e originalidade, e atravessou o último século influenciando artistas das mais diversas áreas, das mais diversas tendências e nacionalidades, da brasileira Tarsila do Amaral ao norte-americano Andy Warhol, entre muitos e muitos outros.










As imagens do Natal surreal segundo
Salvador Dalí: no alto e acima, o artista
fotografado em seu castelo em Cadaqués,
Espanha, no Natal de 1970, pelo turco
Ara Güller. Também acima, Dalí e Gala,
sua musa e agente que direcionou sua carreira
durante décadas, fotografados na cerimônia do
casamento civil, em 1934, por Eric Schaal.

Abaixo, Crucifixión, Cristo en la cruz,
aquarela criada sob encomenda para uma
edição de luxo da Bíblia Sagrada, em 1964.
Também abaixo, dois cartões de Natal
criados sob encomenda: o primeiro para
a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica
(Anjo de Natal, 1967) e o segundo para
editora Hallmark na década de 1950












Dalí também merece destaque, entre os mestres da arte no século 20, como um dos que mais produziram, segundo apontam seus mais importantes biógrafos, Robert Descharnes e Gilles Néret. Suas obras, disputadas pelos grandes museus, estão em sua maioria nas coleções do Museu Salvador Dalí em Saint Petersbourg, na Flórida, Estados Unidos, e na Fundação Gala-Salvador Dalí, na Espanha. A fundação, criada pelo próprio Dalí, em 1983, administra três museus na Catalunha: a sede, em Figueras, e as duas residências de Dalí e Gala, sua esposa e musa inspiradora desde 1929, transformadas, após a morte do artista, no Teatro-Museu Dalí, também em Figueras, e no Museu Port Lligat, em Cadaqués.



Uma trajetória de polêmicas



O acervo do Catálogo Raissoné das obras de Dalí conta, entre suas peças mais valiosas, com mais de 1.500 quadros que se inscrevem entre as mais celebradas e reproduzidas pinturas do último século. Também fazem parte do acervo completo mais de uma centena de esculturas, milhares de desenhos e ilustrações feitas sob encomenda para livros e revistas, cartazes publicitários, obras realizadas em colaborações e parcerias para teatro e cinema, cartas e manuscritos autobiográficos, séries de performances em fotografias, entrevistas e vários outros projetos, todos com o traço e as formas inconfundíveis das criações de Salvador Dalí.










Os cartões de Natal criados por
Salvador Dalí: acima, a Sagrada Família
em aquarela criada para a empresa
Hallmark na década de 1950; e um cartão
de Natal criado para o UNICEF em 1981.

Abaixo, variações para as árvores
de Natal nas ilustrações criadas por Dalí
para a Hoechst Ibérica, as duas primeiras
em 1958 e as duas seguintes em 1968














No século passado, Salvador Dalí foi muito criticado por conta de sua dedicação ao “irracional” e por suas posições políticas reacionárias, entre elas o apoio ao general Francisco Franco, que chegou ao poder no rescaldo da Guerra Civil Espanhola. Contudo, passou ileso pelas incontáveis polêmicas e continua em evidência, como uma autêntica celebridade, quase 30 anos depois de sua morte, com as exposições de suas obras sempre atraindo multidões e batendo recordes de público pelo mundo afora.

A trajetória de controvérsias e provocações de Dalí teve início nas primeiras décadas do século 20, com a expressão radical de suas obras que firmou o conceito de Surrealismo nas artes plásticas. No final da década de 1930, entretanto, ele foi expulso do grupo dos surrealistas da Europa pelo poeta e mentor do “Manifesto Surrealista” (1924), André Breton – que passaria a se referir ao desafeto como “Avida Dólares” (ávido por dólares), um anagrama perfeito para o nome Salvador Dalí.






O Natal segundo Salvador Dalí em
aquarelas criadas para os cartões da
Hoechst Ibérica: acima, Felicitación
de Navidad Astronautica, de 1962,
reflete o impacto que as notícias
sobre os primeiros voos
espaciais exerceram no artista.

