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29 de julho de 2022

Retratos de August Sander






Nenhuma obra de arte é contemplada tão atentamente 

em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, 

de nossos parentes próximos, de nossos seres amados.

–– Alfred Lichtwark (1852-1914).   


A arte do retrato fotográfico, que teve início em meados do século 19, ganhou um capítulo especial no século 20 com as fotografias do alemão August Sander (1876-1964). Considerados um caso exemplar de fotografia documental, os retratos feitos por Sander são abordados como referência importante em alguns dos principais estudos já realizados sobre fotografia: ele é citado como “corpus extraordinário” por Walter Benjamin em “Pequena história da fotografia” (1931) e é um dos fotógrafos selecionados para as análises que Roland Barthes apresenta em “A câmara clara” (1980), assim como está destacado por suas “imagens de arquétipo” no estudo não menos célebre de Susan Sontag (em “Sobre a fotografia”, de 1973) e também surge como parâmetro e analogia para uma “idealização do poder” na leitura de John Berger (em “Para entender uma fotografia”, de 2013).

Um “revival” em homenagem à arte de August Sander aconteceu recentemente com uma exposição itinerante aberta no Museu de Arte Contemporânea da cidade de Siegen, na Alemanha. Depois de Siegen, a exposição seguirá uma extensa agenda em outros importantes museus da Europa e de outros continentes. Trata-se da primeira grande exposição sobre o acervo de Sander desde a década de 1960, quando depois de sua morte foram realizadas retrospectivas de seus retratos nos museus de Siegen (1964), de Herdorf (1965), terra natal do fotógrafo, e no MoMA de Nova York (1969). Nos anos seguintes, houve apenas pequenas amostragens da obra de Sander em exposições nos museus da Alemanha e de outros países.









Retratos de August Sander: no alto da página,
"Agricultores, 1914", uma das fotografias
destacadas por John Berger. Acima, "Notário",
o trabalhador do cartório na fotografia analisada
por Roland Barthes em A câmara clara;
e August Sander em autorretrato
da década de 1950.

Abaixo, "Desempregado, 1928";
e um quadro com as 70 fotografias do arquivo
de August Sander selecionadas pelo próprio
fotógrafo e apresentadas na exposição do
Museu de Arte Contemporânea
da cidade de Siegen, Alemanha
 










A nova exposição em Siegen traz uma seleção de 70 ampliações dos retratos de August Sander – seleção que havia sido feita pelo próprio fotógrafo no início da década de 1960. Com o título de “70 Porträts aus, Menschen des 20. Jahrhunderts” (70 retratos de pessoas do século 20), a exposição já é considerada a mais importante e mais abrangente já realizada com o trabalho de August Sander. A homenagem à arte do retrato segundo Sander ainda traz como atração adicional um evento paralelo incomum: a exposição acontece simultaneamente a uma outra mostra, apresentada no mesmo museu, chamada de “Nach August Sander, Menschen des 21. Jahrhunderts” (Depois de August Sander, pessoas do século 21), que reúne retratos feitos por 13 fotógrafos contemporâneos e que tem a proposta de estabelecer um diálogo conceitual com o acervo de Sander, com curadoria de Thomas Thiel.


Traduções de uma época


Durante décadas, August Sander fotografou grupos profissionais e classes sociais com um método muito planejado e com rigor de estudo antropológico. Ele começou a fotografar ainda na adolescência, quando acompanhava o pai, que era trabalhador em uma mina em Herdorf, e aprendeu os primeiros passos no ofício da fotografia ajudando fotógrafos profissionais que trabalhavam para a empresa que explorava as minas. Com apoio de um tio, comprou sua primeira câmera antes de prestar o serviço militar. Mais tarde, no exército, entre 1897 e 1899, atuou como assistente de fotografia e, nos anos seguintes, viajou por cidades da Alemanha trabalhando como fotógrafo e aperfeiçoando seu ofício.







Retratos de August Sander: acima, o casal
em fotografia de 1912 nomeada como
"Criação e Harmonia".

Abaixo, "Faxineira", fotografia de 1928;
"Lavadeira", fotografia de 1930; e
"Garota em uma carroça na feira",
fotografia de 1932















Em 1901, Sander foi contratado por um estúdio fotográfico na cidade de Linz, onde permaneceu durante uma década, primeiro como funcionário e depois como sócio da empresa. Em 1909, abriu seu próprio estúdio na cidade de Colônia, iniciando a série “Retratos do século 20”, seu projeto ambicioso para montar um amplo catálogo fotográfico sobre a sociedade alemã. No projeto, chegou a reunir um grande acervo de centenas de retratos em 45 portfólios temáticos organizados em sete categorias identificadas como “O fazendeiro”, “O artesão”, “A mulher”, “As fazendas” (listando os trabalhadores pelas tarefas que desempenhavam), “Os artistas”, “A grande cidade” (moradores e trabalhadores das cidades) e “À margem”, que talvez represente a parte mais radical e mais polêmica de seu trabalho, com ciganos, imigrantes, andarilhos e pessoas que, por algum motivo, estavam marginalizadas pela sociedade de sua época.

