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20 de junho de 2012

Tiro ao Álvaro









Seu forte sotaque caipira misturado a expressões e linguajares dos imigrantes italianos produziu uma prosódia personalíssima e muito familiar ao imaginário popular: histórias tristes de perdas, carência afetiva, abandono, traição, despejo, pobreza e desassossego. Compaixão e amargura, contudo, ganham um indisfarçável tom de pândega e de ritmo irresistível nas irreverentes canções de João Rubinato, cantor, compositor, ator e comediante de primeira, vaidoso da juventude às últimas vezes em que foi fotografado, sempre posando de terno, gomalina no cabelo, chapéu de lado, gravata borboleta e caixa de fósforos nas mãos.

Sétimo filho do casal Fernando e Emma, que migraram da Itália para São Paulo, João Rubinato deixaria sua marca na cultura brasileira sob um codinome que ele próprio inventou – Adoniran Barbosa (1910-1982). Sua trajetória é feita de mudanças: nasce na cidade de Valinhos, mas em seguida vai com a família para Jundiaí. Aos 14 anos, troca a escola pelo trabalho e segue outra mudança da família, agora para Santo André, na Grande São Paulo. Aos 22 anos vai para a capital, onde trabalha como vendedor de tecidos. Em seguida, toma gosto pela música e pelas participações em programas de calouros no rádio.

É nessa época que o filho caçula, chamado de Joanin pela família, também muda de nome: Adoniran era o nome de seu melhor amigo e Barbosa foi uma homenagem ao cantor Luís Barbosa, seu ídolo. O primeiro destaque aconteceu em 1934, quando conquistou com “Dona Boa”, feita em parceria com J. Aimberê, o primeiro lugar no concurso carnavalesco da prefeitura de São Paulo. Anos depois é convidado para trabalhar como ator cômico, locutor e discotecário na Rádio Record, mas o primeiro sucesso só viria em 1955, com “Saudosa Maloca”, duas décadas após aquele primeiro prêmio.










Lembranças de Adoniran Barbosa:
acima, com os Demônios da Garoa;
abaixo, com Silvio Caldas e Grande Otelo
na lanchonete Estadão, no centro de São Paulo,
em janeiro de 1979, nos bastidores da gravação
de um programa da TV Bandeirantes em
homenagem ao aniversário da cidade







Rubinato e os Demônios da Garoa



O conjunto Demônios da Garoa, que fez a primeira gravação de “Saudosa Maloca”, passaria desde então a ser inseparável dos grandes êxitos de Adoniran, com arranjos vocais cheios de onomatopeias e breques com dramatizações que ironizam o sotaque italianado de bairros paulistanos como Brás e Barra Funda. Outros intérpretes que imortalizaram canções de Adoniran mantiveram essa marca do compositor em suas parcerias com os Demônios da Garoa – entre eles Elis Regina, que gravou em 1980 a antológica “Tiro ao Álvaro”, uma das últimas composições de João Rubinato.

Foi nessa época, dois anos antes de morrer, que Adoniran recebeu uma bela e comovente homenagem produzida por Fernando Faro. Para marcar os 70 anos do compositor, o próprio Adoniran retornou aos estúdios para gravar um disco de parcerias inéditas, cantando ao lado de grandes nomes da música brasileira suas mais famosas composições, incluindo, entre outras, “Tiro ao Álvaro” (com Elis Regina), “Bom Dia Tristeza” (com Roberto Ribeiro), “Viaduto Santa Ifigênia” (com Carlinhos Vergueiro), “Aguenta a Mão, João” (com Djavan), “Vila Esperança” (com MPB4), “Iracema” (com Clara Nunes), “Despejo na Favela” (com Gonzaguinha) e “Torresmo à Milanesa” (com Clementina de Jesus e Carlinhos Vergueiro).
















Adoniran em dois retratos em aquarelas
de 1980 de Elifas Andreato. Acima,
uma homenagem ao compositor em
retrato em um antigo painel no Bixiga.

Abaixo, Adoniran em grafite de
Izolag Armeidah; e no encontro
com o dramaturgo Plínio Marcos
em um bar no Bixiga, em São Paulo:
dois artistas que fizeram de sua
arte a voz dos excluídos









.



