Mostrando postagens com marcador tradução. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador tradução. Mostrar todas as postagens

13 de fevereiro de 2014

Mistérios de Clarice





Que ninguém se engane: só se consegue
simplicidade através de muito trabalho.
 –– Clarice Lispector....   


Idolatrada como mística por uma legião de leitores, Clarice Lispector e sua densa personalidade rivalizam com Machado de Assis na classificação entre os autores brasileiros mais lidos no exterior – mas nos últimos tempos ela conquistou mais uma vantagem, com novas edições, seguidas de muitas resenhas e críticas, pontuadas de altos elogios, na imprensa internacional, para a publicação de seus livros em inglês pela Penguin Classics e pela editora New Directions, incluindo a biografia escrita por Benjamin Moser, “Why This World – A Biography of Clarice Lispector”, publicada no Brasil pela Cosac Naify, com o título “Clarice,” (lê-se Clarice vírgula) e tradução de José Geraldo Couto.

Considerada uma das maiores escritoras brasileiras do século 20 – para muitos, a principal – Clarice nasceu no exterior, na cidade de Tchetchelnik, Ucrânia, no dia 10 de dezembro, e foi registrada como Chaya Pinkhasovna Lispector. O nome Clarice foi adotado em 1922, quando a família de imigrantes chegou ao Brasil e foi morar no Recife, capital de Pernambuco. Contudo, como ela mesmo sempre fez questão de declarar em entrevistas, a Ucrânia foi uma terra em que nunca pisou, pois chegou ao Brasil quando tinha um ano e dois meses de idade. Nascida enquanto seus pais percorriam várias aldeias, para fugir da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa de 1918-1920, ela foi a terceira filha do comerciante judeu Pinkouss Lispector e de Mania Krimgold Lispector.

Antes do livro de Benjamin Moser, Clarice teve outras biografias escritas por pesquisadoras de sua obra. A primeira, "Clarice – Uma vida que se conta", de Nádia Battella Gotlib, foi publicada em 1995 (Editora Ática) e equaciona vida e obra da biografada. A segunda, "Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector", de Teresa Montero, foi publicada em 1999 (Editora Rocco) e reúne 88 depoimentos. Nádia Gotlib também publicou pela Editora da Universidade de São Paulo, em 2009, "Clarice – Fotobiografia", que registra a partir de uma seleção de imagens os momentos mais marcantes da vida e obra da escritora.

Entre os estudos biográficos, houve também, em 2012, a publicação de "Retratos antigos", de Elisa Lispector (organizado por Nádia Gotlib), pela Editora UFMG. Benjamin Moser retoma informações das biografias anteriormente publicadas e descreve a trajetória das muitas viagens de Clarice: da Ucrânia para Maceió e Recife, no Nordeste do Brasil; dali para o Rio de Janeiro, quando completou 15 anos; nas viagens a trabalho, como jornalista; para o exterior, acompanhando o marido no serviço diplomático; e depois o fim do casamento e a volta ao Rio de Janeiro.

Em 1939, Clarice começou a estudar na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil (atualmente, Universidade Federal do Rio de Janeiro). Seu primeiro conto conhecido, "Triunfo", foi publicado na revista "Pan" em 1940. "Perto do Coração Selvagem", seu romance de estreia, foi publicado em 1943 – mesmo ano de sua formatura e de seu casamento com o colega de turma Maury Gurgel Valente, futuro pai de seus dois filhos, Pedro e Paulo. Do Rio de Janeiro partiu para viver em Belém, no Pará, e mais 15 anos no exterior com o marido, aprovado em concurso do Ministério das Relações Exteriores e transferido para a Itália, depois Inglaterra, Estados Unidos, Suíça e outros países. De volta ao Brasil, em 1959, Clarice fixou residência em um apartamento no bairro do Leme, no Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte em 1977. 












 
 



Mistérios de Clarice: no alto, a escritora em
seu apartamento no Leme, no Rio de Janeiro,
em 1969. Acima, Clarice no grafite de
Bete Nobrega instalado em frente ao prédio
da Pinacoteca de São Paulo em 2006; e na
infância, quando morava com a família no
Recife. Também acima, duas fotografias do
álbum de família: na primeira, do passaporte
familiar expedido pelo Consulado da Rússia
em Bucareste (Romênia), em janeiro de 1922,
estão casal Pinkas e Márian com as
três filhas: Leia (Elisa), Tania e Haia (Clarice);
na segunda, da esquerda para a direita, no
sentido anti-horário, a mãe; Clarice; o pai;
e, de pé, suas irmãs Tania e Elisa.