Abaixo, Dalí em seu ateliê em 
Paris,
em 1930, começando a pintar
La persistência de la memoria,
uma de suas obras mais célebres;
e três variações criadas por Dalí
para a tradição das árvores de Natal
em ilustrações para cartões que foram
impressos em 1967, 1971 e 1970













A grande arte: caos e criação



Depois do rompimento com os surrealistas, Dalí e Gala partiram em 1940, rumo aos Estados Unidos, para prestar serviços em Hollywood e “comercializar” sua produção em artes plásticas (veja mais em Semióticas: Alice volta ao futuro). A temporada de uma década na América foi brilhante e também polêmica, como tudo o que se refere à obra do mestre surrealista. De volta, com Gala, à sua terra natal, Figueras, na Catalunha, Espanha, na década de 1950, Dalí iria diversificar cada vez mais seus projetos – incluindo, entre eles, as séries de aquarelas e ilustrações para cartões de natal criadas sob encomenda.

Pelo que relatam Robert Descharnes e Gilles Néret, nas biografias e catálogos publicados pela Taschen (“Dalí – A Obra Pintada” e “Salvador Dalí – A Conquista do Irracional”), Dalí produziu 19 aquarelas e ilustrações para os cartões de Natal produzidos pela empresa farmacêutica Hoechst Ibérica, entre 1958 e 1976. A empresa, que tinha sede em Barcelona, decidiu imprimir uma grande tiragem em formato de 10,04cm X 6,93cm e os cartões eram enviados, a cada final de ano, para médicos e profissionais de saúde. Atualmente, estes cartões originais com as ilustrações de Dalí são relíquias valiosas, disputadas por colecionadores.







O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a homenagem a
Don Quijote em cartão criado
para a Hoechst Ibérica em 1960.

Abaixo, uma homenagem de Dalí
para Las Meninascélebre pintura de
1656 de Diego Velázquez, no cartão
criado em 1961; a árvore de Natal no
cartão criado em 1974; e o Papai Noel
em um dos cartões rejeitados pela
empresa Hallmark em 1960









As imagens da série sob encomenda para a Hoechst Ibérica não foram as únicas criadas por Salvador Dalí com temas de Natal. Ele também criou cartões de Natal exclusivos para amigos e colaboradores como Enrique Sabater, seu secretário particular a partir de 1969. Há ainda uma série de pinturas em óleo sobre tela, criada entre 1964 e 1967, com variações sobre imagens de São José e da Virgem Maria com o Menino Jesus. Como quase tudo que o mestre produziu, são pinturas que também impressionam, talvez porque, mesmo representando o tema religioso, a série, batizada de “Iesu Nativitas” (Natal, em latim), revela imagens que fogem ao lugar-comum da tradição das cenas de Natal.

O caso mais polêmico envolvendo Salvador Dalí e as encomendas para cartões de Natal parece ter sido mesmo a série produzida para a empresa norte-americana Hallmark. O fundador da empresa, Joyce Clyde Hall, desde o final da Segunda Guerra convidava artistas muito conhecidos para produzir imagens para os cartões de Natal da Hallmark. A iniciativa trouxe prestígio para a empresa e alavancou as vendas, com cartões criados por nomes como Pablo Picasso Georgia O'Keeffe, entre vários outros. Mas com a série criada em 1960 por Dalí surgiu um impasse.






O impasse com a encomenda a Dalí para a criação dos cartões de Natal aconteceu porque, assim que recebeu as imagens originais, pintadas a óleo e em guache sobre papel, a empresa passou a temer repercussão negativa ou até mesmo protestos do público. O pagamento de US$ 15 mil foi feito pelo Hallmark antecipadamente, por exigência do artista. Das 10 imagens criadas por Dalí, a maioria foi considerada pelos executivos da empresa “surreais” em excesso e terminaram rejeitadas e arquivadas, não sendo comercializadas no formato de cartões para produção em larga escala, como antes estava previsto. A série foi apresentada em uma exposição na galeria de arte da empresa, em Kansas City, Missouri, no Natal de 1960, e alguns cartões foram impressas para distribuição restrita. Desde então as imagens permaneceram inéditas.


Além dos cartões para a Hoechst Ibérica e para a Hallmark, Dalí também criou outras ilustrações natalinas sob encomenda para revistas e para anúncios publicitários. Alguns destes trabalhos já estavam no catálogo de suas obras-primas, caso das pinturas e aquarelas que tiveram versões publicadas em dezembro de 1948 na capa da revista “Vogue” norte-americana e dos anúncios de publicidade para as meias de nylon da marca Bryans, publicadas na edição de Natal da “Harper's Bazaar”, também em 1948, quando Dalí e Gala ainda moravam nos Estados Unidos.