No encarte daquele disco, que foi relançado em CD pela EMI com o título “Adoniran Barbosa e Convidados”, Fernando Faro escreve sobre Adoniran e seu hobby de fabricar brinquedos. É um comentário breve, poético, que também pode ser lido como uma interpretação sobre suas canções mais conhecidas. “Buscando fundo na memória, ouvindo de vez em quando os amigos, e percorrendo ruas e bares, ele vai refazendo pedaço a pedaço, sem muita ordem, utilizando o metal, a madeira, os fios, e também a palavra e o samba, a humana e muito doce paisagem dessa cidade – uma cidade que muda a cada minuto, e se deforma e se reforma, e se transfigura. É São Paulo que ele constrói. Ou reconstrói".



Três décadas sem Adoniran



Oito anos antes do disco, considerado um dos melhores na discografia de Adoniran, Fernando Faro também gravou com ele um programa memorável da série “MPB Especial” na TV Cultura. O programa, com uma hora de duração e em preto e branco, que apresenta Adoniran cantando e falando de momentos marcantes da carreira, foi lançado em DVD pela Biscoito Fino na série dedicada aos nomes que passaram na verdade por outro programa, o “Ensaio”, também apresentado e dirigido por Fernando Faro na TV Cultura.









No alto, Adoniran Barbosa em cena do
programa Ensaio, da TV Cultura, em
1972. Acima, em foto de Oswaldo Jurno;
 abaixo, fotografado por Pedro Martinelli
em 1978, em visita às obras na praça
da Catedral da Sé






 


Entre outras histórias, algumas melancólicas, outras hilariantes, exatamente como nas melhores canções de Adoniran, o compositor reconhece, no programa de Fernando Faro, que andava triste e esquecido quando uma campanha publicitária da cerveja Antarctica comprou os direitos para usar um dos seus antigos bordões – “nós viemos aqui pra beber ou pra conversar?” Adoniran recorda que foi “vapt-vupt”: o bordão caiu no gosto popular, trouxe de volta à mídia o compositor de “Saudosa Maloca” e ainda alavancou as vendas da cervejaria.

Além do programa na TV Cultura, outro registro memorável com Adoniran foi o especial de Elis Regina que a TV Bandeirantes exibiu em 1978, com direção de Roberto de Oliveira e Sueli Valente. Elis visita Rita Lee numa discoteca e depois mostra imagens das novelas e dos principais filmes da trajetória de Adoniran como ator (entre eles “O Cangaceiro”, de 1953, “Candinho”, de 1954, e “A Carrocinha”, de 1955), antes de sair passeando e cantando com o próprio Adoniran nos cenários que inspiraram suas mais conhecidas canções. 










Adoniran e Elis Regina em 1979, durante as
gravações de um programa da TV Bandeirantes
na Padaria Real, São Paulo, fotografados por
Marjorie Sonnenschein. Abaixo, Adoniran 
com Elis no Bar da Carmela, no Bexiga, e
Adoniran em 1980, no Viaduto Major Quedinho,
São Paulo, em fotografias de Pedro Martinelli;
e em frente à Catedral da Sé, em 1978, e
no Largo de São Bento, em São Paulo,
em fotografias de Oswaldo Jurno



 




Autor de clássicos imbatíveis que as pessoas comuns têm na ponta da língua, como “Trem das Onze” e outras dezenas de grandes sucessos que permanecem há mais de meio século na memória nacional, Adoniran, que morreu há 30 anos, em 23 de setembro de 1982, tem recebido tímidos tributos desde então. Como a maior parte de sua discografia permanece fora de catálogo, um CD com gravações inéditas de seu repertório por novatos e veteranos da MPB em 2010, ano de seu centenário, foi a homenagem mais destacada em décadas para o artista que melhor retratou as histórias e os personagens paulistanos. 



Tributos e estudos biográficos


Vida e obra do compositor, que nos últimos anos de vida passava os dias fabricando brinquedos artesanais e tinha orgulho de ser corintiano doente, também foram lembradas em três estudos biográficos: “Adoniran – Uma Biografia” (Editora Globo, 2010), de Celso de Campos Jr.; o livro em formato de agenda permanente “Adoniran Barbosa” (Editora Anotações com Arte, 2010), de Fred Rossi; e “Pascalingundum! – Os eternos Demônios da Garoa” (Editora do Autor, 2009), de Assis Ângelo, uma biografia do conjunto que está na estrada há mais de 60 anos, mas que também destaca Adoniran em primeiro plano. 
 

