Abaixo, Clarice em desenhos, retratada
por Dimitri Ismailovitch em 1974; por
Ribeiro Couto, durante sua temporada em
Lisboa, em 1944; por Alfredo Ceschiatti,
durante a temporada em Paris, em 1947;
e Clarice em família, com os dois filhos,
Pedro e Paulo, e o marido Maury Gurgel















 
 
Literatura no Leme



Com o fim do casamento, Clarice retornaria ao Rio de Janeiro em 1959 para morar com os filhos no bairro do Leme, na zona sul do Rio de Janeiro, onde escreveu seus romances, contos, crônicas, traduções e textos de literatura infantil. Morreu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário de 57 anos, mas não pôde ser enterrada no dia seguinte, que seria um “shabat”, dia de descanso semanal no calendário judaico. O enterro aconteceria em 11 de dezembro, uma segunda-feira, no Cemitério Israelita do Caju, Rio de Janeiro, com as inscrições em hebraico: “Chaya bat Pinkhas Chaya filha de Pinkhas” – referência ao primeiro nome que a família lhe deu: Chaya Pinkhasovna Lispector.

Ainda em vida e mais ainda depois da morte, o prestígio e o alcance de sua literatura entrariam em curva ascendente. Há décadas ela é traduzida em vários idiomas e apontada em países da Europa como um dos grandes nomes da literatura do século 20, mas nos EUA sua obra permanecia restrita aos círculos acadêmicos. A nova investida dos livros de Clarice na América começou com as estratégias de marketing do lançamento da biografia escrita por Moser e com uma nova safra da publicação de seus romances.









Sob coordenação editorial de Benjamin Moser, já foram publicados em inglês “A Hora da Estrela”, “Perto do Coração Selvagem”, “Água Viva”, “A Paixão Segundo G. H.” e “Um Sopro de Vida”, respectivamente com os títulos “The Hour of the Star” (com tradução do próprio Moser e apresentação de Colm Tóibín), “Near to the Wild Heart” (tradução de Alison Entrekin), “Água Viva” (idem, tradução de Stefan Tobler), “The Passion According to GH” (tradução de Idra Novey) e “A Breath of Life” (tradução de Johnny Lorenz).



A Grande Bruxa



Os lançamentos de Clarice Lispector em inglês repercutiram na imprensa internacional, com destaque surpreendente nos mais prestigiados jornais e revistas dos EUA e do Reino Unido, “The New York Times”, “Los Angeles Times”, “The New Yorker”, “The Guardian”, “The Independent”, The Huffington Post” e outros veículos impressos e on-line, além de matérias de capa e resenhas assinadas por autores em evidência nas principais revistas especializadas em literatura, incluindo “BookForum” e “Paris Review”.





          
 



Clarice, fotografada por Maureen Bisilliat,
na capa da edição do mês da BookForum,
e em matéria de destaque na Paris Review
No alto, a jovem Clarice em fotografia do
álbum de família e no retrato formado pelas
capas de quatro romances editados em inglês.

Abaixo: 1) Clarice em 1953, na época que
viveu em Washington D.C., Estados Unidos,
com o marido, Mauri Gurgel, funcionário do
serviço diplomático; 2) no retrato fotografado
em 1969 por Maureen Bisilliat; 3) Clarice
em uma de suas última imagens no ano de
sua morte, em 1977; 4) Clarice aos 19 anos,
em 1939, quando ingressou na Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro; 5) com Tom Jobim na noite de
autógrafos do livro A maçã no escurono
Rio de Janeiro, em 1961, fotografados
para o jornal Correio da Manhã; e 6) Clarice
e Carolina de Jesus em agosto de 1960, quando
Clarice lançava "Laços de Família", após longa
temporada no exterior, e Carolina lançava
"Quarto de Despejo", diário que escreveu
na favela do Canindé, em São Paulo.