Cartões de Natal segundo Salvador
Dalí: acima, o cartão criado em 1969
para presentear seu secretário
particular, Enrique Sabater

Abaixo, quatro cartões da série de Natal
criada por Dalí em 1960 para a Hallmark:
1) a árvore de Natal formada por borboletas;
2) a visita dos três reis magos; 3) o anjo
sem cabeça tocando alaúde para Maria
e o menino recém-nascido; e 4) a borboleta
noturna que visita a Madonna e seu filho.
Também abaixo, a Virgem Maria e Jesus
 em aquarela criada para o cartão
da Hoechst Ibérica em 1960



















As estranhas simetrias



Nas pinturas, desenhos e ilustrações com os temas de Natal criados por Salvador Dalí, existe a inevitável persistência de determinados símbolos que percorrem toda a sua trajetória: no lugar dos típicos cenários de neve, de pinheiros verdejantes, de laços e bolas coloridas, as imagens natalinas do mestre surrealista representam outros elementos, com sugestões arquitetônicas e formas geométricas em estranhas simetrias de corpos femininos, além dos adornos propositalmente incomuns que provocam saborosas ilusões de ótica e remetem a polêmicas que marcaram época.

O Natal surreal de Dalí é repleto de analogias que fogem dos limites da religiosidade e avançam em aproximações com o abstrato, o irreal, o sonho. Mesmo quando o que está representado é a Sagrada Família, formada por São José, a Virgem Maria e o Jesus Cristo recém-nascido, a imagem vai revelar outras simetrias – com cores imprevistas, com fragmentos de peixes e insetos, com anjos e árvores delineados em forma de ambiguidades, às vezes bizarras, e também com figuras lendárias da história da arte e da literatura, como a Infanta Margarita Teresa, imortalizada em “Las Meninas”, pintura de 1656 de Diego Velázquez, ou o Don Quijote de la Mancha criado por Miguel de Cervantes no livro de 1600.









O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a capa de Dalí para a
edição que comemorou o aniversário
de 50 anos da revista Vogue, em abril de
1944, e a adaptação da ilustração do artista
na capa da Vogue de dezembro de 1946.

Abaixo, a mesma ilustração nas
versões originais criadas por Dalí;
na terceira ilustração, a dobra que
permite outra visualização da figura











O próprio Dalí declarou muitas vezes que a irracionalidade e o apelo ao universo do pensamento onírico sempre foram os princípios condutores de todo o seu processo criativo. Em dois dos documentários que ele realizou, em parcerias com o fotógrafo Philippe Halsman (“Chaos and Creation”, 1960) e o cineasta Jack Bond (“Dalí in New York”, 1965), Dalí explica, com muitos exemplos e em mínimos detalhes, as etapas de seu processo de criação e as técnicas envolvidas dos primeiros esboços à finalização, condenando toda arte que esteja pautada sobre as regras da tradição e do “bom gosto”.







O Natal surreal segundo Dalí:
acima, o anúncio publicitário
para as meias de nylon da marca
Bryans, publicado em dezembro de
1948 pela revista Harper's Bazaar.

Abaixo, mais três pinturas sob encomenda
para estampar cartões de Natal, a primeira
de 1967 duas seguintes criadas em 1964, da
série intitulada Iesu Nativitas, com o nascimento
de Jesus na gruta em Belém e com a fuga da
Sagrada Família para o Egito. Também abaixo,
uma estampa em homenagem a Dalí,
instalada em dezembro de 2013 na escadaria
do Philadelphia Museum of Art (EUA)














A tradição da ruptura



No filme em parceria com o fotógrafo Philippe Halsman, seu mais fiel colaborador desde a década de 1940, Salvador Dalí volta às suas declarações polêmicas da época do rompimento definitivo com o grupo surrealista (“a diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista”) para avaliar os avanços que a Arte Moderna e o Surrealismo proporcionaram ao século 20. Segundo Dalí, toda a influência e as referências que a arte produzida por ele legou à História vão muito além das exposições em galerias e do destaque de suas obras nos acervos dos principais museus internacionais: elas atingiram o comportamento individual de muitos, muito antes da "atitude rock" de estrelas da música e da cultura pop, e marcaram presença até em questões de ciência e tecnologia.