 

Dos três, o livro de Celso de Campos Jr. tem o maior fôlego: resgata minúcias da trajetória de Adoniran através de mais de 80 entrevistas e extensa pesquisa em arquivos públicos, em bancos de dados de jornais e no vasto acervo pessoal do Museu Adoniran Barbosa, esquecido nos subterrâneos da antiga sede do Banco de São Paulo. Para resgatar a trajetória do compositor, cantor, ator, artista de circo, poeta, o biógrafo parte da lenda de São Paulo como “túmulo do samba” para situar Adoniran como síntese da fala popular da cidade – o que fez com que ele alcançasse a proeza de criar versos que são ainda hoje reconhecidos por todos.

Selecionar o repertório de Adoniran não é difícil, porque ele tem uma coleção de canções que todo mundo gosta e canta junto de memória”, apontou o produtor Thiago Marques Luiz em entrevista que fiz com ele por telefone, na época do lançamento do CD. Assim como fez no final de 2009 com as canções do mineiro Ataulfo Alves, Thiago também realizou um eclético tributo ao centenário compositor paulista. “Adoniran 100 Anos”, lançado pela gravadora Lua Music, reúne uma bela coletânea de gravações inéditas.






















Além do valor da homenagem, que atualiza os grandes sucessos do compositor, o tributo a Adoniran colocou lado a lado novos nomes – como Verônica Ferriani, Márcia Castro, Mateus Sartori – e veteranos de gêneros variados da música brasileira, do samba de Jair Rodrigues, Leci Brandão, Eduardo Gudin, Cristina Buarque e Thobias da Vai-Vai ao pop-rock de Zélia Duncan, Arnaldo Antunes, Edgar Scandurra, e daí à vanguarda paulistana (Cida Moreira, Vânia Bastos, Tetê Espíndola, Virginia Rosa, Passoca, Laert Sarrumor) e a medalhões da MPB como Demônios da Garoa, Cauby Peixoto, Célia, Wanderléa, Maria Alcina e Dominguinhos. 



Justiça ao talento



Entre os grandes sucessos e pérolas pouco conhecidas de Adoniran, o tributo da Lua Music faz justiça ao talento do compositor e impressiona tanto pela qualidade das interpretações, quanto pela variedade de artistas envolvidos. “Nossa prioridade foi convidar grandes cantores que nunca tinham gravado o repertório de Adoniran”, explica Thiago. Cada artista, ele conta, teve total liberdade para a interpretação e os arranjos. Algumas das releituras são radicais, outras se mantêm apenas respeitosas.
 







Entre as mais surpreendentes, Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra desconstroem a cadência festiva de “Trem das Onze”, transformada em experimento para guitarra, voz e percussão (por Guilherme Kastrup). Tetê Spíndola e Markinhos Moura também retornam em grande estilo. Ela, no registro habitual de agudos, na sempre comovente “Iracema”. Ele, com um tom quase feminino em “Despejo na Favela”, que faz lembrar à primeira audição a extensão vocal de Elis Regina.

Mart’nália (com “As Mariposas”), Zélia Duncan (“Tiro ao Álvaro”) e Maria Alcina (“Um Samba no Bixiga” e “Plac Ti Plac”) também brilham, assim como Wanderléa e Thomas Roth, reunidos na releitura de “Samba do Arnesto”. “O Adoniran é sim o mais paulista dos compositores e também um dos maiores da música brasileira em todos os tempos”, destaca Thomas Roth, cantor, compositor, dono da Lua Music e popular no Brasil inteiro por conta da presença nas bancadas de jurados dos programas de TV “Ídolos” (2006 e 2007), “Astros” (2008 e 2009) e atualmente no ar no “Qual É o Seu Talento?” do SBT.









O lugar e a importância de Adoniran vão além do samba e muito além de São Paulo. Ele foi incomparável pelo talento, pela originalidade e pela capacidade de transformar em canções de sucesso frases e expressões de tipos característicos da vida paulistana. Ele foi o primeiro e o melhor a fazer construções eminentemente populares, em uma época em que o academicismo e a língua culta prevaleciam e davam o tom. Adoniran é único e permanece, rigorosamente, no primeiro time da MPB”, completa Roth.