Também abaixo, Clarice em um retrato
pintado em 1972 por seu amigo Carlos Scliar;
em retrato pintado em Roma, em 1945, por
Giorgio de Chirico; e em 1965, em foto no
Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro,
com a equipe da primeira montagem feita
para teatro de seu romance de estreia,
Perto do Coração Selvagemna noite
da estreia do espetáculo (na foto,
a partir da esquerda, Fauzi Arap,
José Wilker, Glauce Rocha,
Clarice e Dirce Migliaccio)








.











  





São elogios e mais elogios, além de uma sequência de classificações repetidas que já se tornaram lugar comum nas referências que os leitores de Clarice conhecem de longa data: “a grande bruxa da literatura brasileira”, “um Kafka do sexo feminino”, “uma autora para a mesma estante de Joyce, Borges, Cortázar”, “a mulher mais importante da literatura em Língua Portuguesa”.

Entre as resenhas de peso, Nicholas Shakespeare, editor do “The Telegraph”, cita a frase de um antigo tradutor de Clarice, Gregory Rabassa, que comparava a autora brasileira a Marlene Dietrich (no traço físico) e a Virginia Woolf (no traço estilístico). No “The New York Times”, ela mereceu um caderno especial com reportagens e ensaios de especialistas – todos destacando qualidades e unânimes em elogios, definindo Clarice como “a principal escritora latino-americana de prosa do século 20”.
















Verdadeiramente notável”



Os livros de Clarice Lispector chegaram às livrarias em novas traduções para o inglês com um projeto gráfico sedutor: juntas, as capas reproduzem uma foto de Clarice jovem. Nas contracapas, frases marcantes da escritora e elogios de personalidades da crítica literária reconhecidas como autoridades, tais como Jonathan Franzen (“uma escritora verdadeiramente notável”), Orhan Pamuk (“uma das mais misteriosas autoras do século 20”) e Colm Toíbín (“um dos gênios ocultos do último século”).

No Brasil, a editora Rocco, que detém os direitos sobre a obra de Clarice, também anuncia lançamentos e relançamentos – entre eles, as primeiras edições em livro de crônicas e textos diversos que a escritora publicou em jornais e revistas, além de seus livros infanto-juvenis, que há muito tempo estavam fora de catálogo. Desta série de lançamentos, já chegaram às livrarias "A Vida Íntima de Laura", ilustrado por Odilon Moraes, e "A Mulher Que Matou os Peixes", com ilustrações de Renato Moriconi. 
















Benjamin Moser, biógrafo de Clarice:
"A proximidade só a torna mais espetacular".
No alto, Clarice em seu apartamento no
Leme, no Rio de Janeiro, em 1961. Acima,
em 1964, em uma célebre entrevista publicada
pelo jornal O Globo em que ela declarou:
"Toda minha obra é um grande equívoco".

Abaixo, Clarice no Natal de 1975; e uma de
suas pinturas. Sob a influência do amigo
Augusto Rodrigo, criador da Escolinha de Arte
do Brasil (EAB), Clarice fez 24 pinturas em óleo,
a maioria sobre madeira, com cores fortes e
formas abstratas – entre elas “Esperança”, pintada
em 1975 sobre compensado no formato
30,2cm por 39,7cm. Também abaixo, dois
retratos de Clarice em casa, em 1961,
um com sua inseparável máquina de escrever
portátil, fotografada por Claudia Andujar






   

 


À frente da redescoberta de Clarice no exterior, Benjamin Moser atribui o sucesso a ocorrências do acaso. Nascido em Huston (EUA), em 1976, ele diz que se apaixonou pela escritora depois de ler “A Hora da Estrela” durante um curso universitário sobre literatura brasileira nos Estados Unidos e, quando soube que Clarice seria homenageada pela Festa Literária Internacional de Paraty, em 2005, veio ao Brasil para acompanhar o evento. Em seguida, começou o projeto de pesquisa para escrever a biografia.



Um amor incondicional



Eu nunca tinha ouvido falar de Clarice”, declarou Moser, na entrevista sobre a edição nacional da biografia. “Quando li 'A hora da estrela' no curso de literatura brasileira, fiquei impressionadíssimo. Ainda estou. Logo na primeira página, pensei: essa é uma grande escritora. Depois viajei pela América do Sul de ônibus, do Rio de Janeiro a Buenos Aires, voltando pelo Paraguai. Diante de mim, o tango, Iguaçu, o Pão de Açúcar e tudo mais, e realmente a única coisa de que me lembro foi 'A paixão segundo G. H.', que comprei em Florianópolis. Perto daquele livro, nada mais podia me impressionar”. 