Na sequência final do filme, o artista das controvérsias e das polêmicas apresenta sua conclusão profética que continua extremamente atual, depois de mais de 50 anos. "O Surrealismo irá, pelo menos, ter servido para provar que a esterilidade e as tentativas de automatizações foram longe demais e ainda correm o sério risco de conduzir toda arte e toda civilização a um único sistema totalitário", alerta. Não resta nenhuma dúvida: o provocador Salvador Dalí permanece como um daqueles grandes mestres, raros e visionários, que sempre conseguem surpreender.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Natal surreal de Salvador Dalí. In: Blog Semióticas, 20 de dezembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/12/natal-surreal-de-salvador-dali.html (acessado em .../.../...).

















 Para uma visita ao acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí, clique aqui.






30 de novembro de 2012

Picasso em preto e branco







Há pessoas que transformam o sol numa simples
mancha amarela, mas também há aquelas que fazem
de uma simples mancha amarela o próprio sol...

 –  Pablo Picasso (1881-1973).   


Sobre Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, o homem que provocou algumas das grandes revoluções na História da Arte no século 20, muito já foi dito e quase tudo já foi mostrado. Quase tudo. Uma das nuances mais expressivas do artista espanhol permanecia pouco conhecida do público e nunca havia sido reunida: coube ao Museu Guggenheim de Nova York, com curadoria a cargo de Carmen Giménez, a honra de pela primeira vez reunir uma centena de obras de Picasso em que a ausência de cor – ou antes a presença de variações monocromáticas do preto ao branco, incluindo matizes do cinza – é investigada em todas as suas possibilidades.

Picasso black and white”, uma das mais ambiciosas mostras de trabalhos do mestre na última década, reúne 118 obras que só pela característica monocromática já formam uma série especialíssima entre os milhares de trabalhos que Picasso produziu. Na maioria são pinturas, mas há também esculturas, gravuras, litografias, aquarelas e desenhos. Uma dúzia das peças faz parte do acervo do próprio Guggenheim de Nova York. As demais pertencem a 30 museus e coleções particulares em diversos países, incluindo os três grandes museus dedicados exclusivamente a Picasso, em Barcelona, em Málaga e em Paris, motivo pelo qual as negociações demoraram algumas décadas.










Cinco retratos de Pablo Picassono alto,
fotografado em 1957, em close, e dançando
no seu ateliê, no Sul da França, por
David Douglas Duncan. Acima, o jovem
Picasso aos 22 anos, em 1904, em
Montmartre, Paris. Abaixo, o artista em
em um esboço de autorretrato feito em
Barcelona, em 1900, e em autorretrato em
óleo sobre tela de 1907, pintado em Paris










A exposição, que na abertura foi apontada pelo jornal “The Guardian” como o principal acontecimento das artes plásticas em 2012, fica aberta ao público em Nova York até o final de janeiro, mas também recebe visitantes on-line através do site do Museu Guggenheim (veja o link no final deste artigo). No catálogo de “Picasso black and white”, a curadora Carmen Giménez reconhece que teve dúvidas sobre o ineditismo da proposta: desde a ideia inicial, pensou que reunir trabalhos monocromáticos de um dos artistas mais geniais de todos os tempos era um projeto fascinante demais para ninguém ter tentado antes.

As dificuldades que a curadora confessa ter encontrado para reunir as obras específicas a fizeram entender que muitos antes dela, muito provavelmente, tentaram, mas não conseguiram reunir tantas obras de Picasso. "O uso do preto e branco em Picasso merece consideração à parte. Seus trabalhos em preto e branco aparecem em todas as décadas desde 1904, mas nunca teve um período só de negro ou só branco, à exceção dos desenhos e gravuras de seus três últimos anos de vida”, explica Carmen Giménez.








Obras-primas na exposição Picasso black
and white: no alto, La planchadora,
pintura em óleo sobre tela de 1904. Acima,
Hombre, mujer y niño, de 1906. Abaixo,
Picasso em frente à sua pintura de 1948,
La cocina, fotografado por Herbert List








O mais essencial



Podemos perceber que suas numerosas obras em preto e branco surgem em estudos diferentes, intercalados em séries diferentes, o que torna impossível classificá-los todos sob a mesma intenção técnica ou direcionados a um mesmo simbolismo ", completa a curadora, enumerando algumas das séries ou fases em que o preto e branco prevalecem nos questionamentos e invenções da arte de Picasso, todas com alguma peça ou estudo incluído na exposição.