Não se pode negar, afinal, que Adoniran é uma figura dessas que têm lugar cativo no imaginário popular. “Série única, edição esgotada”, como define com propriedade Fernando Faro. Na fronteira entre o fraseado caipira e o sotaque italianado, falando em “lâmpida”, “progréssio”, tiro ao “álvaro”, fez sambas que no humor e no balanço não lembram em nada os clássicos dos bambas do Rio ou da Bahia. As belas canções de Adoniran se mantêm como as mais completas traduções dos cenários e dos tipos mais entranhados da Paulicéia, mesmo para quem não mora em São Paulo ou não conhece o Viaduto Santa Ifigênia, a Avenida São João e o Jaçanã.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Tiro ao Álvaro. In: Blog Semióticas, 20 de junho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/tiro-ao-alvaro.html (acessado em .../.../...).








Trecho do livro  'Adoniran - Uma Biografia'


Mas, para azar da família, o que João Rubinato almejava estava próximo demais da sua rota de trabalho. Como o jovem não era de resistir a tentações, as estações de rádio paulistanas, que despontavam como a coqueluche da época, ganharam um assíduo frequentador. As ondas sonoras desviavam o vendedor da labuta e o carregavam para as sedes das emissoras Cruzeiro do Sul, no largo da Misericórdia, Record, na praça da República, e Rádio São Paulo, recém-inaugurada na rua 7 de Abril. Além de acompanhar os programas, o rapaz procurava acomodar-se nos bares e botecos onde os funcionários das estações recarregavam as baterias. Entre uma branquinha e outra, acabaria conhecendo figuras já consagradas no meio radiofônico local, como o locutor Nicolau Tuma, os maestros Gaó e José Nicolini e os cantores Januário de Oliveira e Raul Torres.

Em pleno horário de expediente, usava sua lábia não para empurrar mercadorias aos comerciantes, mas para convencer os cartazes do rádio de que também ele poderia fazer e acontecer diante de um microfone. Não demorou para que o admirador de Noel Rosa e Carlos Gardel, dono de uma voz que poderia ser classificada entre o regular e o sofrível – mais para o sofrível –, se enturmasse com os artistas. De tanto insistir, recebeu em 1934 o convite para participar do programa Calouros do Rádio, pioneira criação do produtor Celso Guimarães para a Rádio Cruzeiro do Sul. João estava radiante: era a oportunidade que pedira a Deus. Cheio de prosa, foi escolher o terno, a gravata e comprar um pote extra de gomalina para ajeitar os cabelos. Tinha de ficar na estica para aquele sábado.


Extraído do primeiro capítulo
de Adoniran – Uma Biografia,
de Celso de Campos Jr. Abaixo, Adoniran
na plataforma da Estação Jaçanã em 1965
e no Viaduto do Chá, em 1980,
em fotografia de Pedro Martinelli






   



13 de junho de 2012

Gostos da Belle Époque






Também tivemos a nossa Belle Époque, por sinal que feia como

sete dias de chuva. Começou com a República. Basta comparar a

iconografia imperial com a posterior, para ver a coisa inestética

que veio depois de D. Pedro II. Gravuras de Debret e Rugendas,

pintores régios, figuras de Angelo Agostini – cheias dos nossos usos,

costumes, tipos, ruas, casas, campos, estradas, árvores, céus e

alegorias – tudo isso foi substituído pelo duro documento fotográfico.

–– Pedro Nava, “Baú de Ossos” (1972).   

  

Não são poucos os historiadores que relacionam a criação da Coca-Cola com o início da Belle Époque. A bebida nasceu com a chegada da Revolução Industrial em Atlanta, Estados Unidos, inventada logo depois da Guerra de Secessão, na mesma época em que tem início a Belle Époque em Paris, França, até então considerada centro cultural do mundo. Em 1884, o farmacêutico John Pemberton (1831–1888) lançou a mistura alcoólica “Pemberton's French Wine Coca”, anunciada como bebida intelectual, vigorante do cérebro e tônica para os nervos, feita da mistura de folhas de coca, grãos de noz-de-cola e álcool.

O puritanismo religioso foi um impedimento ao sucesso comercial da primeira versão da bebida, mas Pemberton não desistiu: retirou o álcool da fórmula e passou meses no porão de sua casa em Atlanta adicionando ingredientes à água carbonada para chegar a um outro xarope. Em maio de 1886, a nova bebida começa a ser vendida e seu primeiro anúncio publicitário é publicado como Coca-Cola, nome dado por Frank Robinson, que utilizou a sua própria caligrafia para fazer o logotipo que sobrevive ainda hoje.











Imagens da Belle Époque:
a partir do alto da página, dois
dos primeiros anúncios publicitários
da Coca-Cola, impressos na década de
1890 em sofisticadas técnicas de policromia.

