Mostrando postagens com marcador sociologia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador sociologia. Mostrar todas as postagens

8 de fevereiro de 2021

Era uma vez um cinema






O cinema é como uma velha putana, como o circo e o

teatro de variedades, e sabe dar muitas formas de prazer.

..... –– Federico Fellini, depoimento a Joe Denti em 1971.


 


É como dizem aqueles mêmes da internet: não está fácil para ninguém. Para quem ama o cinema, a situação da pandemia gerou uma crise de abstinência sem data para chegar ao fim e que, talvez, seja mesmo definitiva, irreversível, porque há diferenças radicais entre o ritual social e coletivo de assistir a um filme no cinema ou assistir a filmes e séries nas plataformas de “streaming”. Uma coisa é cinema no cinema, outra coisa é Netflix e internet em um ritual doméstico que, quase sempre, pode ser tão individual e solitário como a leitura de um livro. Há notícia de que em algumas cidades os cinemas retornam, mas a maioria do público segue renitente e nem todos se arriscam no perigo do contágio por covid. Também há a decepção sobre os filmes mais aguardados, incluindo os “blockbusters”, que tiveram lançamento adiado ou com estreias diretamente em plataformas pela internet.

Para completar o cenário de pandemia com decepção e abstinência de atividades coletivas, compartilhadas ao vivo, de forma presencial, os cinéfilos têm agora uma previsão devastadora: o fechamento definitivo de muitos cinemas e o temor de que o ritual de assistir filmes nas grandes salas de cinema se transforme rapidamente numa experiência deixada do passado. Na primeira semana de fevereiro, o jornal inglês The Guardian publicou uma reportagem devastadora sobre o fim dos grandes cinemas em países da Europa e nos Estados Unidos: um amplo levantamento, feito sob encomenda pela consultoria de Londres Omdia, aponta que 70% das tradicionais salas de exibição têm sérias dificuldades para sobreviver após um ano de quarentenas e isolamento provocado pela pandemia.

Somente no Reino Unido, o ano da pandemia gerou perdas que somam mais de 30 milhões de dólares (cerca de 27 milhões de euros) para o setor de exibição de filmes nos cinemas e para os negócios que estão diretamente relacionados. No Brasil, onde o fechamento definitivo dos cinemas chegou muito antes da pandemia, não há estatísticas sobre os prejuízos do setor, mas sabe-se que o cenário é ainda mais catastrófico, com todos os entraves lançados pelo governo de extrema direita com orientação fascista em suas ações deliberadas contra a cultura e contra a produção audiovisual. Os tempos sombrios da atualidade, definitivamente, não estão fáceis para quem gosta de assistir filmes dentro da sala escura com outras pessoas, anônimas, em sua maioria, que também gostam de cinema.



















Era uma vez um cinema: no alto, o monumental
Orpheum Theatre, em New Bedford, Massachussets
(EUA), em fotografia de Frank C. Grace. Atualmente
abandonado e em ruínas, foi construído em meados
do século 19 para apresentar espetáculos de ópera,
passou a ser um espaço para exibição de filmes
na década de 1920 e foi fechado definitivamente
no começo da década de 1970.

Acima, dois dos mais antigos cine-teatros
da Inglaterra em fotografias de Rob Ford,
Bradford Odeon, em Edimburgo, e o
Mirth Cinema, em Londres, que foram
vendidos recentemente e estão em
reforma para serem transformados em
casas de shows. Também acima, imagens
dos últimos cinemas de Belo Horizonte, em
Minas Gerais: o Cine Theatro Brasil, que já
teve as maiores bilheterias de cinema do
Brasil, mas foi fechado definitivamente e
reformado para funcionar como centro cultural;
e a fachada do Cine Belas Artes, o último
cinema de rua de BH, desativado desde março
de 2020. Abaixo, o Cine Royal, no Texas,
cenário de A última sessão de cinema, filme
de 1971 de Peter Bogdanovich que tem no
elenco, entre outros, Timothy Buttons,
Jeff Bridges e Cybill Sheperd