Estão em “Picasso black and white” obras do período Azul, dos primeiros anos do século 20, as colagens e naturezas-mortas com letras e números por volta de 1912, o surrealismo e os elementos geométricos da década de 1920, as formas redondas a partir da década de 1930, a angústia da guerra traduzida no grande painel “Guernica” (1937), o erotismo extremado das gravuras e dos retratos de mulher, as litografias sobre as metamorfoses de um touro, as minotauromaquias, as séries de denúncia sobre o massacre militar na Guerra da Coreia em 1951, os estudos sobre interiores de inspiração espanhola, os últimos desenhos no ateliê em Mougins e outras dezenas de peças selecionadas em um acervo de milhares de obras-primas.








Obras-primas de Picasso: a partir
do alto, "El acordeonista" (1911),
óleo sobre tela em justaposição cubista;
"Hombre fumando una pipa", aquarela
de 1923; e Atelier de la Modiste”
pintura em óleo sobre tela de 1926









Carmen Giménez também cita a definição célebre de Frank Lloyd Wright, autor do impressionante projeto arquitetônico do museu, que se referiu às formas circulares do prédio e do trajeto que aguarda o visitante como um “convite para entrar no mais essencial do espírito de seu próprio interior”. Separadas da sedução das cores, tão marcantes nas fases e estilos sucessivos de Picasso, as obras monocromáticas reunidas no Guggenheim se aproximam do “espírito interior” de que falava Lloyd Wright – defende a curadora.

Despojado das cores que conduzem o olhar, Picasso explora a percepção de outras formas e estruturas. A força que emana destas obras, que não estão entre as mais conhecidas do pintor, atravessa o filtro de gradações monocromáticas e revela novos sentidos que são um convite ao mais essencial de que falava Lloyd Wright”, explica Giménez. O efeito, completa a curadora, é como se o visitante tivesse colocado óculos de cinema 3D para observar as chaves do enigma. O enigma em questão é a evolução revolucionária da arte de Picasso através da passagem do tempo. 









A face das amantes segundo
o artista genial: no alto,
"Marie-Thérèse", pintura de 1931).
Acima, "Buste de femme (Dora Maar) 3",
desenho de 1938. Abaixo, "Portrait de
femme (Françoise Gilot)", pintura
de 1946, e "Mujer sentada en un
sillón (Dora)", pintura de 1938










Retrato das paixões



O visitante recebe as boas-vindas quando encontra no saguão de entrada duas impressionantes esculturas em bronze em tamanho natural que pertencem ao Museu Reina Sofia, da Espanha: “Mujer com vaso” (1933) e “Mujer com los brazos abiertos” (1961). É a senha para uma centena de obras-primas, produzidas no período cronológico que se estende de 1904 até 1971, data dos estudos eróticos das séries “Tres figuras” e “Buste de femme”, que inclui os últimos desenhos e rascunhos inacabados do mestre.

Além da última série, produzida com o artista enfrentando problemas de saúde e visão cada vez mais debilitada, no ateliê às margens do Mediterrâneo, no sul da França, há várias outras telas conhecidas de Picasso com o título “Buste de femme”, dedicadas a retratar algumas de suas paixões. Uma das mais célebres está presente na mostra do Guggenheim: "Buste de femme (Dora Maar) 3", óleo sobre tela datado de 1938.

















No alto, Picasso em 1937, fotografado por
Dora Maar enquanto finalizava "Guernica",
sua obra máxima, em exposição permanente
no Museu Reina Sofia, em Madri. Acima, um
dos estudos para "Cabeza de caballo",
uma referência direta a "Guernica"
apresentada na exposição do Guggenheim.

Abaixo, o artista em duas fotografias de 1956:
em seu ateliê da Rue des Grands-Augustins, em
Paris, fotografado por Alexander Liberman;
e em seu ateliê em Vallauris, na Côte d'Azur,
sul da França, com a estrela Brigitte Bardot,
fotografados por Jerome Brierre para uma
reportagem da revista Life












Na cronologia da obra de Pablo Picasso, o recorte proposto pela exposição do Guggenheim alcança desde os últimos trabalhos até um dos períodos iniciais, conhecido como fase azul, quando o jovem artista pintou imagens em tons melancólicos de azul e cinza que traduziam alguma solidão, morte e abandono. Foi quando Picasso deixou seu país de origem para tentar outros voos, passando dos primeiros estudos de arte em Madri à mudança definitiva para Paris. Tempos difíceis, em que ele aceitou todo tipo de trabalho para sobreviver, mas também uma época em que conheceu um seleto grupo de amigos, também artistas e escritores, que o acompanhariam pelos anos seguintes nos bares e nos ateliês dos bairros parisienses de Montmartre e Montparnasse.