Acima, The Walkers (Bazille et Camille),
pintura impressionista de 1865 de Claude Monet;
e
Tempo de chuva na praça de Rådhuspladsen
em Copenhague, Dinamarca. Pintura em óleo sobre
tela de 1905 do dinamarquês Paul Gustave Fischer.

Abaixo,
a capa em 
policromia do catálogo ilustrado
Le Nouvelle Mode, editado em Paris no ano de
1900; Uma jovem lendo, pintura em óleo
sobre tela de 1898 de Ricardo López Cabrera;
e o ápice da ornamentação em O beijo, pintura
de 1908 de Gustav Klimt, uma obra carregada
de erotismo e de expressionismo
















Nos bares, o xarope do farmacêutico John Pemberton era apresentado em copos de vidro e misturado na hora de servir. Curioso é que os primeiros cartazes publicitários coloridos que anunciavam o produto faziam mais sucesso que a bebida e por isso passaram a ser distribuídos como brinde aos clientes que compravam o produto engarrafado para levar para casa ou seguir viagem. As primeiras garrafas vinham com tampas de rolha, mas a partir de 1900, foi adotada a novidade da “tampa coroa”.

Enquanto a Coca-Cola ganhava o mundo, florescia a partir da França a Belle Époque – com sua pluralidade de tendências filosóficas, científicas e sociais, incluindo o aparecimento das vanguardas nas artes, na literatura, na música e na arquitetura, reforçada com as reformas urbanas em Paris e nas capitais da Europa, irradiando seus reflexos nas cidades de outros continentes. Favorecida por um longo período de paz internacional que só seria interrompido em 1914, quando explodiria a Primeira Guerra Mundial, é a época das ostentações e das grandes invenções: eletricidade, telégrafo, telefone, cinema, estradas de ferro, automóveis, aviões. A história da arte também classifica este período, do final do século 19 até o final dos anos 1920, como época da Art Nouveau, com obras de arte e objetos industriais criados para destacar uma exuberância decorativa de curvas assimétricas, formas botânicas e motivos florais.














Paris no final do século 19: no alto,
cartaz original criado por Alphonse Mucha,
o maior nome da Art Nouveau, para a peça
“A Dama das Camélias", de Alexandre Dumas,
estrelada por Sarah Bernhardt, em litografia colorida
de 1896. Também acima, pintura anônima que retrata
o Port St. Denis; e duas fotografias anônimas,
a primeira com data de 1880, mostrando a
Avenue des Champs-Élysées, e a segunda de
1900, mostrando a clientela do Café de La Paix.

Abaixo, Robert De Niro com Dominique Sanda
fotografados por Eva Sereny nas filmagens de
"Novecento", filme de 1976 de Bernardo Bertolucci
que apresenta uma retrospectiva da história desde a
Belle Époque na Itália, em 1900, até a Segunda Guerra.
Também abaixo, o momento histórico em que o brasileiro
Alberto Santos Dumont voa sobre Paris na manhã
do dia 19 de outubro de 1901 e provoca uma grande
comoção na multidão que vai às ruas








 



Coca-Cola nos grotões



No Brasil, é comum situar a Belle Époque entre 1889, com o fim do Império e a Proclamação da República, e 1922, ano de realização da Semana de Arte Moderna de São Paulo, mas há pesquisadores que defendem a extensão do período até a Revolução de 1930, que por sua vez encerra a primeira fase da República. Por aqui, entretanto, a associação entre a Belle Époque e a popularização da Coca-Cola sempre gerou controvérsias, visto que o início da comercialização da bebida importada dos EUA só acontece a partir dos anos 1930, ainda assim restrita ao público de maior poder aquisitivo.

Somente mais tarde, no contexto da Segunda Guerra, sob pressão do governo do presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, e com a instalação das primeiras bases militares norte-americanas no Norte e no Nordeste do Brasil, é que o comércio de Coca-Cola passou a ser cada vez mais frequente. Em 1941, Getúlio Vargas autoriza a inauguração da primeira fábrica de Coca-Cola em solo brasileiro, no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Dois anos depois, iria ao ar, pela Rádio Nacional, “Um Milhão de Melodias”, o primeiro programa a ser patrocinado pela Coca-Cola no Brasil.