 

Para Benjamin Moser, Clarice Lispector tornou-se um amor incondicional. Segundo ele, a coisa mais perigosa em escrever uma biografia é o risco do biógrafo, pelo excesso de pesquisa e informação, passar a detestar o biografado – mas sua dedicação trilhou outros caminhos. “Depois de anos de estudos, pesquisas e escrita, a amo e respeito ainda mais. A proximidade só a torna mais espetacular, sobretudo agora, que entendo muito melhor os desafios humanos que ela enfrentou para se tornar uma entre os maiores escritores do século 20, não somente do Brasil, mas do mundo”.

Além das novas traduções para o inglês, previstas para os próximos meses, Clarice também deve chegar ao cinema, com um longa que já está em fase de pré-produção, baseado na biografia escrita por Moser. Vale lembrar que, no cinema, a literatura de Clarice gerou pelo menos uma obra-prima: “A Hora da Estrela”, dirigido por Suzana Amaral em 1985, com roteiro de Alfredo Oros – filme premiado em festivais no Brasil e no exterior, incluindo o Festival de Berlim, com prêmio da crítica para Suzana Amaral, indicação ao Urso de Ouro e vencedor do Urso de Prata de melhor atriz para Marcélia Cartaxo como Macabéa, a protagonista.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Mistérios de Clarice. In: Blog Semióticas, 13 de fevereiro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/02/misterios-de-clarice.html (acessado em .../.../...).



Para acessar a edição da “BookForum” sobre Clarice Lispector, clique aqui.


Para acessar o ensaio de Colm Tóbín no “The Guardian”, clique aqui.


Para comprar a biografia "Clarice", escrita por Benjamin Moser,  clique aqui.















25 de agosto de 2011

Heine, tal e qual









Não nos espantemos, que uma coisa é o poeta   
e outra o filósofo, ainda que sejam a mesma.   

Fernando Pessoa, “Poemas completos de Alberto Caeiro” .   
 


Responda rápido: quem foi Heinrich Heine? Alguma dificuldade? Fique tranquilo. O poeta e pensador judeu alemão que viveu na primeira metade do século 19 nunca teve no Brasil um registro à altura de sua importância. A lacuna, que percorre todo o século passado, tem seu primeiro parêntesis só agora, com o lançamento de “Heine, Hein? – Poeta dos Contrários” (Editora Perspectiva), que reúne em 544 páginas e 120 textos uma amostra da qualidade do autor que o mestre Jorge Luis Borges definia como “o primeiro poeta alemão”.

Heine (na imagem acima, retratado com sua mulher Mathide, em 1851, por Ernst Benedikt Kietz) foi uma
influência confessa não só para Borges: boa parte dos grandes autores dos últimos dois séculos, incluindo poetas, romancistas e pesos-pesados do pensamento como Marx, Nietzsche e Sigmund Freud – ou ainda os cânones da língua portuguesa, de Eça de Queirós a Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, entre muitos e muitos outros, fazem referências e reverências ao “poeta dos contrários”. Aluno de Hegel na academia berlinense, amigo de Balzac, Baudelaire e Chopin, Heinrich Heine (1797-1856) foi traduzido para o Brasil pelo também poeta André Vallias.







Heinrich Heine, tal e qual: acima,
o poeta em retrato pintado em 1831
por Moritz Daniel Oppenheim. No alto,
Heine com sua esposa Mathide em
pintura de 1851 de Ernst Benedikt Kietz.

Abaixo, Heine e a Musa da Poesia,
pintura atribuída a Georges
Moreau De Tours (1848-1901)






 A edição brasileira chega com saudações e elogios do especialista Augusto de Campos, que na orelha do livro registra que a publicação, com organização e tradução de André Vallias, é um dos maiores acontecimentos editoriais do Brasil dos últimos anos. Nenhum exagero. “Heine, Hein?” vale por um curso de literatura. Afeito ao idioma germânico (viveu na Alemanha de 1987 a 1994), Vallias vem de outras traduções e edições elogiadas de mestres universais especialmente difíceis – Georg Trakl, Vielimir Khlébnikov, Mandelstam, Laforgue, Verlaine...