Não é por coincidência que o início da Abstração e da própria Arte Moderna têm como endereço os ateliês e bares de Montmartre e Montparnasse, em Paris, nas primeiras décadas do século 20. Ali surgiram as amizades intensas, que atravessariam décadas e que sinalizaram coordenadas importantes para a arte e a cultura no último século. É onde se encontram Braque, Pablo Picasso, André Breton, Isadora Duncan, Guillaume Apollinaire, Gertrude Stein, Ezra Pound, Paul Valéry, Erik Satie, James Joyce, Antonin Artaud, Anais Nïn, Coco Chanel, Luis Buñuel, Salvador Dalí, Federico Garcia Lorca, Max Ernst, Marcel Duchamp, Man Ray e alguns outros nomes de referência quando o assunto é Cubismo, Fauvismo, Expressionismo, Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo e suas variantes abstratas e figurativas.

Entre tantas obras-primas de Pablo Picasso, um dos trunfos da exposição é “Las damas de honor” (1957), a maior das 44 variações produzidas pelo artista para homenagear a célebre pintura “Las Meninas” (1656), de Diego Velázquez. A tela, que Picasso pintou durante uma temporada na Califórnia, evidencia o respeito profundo do artista pelo grande nome da tradição da pintura espanhola: a austeridade cinzenta de sua “Las damas de honor” é quase uma demonstração didática das concepções da arte moderna em comparação com a maestria figurativa de Velázquez, definido por Picasso com grande reverência como “o pintor dos pintores”.








O artista sensual e suas formas
amorosas e eróticas: no alto,
Desnudo reclinado, de 1942.
Acima, El beso, pintura de 1969.

Abaixo, Le repas frugal (Saltimbanques),
gravura em zinco sobre papel-marfim
da série realizada entre 1904 e 1913







Depois da temporada de estreia no Guggenheim, a exposição “Picasso black and white” tem uma extensa agenda itinerante que vai percorrer cidades dos Estados Unidos e capitais da Europa. O primeiro ponto depois de Nova York será o Museu de Belas Artes de Houston, em fevereiro, que recentemente apresentou um aquecimento para a mostra "Black and white" ao reunir uma exposição com reproduções de retratos de Picasso feitos por alguns dos grandes fotógrafos do último século.



Contraponto fabuloso

 

Fotografia e cinema, aliás, fornecem um contraponto fabuloso para analisar a obra do autor de “Guernica”: as formas modernas da fotografia e do cinema, que ganharam o estatuto de arte no decorrer do Novecentos, passaram a primeira metade do século 20 restritos ao preto e branco – ou antes às matizes do preto, do branco e cinza, que os grandes mestres identificam como o maior dos desafios da representação pictórica.





Picasso e sua releitura moderna para uma
obra-prima de Velázquez: "Las damas de
honor", de 1957. Abaixo, "Toros", aquarela
de 1968, e "La cocina", de 1948, tela que
representa uma estranha complexidade que
surge dos elementos mais simples



Mesmo que seja impossível separar a fulgurância da cor da arte de Picasso, patente em sua alegria sensual de momentos que mudaram os rumos da História (como a “bomba” estética lançada em 1907 com “Demoiselles D'Avignon”, que definiria os rumos das vanguardas do modernismo, ou ainda o grito de protesto com "Guernica" e tantos outros trabalhos personalíssimos), a mostra “Picasso black and white” lança luzes sobre a trajetória e os avanços da arte no último século, através de um olhar generoso e sem precedentes sobre um de seus principais artífices.

Depois de encontrar tantas obras-primas impressionantes em seus traços monocromáticos, resta concluir que o gênio de Picasso muitas vezes relegou o colorido a um segundo plano. Contudo, observando melhor a grande arte que ele produziu e revolucionou, durante quase um século, tanto a cor como a ausência de cor parecem ser o que há de menos importante.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Picasso em preto e branco. In: Blog Semióticas, 30 de novembro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/11/picasso-em-preto-e-branco.html (acessado em .../.../...).



Para uma visita virtual à exposição do Museu Guggenheim,  clique aqui.







Para comprar a biografia Pablo Picasso, de Gilles Plazy,  clique aqui.






Para comprar o livro Picasso, Série artistas essenciais,  clique aqui.










Outras páginas de Semióticas