Cenas da Belle Époque no Brasil:
Getúlio Vargas em 1911, anos antes de
chegar à Presidência da República, ao lado
de sua esposa, dona Darci. Também acima,
Getúlio Vargas ao centro, com seus fieis 
seguidores, durante a curta estadia em
Itararé (SP) em seu caminho para a
tomada do poder no Rio de Janeiro,
depois do êxito das tropas militares
na linha de frente. Abaixo, o encontro
entre os presidentes Getúlio Vargas e
Franklin Roosevelt na base aérea
norte-americana instalada em
Natal (RN), em 28 de janeiro de 1943











Cinco décadas antes disso, quando a industrialização do produto mais identificado com a invasão norte-americana em todo o mundo ainda dava seus primeiros passos, com as investidas do farmacêutico John Pemberton em Atlanta, as instituições brasileiras explodiam em reviravoltas provocadas por dois eventos de impacto. São divisores de águas no Brasil, na segunda metade do século 19, a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, que extinguiu a escravidão (assinada por Dona Isabel, princesa imperial, que estava na regência, durante viagem do imperador Dom Pedro 2° ao exterior), e o levante militar em 15 de novembro de 1989, que pôs fim à soberania do imperador e proclamou a República.

O período identificado como Belle Époque, no Brasil, vai coincidir com um movimento demográfico de grandes proporções, com a chegada das grandes levas de imigrantes ao território nacional. É também a época em que a imensa população de escravos recém-libertados e seus descendentes passam a ocupar as periferias das cidades, enquanto as classes mais abastadas se estabelecem nos centros urbanos. São os antigos senhores de escravos que também vão firmar a novidade do consumo de produtos industrializados, a grande maioria importada das capitais da Europa.












Gostos da Belle Époque: acima, Dom Pedro 2°
fotografado por Marc Ferrez em 1885, no Paço
de São Cristóvão, Rio de Janeiro. No alto,
Família Imperial no exílio, reunida no
Castelo d’Eu, Normandia, França, em 1918,
fotografada por P. Gavelle. Em primeiro plano,
partir da esquerda: Dona Maria Francisca
(em pé) e Dona Elisabeth Dobrzenky de
Dobrzenicz (sentada), tendo ao colo Dom João
Maria; a seu lado, Dona Isabel, futura Condessa
de Paris, e Dom Pedro Gastão, ambos em pé.
Sentados, Conde d’Eu e Princesa Isabel,
seguidos de Dona Pia Maria, em pé, Dom Luís,
sentado, Dom Luís Gastão e Dom Pedro Henrique,
Príncipe do Grão-Pará, ambos em pé. No
segundo plano, da esquerda para a direita,
em pé, Dom Pedro de Alcântara, Dom Antônio
e Dona Maria Pia. Na segunda imagem,
Princesa Isabel e Conde d’Eu fotografados
por P. Gavelle em 1919.

Abaixo, imagem rara dos arquivos
do Museu Imperial de Petrópolis
apresenta um desfile de carruagens e uma
batalha de flores na avenida principal, no
Carnaval, em fevereiro de 1888. Também
abaixo, fotografia de Augusto Malta que
registra a Rua do Ouvidor, no centro do
Rio de Janeiro, por volta de 1900;
e a recém-inaugurada Avenida Central,
em 1909, no centro do Rio de Janeiro,
em fotografia de Marc Ferrez mostrando
à esquerda a Praça Floriano Peixoto e o
Teatro Municipal, e à direita, a Escola
Nacional de Belas Artes











.











Marcada pelas grandes invenções, capitaneadas pela proliferação de imagens da fotografia, do cinema, de jornais e revistas e muitos anúncios publicitários, a Belle Époque, também no Brasil, vai testemunhar um “embelezamento” dos hábitos da vida cotidiana, com a entrada do design sofisticado nos objetos utilitários, nas vestimentas e nos detalhes rebuscados na arquitetura e na fachada das casas. A República, recém-instalada, almejava inaugurar uma nova era no país e, por conta disso, tentou minimizar tudo o que lembrava o Império e o passado da colonização portuguesa. 



Arquitetura e 'embranquecimento'
 


Dentre estas novas metas, alardeadas como progresso pelos republicanos que chegaram ao poder, se destaca a legislação que oficialmente procurava o “embranquecimento” do povo brasileiro, marginalizando os negros recém-libertados e incentivando a recepção de povos imigrantes, nomeados nos documentos com as características de “brancos e letrados”. A vida cultural nas capitais também buscava novo rumo, com a tentativa de importar novos hábitos de consumo na ilusão de ganhar alguma aproximação das culturas francesa e italiana. 