 


Sessão de despedida


Um outro título para este artigo, aliás, poderia ser “A última sessão de cinema”, para lembrar o filme de 1971 de Peter Bogdanovich e os rituais da despedida melancólica dos amigos Sonny Crawford (Timothy Buttons) e Duane Jackson (Jeff Bridges). Às vésperas da formatura no colégio, em uma cidadezinha do Texas no meio do deserto, os dois amigos assistem a reprise de “Rio Vermelho”, clássico faroeste de 1948 de Howard Hawks, em uma sessão de despedida, uma última vez, porque não há mais público para assistir aos filmes e o único cinema do lugar vai fechar as portas. O filme de Bogdanovich, que todo cinéfilo conhece bem, é a tradução de uma época – ou, antes, a tradução do final de uma época.

O fechamento do único cinema e a aproximação do baile de formatura funcionam como um ritual de passagem para a vida adulta na narrativa fragmentada de “A última sessão de cinema” (“The last picture show”). O roteiro, escrito por Bogdanovich e por Larry McMurtry, autor do romance homônimo que deu origem ao filme, assim como a fotografia em preto em branco e as longas sequências de silêncio, reforçam o tom saudosista e de melancolia para a morte simbólica que o filme representa, contaminando a todos na pequena cidade e mudando o rumo das vidas dos personagens. A trama está situada no começo dos anos 1950, uma época entre duas guerras, entre o desfecho da Segunda Guerra e o começo da Guerra da Coreia, com a chegada da novidade da televisão que acelera o fim do cinema e as irreversíveis mudanças de hábitos do público.









Era uma vez um cinema: no alto, os cinemas
e teatros do Império Burnley em Lancashire, norte
da Inglaterra, fechados desde 1995 e atualmente
em ruínas, em fotografia de Christopher Tomond.

Acima e abaixo, uma amostra do acervo de prédios
de cinema fotografados por Simon Edelstein
em cidades de 30 países e reunidos no fotolivro
Abandoned cinemas of the world: acima,
o Cinema Corso em Vicenza, norte da Itália.
Abaixo, dois antigos cinemas desativados na
Índia: o Royal Talkies, em Beaward, e o
Ambala, na cidade de Nishat, que era o único
cinema na região da Caxemira. E o antes
suntuoso Cinema Charleroi, na Bélgica

 










A morte do cinema decretada pela TV já havia sido profetizada ainda nos anos 1950 por vários pensadores – entre eles o canadense Marshall McLuhan (1911-1980), que alertava sobre a cadeia evolutiva nos processos históricos dos meios de comunicação, na obsolescência das mídias e nas transformações dos hábitos de consumo sempre que surge uma nova forma de mídia, ou uma nova forma tecnológica. Foi assim que o surgimento do livro impresso e da imprensa criou novas formas de sociabilidade ao final da Idade Média, assim como a fotografia criou novas formas de percepção da realidade – e o surgimento do cinema levou à extinção ou à transformação radical de outras diversas formas de representação.


O fim de uma época


As revoluções continuaram, na análise de McLuhan, sucessivamente, com os meios de comunicação atuando como extensões dos sentidos da experiência humana. Em “A noiva mecânica” (1951), “A Galáxia de Gutenberg” (1962), “Understanding Media ” (1964), “O meio é a massagem: um inventário dos efeitos” (1967) e outros livros que marcaram época, McLuhan destaca que, assim como a análise do conteúdo se faz importante, a interposição do meio em que tal análise e tal conteúdo são processados e transmitidos se faz essencial, pois a tecnologia da mídia sempre altera os aspectos sociais e mentais tanto individuais como coletivos. Os registros históricos revelam que aconteceu assim com o surgimento de todos os meios de comunicação, do telégrafo, do telefone, da imprensa ilustrada, da fotografia, do cinema, do rádio, do cinema falado, da TV, e agora com a internet e seus dispositivos de acesso, com cada nova mídia provocando e determinando novas formas de consumo, de percepção sensorial e de interação social.