Heine, hein?...


 

Com Heine, Vallias alcança o máximo daquela arte da tradução poética que outro mestre, Haroldo de Campos, chamava de “transcriação”: a empreitada criativa de transpor obstáculos intransponíveis para levar de uma a outra língua o impacto e a beleza originais. Com louvor, André Vallias completa as poucas e boas iniciativas de trazer Heine ao português, iniciadas por Jamil Almansur Haddad na década de 1940 e pelos versos escolhidos por Décio Pignatari em “31 Poetas – 214 Poemas” (Editora da Unicamp) em 1994.


 



Heine, tal e qual: acima, o poeta em
desenho de 1829 de Wilhelm Hensel.

Abaixo, em desenho de 1828 de autor
desconhecido; e em retrato feito a
lápis, datado de 1853, assinado por
Marcellin Gilbert Desboutins







Com cuidado didático, o tradutor adicionou aos textos de Heine um brilhante e bem-humorado estudo introdutório sobre a obra e um posfácio que esclarece a biografia do poeta, escritor, jornalista pioneiro e pensador, além de notas eruditas, trechos de cartas e da prosa do autor e um índice analítico-remissivo em minúcias. Na entrevista a seguir, André Vallias destaca a atualidade de Heine e sua poética desconcertante.

 
O título de seu livro é um achado, bene trovato. “Heine, Hein?”, a partir do título, traduz o humor e a ironia desconcertante do autor...

ANDRÉ VALLIAS - Você tem razão. Considero o título, especialmente na disposição gráfica em que se encontra na capa, um verdadeiro ideograma da obra, que aponta para o desconhecimento do autor entre nós, para a dificuldade de pronunciar seu nome (fato que o próprio poeta ironizava entre os franceses), para o desconcerto que sua personalidade gerava, para a complexidade de sua poesia, que transita com incrível desenvoltura pela lírica, pela sátira e pela política – sofisticada e, ao mesmo tempo acessível. O título foi sugerido pelo grande poeta e designer gráfico Age de Carvalho. É curioso que também provoque aversão – já fui repreendido algumas vezes por tê-lo escolhido, mas as reações têm sido predominantemente positivas.








Posso dizer que a ausência de edições da obra de Heinrich Heine no Brasil foi um dos grandes equívocos do nosso mercado editorial no século 20?

É realmente difícil de entender a reduzida quantidade de traduções da obra de Heine, tanto no Brasil como em Portugal, apesar dele ter inspirado vultos como Machado de Assis e Eça de Queirós. Ainda mais espantoso se compararmos com a quantidade de edições disponíveis em língua espanhola. Eis aí um belo tema para os germanistas pesquisarem.

Qual a característica marcante de Heine que fez escola entre poetas e pensadores que vieram depois dele?

Não sei se podemos dizer que Heine tenha feito escola. Sua poesia e pensamento continuaram polêmicos e provocadores até a década de 1960, e só recentemente, a partir dos anos de 1990, sua obra começou a ser intensamente estudada, especialmente no EUA. No Brasil, já se nota um interesse crescente na área acadêmica. Mas o humor talvez tenha sido a característica mais imitada de sua criação, o que acabou trazendo prejuízo à recepção de suas ideias inovadoras. Algo semelhante ao que aconteceu, entre nós, com Oswald de Andrade, por exemplo.








Heine, tal e qual: acima, os únicos
remanescentes dos desenhos feitos
por Heine na década de 1820. Na
imagem abaixo, fac-símile de uma
carta do poeta datada de 1845 e
endereçada a Jenny Marx, esposa
de Karl Marx. O documento foi
descoberto em 2005, em um arquivo
em Moscou, por pesquisadores do
Instituto Heine de Düsseldorf e indica
que houve aproximação e uma amizade
incomum entre o poeta alemão e Jenny,
na época em que Heine já estava
casado com Mathilde e Jenny também
já era esposa de Karl Marx.