Com a chegada das populações de imigrantes, a maioria vinda dos países europeus, a arquitetura e o urbanismo têm um salto qualitativo considerável nos primeiros tempos da República, especialmente no final do século 19 e na primeira década do século 20: é dessa época a popularização de novidades como os automóveis que passam a ocupar as paisagens urbanas e também a fundação de Belo Horizonte, primeira cidade planejada no Brasil, com os amplos espaços livres das praças e dos largos das igrejas e da Estação Ferroviária, suas amplas e extensas avenidas em traçado geométrico e prédios suntuosos que abrigavam a administração pública e a modernidade dos teatros e dos cinemas.










Gostos da Belle Époque: acima,
cenas de Belo Horizonte no início
do século 20, a primeira cidade
planejada do Brasil com suas
amplas avenidas em traçado
geométrico e prédios suntuosos
que abrigavam a modernidade dos
cinemas. Abaixo, registros em
fotografias anônimas sobre as
reformas urbanísticas no
Rio de Janeiro, com a demolição
dos cortiços e a abertura de
amplas praças e avenidas,
seguindo o modelo francês de
arquitetura e urbanismo 


 






Outro marco arquitetônico na Belle Époque brasileira foi a grande reforma urbanística no Rio de Janeiro, então Capital Federal, com a demolição dos cortiços e antigos casarios no centro da cidade e a abertura das amplas avenidas, empreendidas pelos projetos de Pereira Passos e Rodrigues Alves. As reformas e as novas construções fundadas no estilo em voga na França e em outros países da Europa também chegaram a São Paulo, como apontam dois estudos inspirados sobre a arquitetura e a iconografia da Belle Époque paulistana, há décadas considerados itens de colecionares, que retornaram às livrarias em lançamentos da Companhia Editora Nacional.



Cenários de 1900



Em “São Paulo: Belle Époque” e “Memória e Tempo das Igrejas de São Paulo”, os belos traços da artista plástica Diana Dorothéa Danon transformam detalhes arquitetônicos e fachadas remanescentes de igrejas, mosteiros, palacetes, estações e antigos casarões em desenhos, aquarelas e poemas. O trabalho da artista encontra nas novas edições apoio em textos referenciais de dois especialistas: o jornalista Leonardo Arroyo e o arquiteto e urbanista Benedito Lima de Toledo. Formada em pintura pela Escola de Belas Artes de São Paulo, em 1959, Diana Danon, que em 2012 completa 83 anos, está em boa companhia.







Leonardo Arroyo, que foi colaborador dos jornais “A Notícia” e “Folha da Manhã”, venceu o Prêmio Jabuti em 1985 com o livro “A Cultura Popular em Grande Sertão: Veredas” – enquanto Benedito Lima de Toledo, professor titular de História da Arquitetura na USP, publicou uma série de livros sobre urbanismo e arquitetura, entre eles “São Paulo: Três Cidades em um Século” e “Álbum Iconográfico da Avenida Paulista”. Nos ensaios que produziram para acompanhar as dezenas de ilustrações e os fragmentos poéticos de Diana Danon, Arroyo e Toledo abordam o contexto das construções do século 16 ao século 20, que têm como pano de fundo a riqueza oriunda do café.

Produzidos a partir da década de 1960, imagens e poemas de Diana Danon resgatam em detalhes a beleza de edificações que estavam espalhadas por Higienópolis, Campos Elíseos, Santa Cecília e Bela Vista – mas que não resistiram ao tempo e à especulação imobiliária. “A cidade surpreendia seus próprios moradores”, destaca a artista na breve apresentação aos livros, situando as transformações que a riqueza fácil e desmedida vinda das fazendas e do comércio do café provocava de forma ininterrupta nos belos cenários da cidade antiga. 












A Belle Époque resgatada nos traços
de Diana Danon: no alto, desenho
que retrata a casa onde morou a
Marquesa de Santos, seguido do
Monumento à Independência,
localizado no parque em São Paulo
que também abriga o Museu do
Ipiranga. Também acima, e abaixo,
detalhes da fachada do Teatro Municipal
da capital de São Paulo








Sem saber que um monstro estava sendo gerado, com patética ingenuidade galardoavam-na com o dístico: a cidade que mais cresce no mundo! Quanto bonde não foi marcado com essa frase que o paulistano sempre leu como uma lisonja e não como uma uma advertência... Quanto prefeito, governador, quanto político não repetiu a frase com inconsequência de novo-rico, deixando a cidade entregue ao seu crescimento desordenado”, aponta Diana Danon.