        



Era uma vez um cinema
: os prédios de cinemas
abandonados em vários países em fotografias
de Simon Edelstein: no alto, o Cine Lowe's
Majestic
em Bridgeport, Connecticut (EUA).

Acima, as ruínas do Cine Chand em Nova Deli,
na Índia, e do Cine Cervantes em Tânger,
no Marrocos. Abaixo, o antigo Cine Stanley
em Jersey City, New Jersey (EUA), e o
Cine Lowe's no Brooklyn, em Nova York,
atualmente usados como sedes de culto
por igrejas evangélicas, assim como
acontece com centenas de antigos cinemas
em muitas cidades do Brasil




           



           


Seguindo e confirmando as análises visionárias de Marshall McLuhan, as salas de cinema resistiram por mais de um século, enfrentando as formas de concorrência avassaladora de todas as mídias, da TV, da TV em cores e por assinatura, dos vídeos domésticos e das locadoras de filmes em VHS e DVD. Porém, o avanço das plataformas de streaming na última década, e especialmente neste último ano da pandemia, provocado pelos riscos de contágio tanto nos contatos sociais como nas aglomerações ou em ambientes fechados, sinalizam o derradeiro fim de uma época, com muitos cinemas em cidades do interior e nas capitais do mundo inteiro repetindo aquele ritual de encerramento das atividades e despedida da última sessão do filme de Bogdanovich – uma despedida que pode ser definitiva, ao que tudo indica.



            








Era uma vez um cinema: os prédios de cinemas
abandonados em fotografias de Simon Edelstein
:
acima, o luxuoso Picture Palace, em Bradford,
Inglaterra, transformado em loja de tapetes; e o
que restou das poltronas na plateia de mil lugares
do Cine Eden em Marrakesh, Marrocos.

Abaixo, o Cinéma Metro Art Deco, em Nova York,
recordista de bilheterias desde os anos 1930,
agora transformado em academia de ginástica.
Abaixo, dois tradicionais cinemas da França,
também desativados: o Palace, de Longwy,
e o Le Gaumont Picardie, em Amiens












O ritual de passagem, talvez inevitável, para um mundo sem as grandes salas de cinema teve sua tradução em diversos registros fotográficos publicados nos últimos meses pelo mundo afora. Nas últimas semanas, os jornais The Guardian e The Telegraph, no Reino Unido, as revistas “Variety” e “The New Yorker”, nos Estados Unidos, a revista francesa “Paris Match” publicaram ensaios fotográficos de Frank C. Grace, de Rob Ford e de Christopher Thomond sobre cines-teatros monumentais que já estão definitivamente abandonados ou sendo demolidos em vários países. E também há os livros em edições de luxo que apresentam extensos inventários fotográficos sobre estes monumentos cada vez mais raros nas paisagens urbanas, os cinemas esquecidos, arruinados pelo tempo, em suas dimensões sociais, econômicas, culturais e arquitetônicas. Ao menos dois livros, na verdade réquiens em formato de catálogos fotográficos, ou fotolivros, são dignos de nota, publicados pelos fotógrafos veteranos Simon Edelstein (“Abandoned Cinemas of the World”, Jonglez Publishing) e Carolina Sandretto (“Cines de Cuba”, Editorial Skira).










    
             




Era uma vez um cinema: os prédios de cinemas
abandonados em vários países em fotografias
de Simon Edelstein: no alto, o Cine Avenida
em Costa Nova do Prado, Portugal. Acima, dois
cinemas tradicionais da França, que também
fecharam as portas em 2020: o Rex, em
Audun-Le-Tiche, e o Normandie, em Bayeux.