Abaixo, Jenny e Karl Marx em Londres,
em daguerreótipo datado de 1869; e uma
cena do filme alemão Heinrich Heine,
dirigido em 1978 por Klauss Emmerich, com
Christoph Bantzer no papel de Heine
Eva Schuckardt como Mathilde
 













E o trabalho da tradução? Seu livro contradiz Caetano Veloso, naquele verso famoso de “Língua” que diz que está provado que só é possível filosofar em alemão...

Pode ser, ou talvez até reforce a provocação irônica de Caetano. Mas quem sabe a obra desse transgressor de fronteiras possa sugerir novas maneiras de se "pensar", mais adequadas ao nosso humor e temperamento.

Por que a definição de Heine como “poeta dos contrários”?


O subtítulo do livro remete aos retratos que dele fizeram alguns de seus contemporâneos – aos quais chamei "daguerreótipos", como este do poeta Théophile Gauthier: "ele era, ao mesmo tempo, alegre e triste, cético e crente, meigo e cruel, sentimental e escarnecedor, clássico e romântico. Alemão e francês, delicado e cínico, entusiasta e pleno de sangue-frio; tudo, menos tedioso". Há também a própria conclusão de Heine de ter sido paladino e carrasco do Romantismo: foi romântico e também foi anti-romântico.











André Vallias, tradutor de Heine:
"Heinrich Heine foi paladino e carrasco
do Romantismo. Foi romântico e 
também foi anti-romântico". Acima,
fac-símile de uma carta assinada por
Heine. Abaixo, retrato do poeta
em litografia de 1851








Depois da “prova de fogo” da poética de Heine, qual seu próximo projeto?

Ainda não me livrei de Heine! Estou agora trabalhando na tradução de dois longos poemas seus, com temas relativos ao "Novo Mundo", que pretendo publicar no ano que vem: um sobre a conquista do México por Hernán Cortés ("Vitzliputzli") e outro sobre Ponce de León e a lendária fonte da juventude. Mas devo também concluir a antologia de poemas e cartas do poeta austríaco Georg Trakl (1887–1914), já bastante adiantada. E Heine...


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Heine, tal e qual. In: Blog Semióticas, 25 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/heine-tal-e-qual.html (acessado em .../.../...).







Para comprar "Viagem ao Harz", de Heinrich Heine,  clique aqui.







Heinrich Heine em pintura de 1848
de autor desconhecido. Abaixo, uma
homenagem ao poeta na escultura em
metal instalada na janela da casa em
que Heine morou em Düsseldorf, na
Alemanha; o busto de Heine no campus da
Universidade Heinrich Heine de Düsseldorf
e a tumba do poeta no cemitério
de Montmartre, em Paris




Palavras de Heine:




1. Aos seus olhinhos tão queridos
 
Compus esplêndida quadrinha;
À sua boquinha tão querida,
Compus magnífica trovinha;
À sua carinha tão querida,
Compus notável cançãozinha.
Assim que tiver um coração, prometo
Compor, inteirinho, um bonito soneto.

Heinrich Heine (tradução de Décio Pignatari)


2. Vem,  linda peixeirinha
 
Trégua aos anzóis e aos remos.
Senta-te aqui comigo,
Mãos dadas conversemos.
Inclina a cabecinha
E não temas assim:
Não te fias do oceano?
Pois fia-te de mim.
Minh’alma, como o oceano,
Tem tufões, correntezas,
E muitas lindas pérolas
Jazem nas profundezas.

Heinrich Heine (tradução de Manuel Bandeira)



3. “Os sábios criam novos pensamentos, e os tolos os divulgam”

Heinrich Heine (tradução de Machado de Assis)


4. Legado

A minha vida chega ao fim,
Escrevo pois meu testamento;
Cristão, eu lego aos inimigos
Dádivas de agradecimento.

Aos meus fiéis opositores
Eu deixo as pragas e doenças,
A minha coleção de dores,
Moléstias e deficiências.

Recebam ainda aquela cólica,
Mordendo feito uma torquês,
Pedras no rim e as hemorroidas,
Que inflamam no final do mês.

As minhas câimbras e gastrite,
Hérnias de disco e convulsões –
Darei de herança tudo aquilo
Que usufruí em diversões.

Adendo à última vontade:
Que Deus caído em esquecimento
Lembre de vós e vos apague
Toda a memória e sentimento.

Heinrich Heine (tradução de André Vallias)







 




Outras páginas de Semióticas