Além do lirismo dos versos e das imagens pesquisadas e retratadas por Diana Danon, os textos de Benedito Toledo e Leonardo Arroyo situam o desenvolvimento desordenado da metrópole no final do século 19 e começo do século 20. Nos ensaios historiográficos, o que se coloca frente a frente é o antigo patrimônio da metrópole e o crescimento tentacular fundado na riqueza descompromissada e na importação desvairada de modismos estrangeiros, sem nenhum planejamento ou plano diretor sobre o urbanismo que pudesse conter os excessos dos interesses predatórios, que surgem mascarados com o discurso otimista em nome do progresso.










Cenários do passado paulistano:
o Viaduto Santa Ifigênia, construído
em 1913, auge da Belle Époque,
na ilustração de Diana Danon
datada de 1972; e a fachada principal
do Mosteiro da Imaculada Conceição
da Luz, localizado na avenida Tiradentes
e inaugurado em 1774. Abaixo, um
antigo sobrado da Avenida Paulista e
Diana Danon em ação, em 2011, aos
81 anos, desenhando um sobrado do
bairro do Brás. Também abaixo, a
fachada do Museu do Ipiranga
 e o conjunto hospitalar da Irmandade
da Santa Casa de Misericórdia,
com seus tijolinhos aparentes,
construído no final do século 19







 

O estilo afrancesado



Tanto em “São Paulo: Belle Époque” como em “Memória e Tempo das Igrejas de São Paulo”, as belas imagens, a maioria em preto e branco, e os textos breves resgatam a pujança de uma época que ficou no passado, deixando um mínimo de edificações para o tempo presente. Entre detalhes da reconstituição iconográfica de Diana Danon, que participou de mais de 50 mostras individuais e coletivas de artes plásticas entre 1959 e 2008, o leitor encontra relatos de curiosidades e estudos detalhados sobre traços arquitetônicos e construções específicas.

Enquanto os desenhos e as aquarelas primam pela qualidade em minúcias, os textos de Toledo e Arroyo envolvem quiproquós sobre a população de imigrantes e a prática disseminada pela burguesia paulistana em importar hábitos e modismos da Europa, a odisseia da subida da Serra do Mar, o ecletismo dos novos bairros, o cotidiano dos trabalhadores estrangeiros e a presença fundamental dos “capomastri”, os arquitetos aptos para a execução e finalização de qualquer que fosse o projeto. Em meio às questões de urbanismo e arquitetura, Diana Danon transforma a pesquisa de campo em poesia:


A igreja em reforma
estava escura.
Atrás de mim, a senhora
vendia velas.
Algumas num canto ardiam
silenciosas.







Enquanto registra referências poéticas ao trabalho de desenho que investiu nos cenários pesquisados, Diana Danon também estabelece juízos de valor com rigor de avaliação científica, apontando que havia os “bolos de noiva”, de ornamentação prolixa e de gosto duvidoso, que por sua vez conviviam com outras construções. Pela originalidade de concepção e execução, muitas delas, destaca Diana Danon, poderiam figurar ao lado das melhores expressões europeias das edificações na Belle Époque.

Os ensaios de Toledo e Arroyo confirmam as intuições e as breves avaliações de Diana Danon, destacando que em algumas regiões da maior cidade do território nacional, como a Avenida Paulista, o ambiente era mais propício ao “gosto francês”. “As imensas residências, cada uma com um estilo diverso, constituíam impressionante documento de ecletismo. Neoclássico, toscano, florentino, egípcio, neorromano, Art Nouveau, todos os estilos e pretensos estilos ali estavam enfileirados”, aponta Toledo.

A conclusão para os dois estudos não deixa de ser melancólica, ainda que soe como um alerta para a importância do planejamento urbano e da preservação do patrimônio cultural, estético, artístico, documental, científico, social ou ecológico, como forma de não repetir os erros irreversíveis cometidos num passado nem tão distante. O patrimônio investigado, a partir da observação nostálgica dos traços arquitetônicos da Belle Époque que restaram como monumentos isolados, também representa uma lição da história para o presente e o futuro, a demonstrar que a industrialização e as maquinarias, colocadas em movimento em nome de um pretenso progresso a qualquer custo, nem sempre são garantia de avanços acertados ou de melhorias na qualidade de vida.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Gostos da Belle Époque. In: Blog Semióticas, 13 de junho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/gostos-da-belle-epoque.html (acessado em .../.../…).



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