Abaixo, a fachada do Cine Palace em Marraquexe,
no Marrocos, e o saguão do Cine Commodore
na cidade de Trípoli, região norte do Líbano









Cenários de melancolia


Simon Edelstein percorreu 30 países na pesquisa de campo para seu fotolivro e selecionou 562 fotografias sobre cinemas emblemáticos e grandiosos em seus edifícios que, na atualidade, perderam o protagonismo e a glória de outros tempos. Suas imagens são cenários de nostalgia e melancolia, com grandes salas de cinema definitivamente fechadas, aguardando demolição ou transformadas em outros espaços de uso ou de comércio, tais como igrejas evangélicas, mercados de feiras livres ou lojas enormes de produtos baratos produzidos na China, enquanto o público segue criando o hábito de assistir filmes pela internet e permanece, cada vez mais, indiferente ao desaparecimento de seus prédios históricos. Nas fotografias de Edelstein, os cenários são de total melancolia, nas fachadas e nos pormenores dos interiores, com entradas abandonadas e sem luzes, algumas em completa ruína, outras ainda com parte dos letreiros do último filme em cartaz, as cadeiras destruídas em fileiras incompletas ou cobertas de pó, as paredes descascadas, os cartazes rasgados.

Com Carolina Sandretto, a temporada de pesquisa de campo em Cuba durou quatro anos, um período em que ela viajou pelos quatro cantos da ilha para localizar e fotografar 300 edifícios de cinema com uma câmera Hasselblad no formato que era usual na década de 1950. Pesquisando nas bibliotecas de Havana, a fotojornalista localizou documentos de antes da Revolução de 1959 sobre o funcionamento das antigas salas de cinema. Em 1953, Cuba contava com 694 cinemas, sendo 134 somente em Havana – mais do que havia na cidade de Nova York ou em Paris. Em 1958, eram 511 cinemas exibindo filmes diariamente em Cuba e 130 na cidade de Havana. A maioria, no entanto, terminou fechada nas décadas seguintes. Atualmente, 30 cinemas são usados em Cuba com a finalidade de exibição diária de filmes.










Era uma vez um cinema: os prédios de cinemas
abandonados em Cuba, registrados no fotolivro
Cines de Cuba, de Carolina Sandretto: e
m 1953,
Cuba contava com 694 cinemas, sendo 134
somente em Havana – mais do que havia em
funcionamento na cidade de Nova York ou
em 
Paris. Atualmente, 30 cinemas em Cuba
funcionam com exibição diária de filmes,
entre eles os cines Karl Marx e Yara,
situados no centro comercial de Havana
(fotografias no final da página)














A história dos cinemas em Cuba, segundo Carolina Sandretto, traz reflexos da ocupação e exploração cultural da ilha pelos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos. A maioria dos prédios para instalação dos cinemas foi construída por empresas que faziam parte de conglomerados de estúdios e distribuidoras de Hollywood, como a 20th Century Fox ou a Radio-Keith-Orpheum (RKO), mas logo após a Revolução Cubana as estruturas para exibição de filmes foram pouco a pouco sendo desativadas por falta de investimento e de manutenção, com alguns cinemas sendo revertidos para outros fins comunitários ou transformados em auditórios para escolas. Muitos dos antigos prédios, no entanto, está em ruínas e caiu no esquecimento.

A seleção de imagens melancólicas e nostálgicas sobre esses cinemas abandonados, muitos deles em construções que, em sua época, foram suntuosas, em estilos neoclássico ou Art Déco que justificavam os títulos de “palácios”, e que agora estão em estado de decadência e ruínas, leva a questionamentos dos mais pessimistas sobre o futuro da exibição de filmes para grandes plateias, um ritual que teve início com as sessões inventadas pelos irmãos Lumière no final do século 19. Afinal, será assim, de forma inevitável, destinado ao completo abandono e ao esquecimento, o futuro que aguarda as salas de cinema em todos os países?


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Era uma vez um cinema. In: Blog Semióticas, 8 de fevereiro de 2021. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2021/02/era-uma-vez-um-cinema.html (acessado em .../.../...).



Para comprar o livro Abandoned Cinemas, de Simon Edelstein,  clique aqui.




Para comprar o livro Cines de Cuba, de Carolina Sandretto,  clique aqui.





Para comprar o livro O cinema de meus olhos, de Vinicius de Moraes, clique aqui.

 









Outras páginas de Semióticas