A primeira seleção dos retratos de August Sander foi feita por ele mesmo, em 1929, quando publicou uma seleção de 60 fotografias em “Antlitz der Zeit(Rostos do nosso tempo), um livro que inspirou trabalhos similares de fotógrafos do primeiro time de outros países, entre eles os norte-americanos Walker Evans (1903-1975), Robert Frank (1924-2019) e Diane Arbus (1923-1971) ou o francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004). Porém, com a chegada dos nazistas ao poder, na Alemanha, o trabalho de Sander passou a sofrer censura e perseguições. Seu filho Erich, militante de um partido de esquerda, foi preso em 1934 e condenado a 10 anos de prisão. Em 1936, seu livro “Antlitz der Zeit” foi recolhido e proibido, tendo todas as matrizes de impressão destruídas, sob o argumento de que o fotógrafo promovia somente os pobres e as exceções da sociedade, e não os alemães “legítimos”.










Retratos de August Sander
: no alto, "Pugilistas",
fotografia de 1929; acima, "Estudante do ensino médio",
de 1926. Abaixo, "Meninas", fotografia de 1925;
e "Viúvo" (Witwer), fotografia de 1914












Fotografias e máscaras


Quando a Segunda Guerra Mundial começou, August Sander se mudou de Colônia para a área rural e durante anos passou a fotografar apenas a natureza e as paisagens. No pós-guerra, Sander retorna à vida nas cidades e monta um acervo extenso sobre a arquitetura e as ruas dos centros urbanos da Alemanha, mas não retornou ao projeto original de “Retratos do século 20”. Quando morreu, em 1964, deixou um valioso acervo com mais de 40 mil imagens, incluindo negativos e ampliações, que levaram à criação do Arquivo August Sander, com sede na cidade de Colônia. Uma amostragem de 650 fotografias selecionadas do arquivo foi publicada em um catálogo em 1999, com edição da Taschen e curadoria de Susanne Lange-Greve.

Nos retratos de August Sander, Walter Benjamin percebeu a “grandeza anônima” de um rosto humano, que aparece nas fotografias com uma significação nova e, em suas palavras, “incomensurável”, ressaltada pelo prefácio da primeira edição de “Rostos do nosso tempo”, escrito por Alfred Düblin. Segundo a análise de Benjamin, “August Sander reuniu uma série de rostos que em nada ficam a dever à poderosa galeria fisionômica de um Eisenstein ou de um Pudovkin, e ele realizou este trabalho numa perspectiva científica” (Benjamin, “Pequena história da fotografia”. In: “Obras escolhidas”, vol. 1, editora Brasiliense, p. 102-103). Benjamin também elogia a “atualidade insuspeitada” da obra de Sander reunida no livro, que ele define como “mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos”.














Retratos de August Sander: no alto,
"Três gerações de uma família", fotografia
de 1912; acima, "As irmãs Fuchs", de 1912.

Abaixo, "Trabalhadores na região de Ruhr",
fotografia de 1928; e "Mestre de obras", de 1926 
 







Assim como Benjamin, Roland Barthes também considera o impacto da galeria fisionômica de August Sander, que ele nomeia como “máscaras”, figuras que revelam mitologias antes insuspeitadas. “Os grandes retratistas são grandes mitólogos: Nadar (a burguesia francesa), Sander (os alemães da Alemanha pré-nazista), Avedon (a ‘high-class’ nova-iorquina). A máscara é, no entanto, a região difícil da fotografia, porque a Fotografia da Máscara é, de fato, suficientemente crítica para inquietar (em 1934, os nazistas censuraram Sander porque seus ‘rostos da época’ não correspondiam ao arquétipo nazista da raça), mas por outro lado, é muito discreta (ou muito ‘distinta’) para constituir verdadeiramente uma crítica social eficaz, pelo menos segundo as exigências do militantismo: qual ciência engajada reconheceria o interesse da fisiognomonia?” (Barthes, “A câmara clara”, editora Nova Fronteira, p. 58-62). Uma das fotografias que Barthes toma como exemplo e parâmetro de sua abordagem é o retrato do “notário” de Sander, sobre o qual ele questiona e provoca: “A aptidão para perceber o sentido, político ou moral, de um rosto não é, em si mesma, um desvio de classe?”


Mundo em desaparecimento


As “máscaras” que August Sander registrou também estão em destaque na análise de Susan Sontag, para quem os célebres retratos que o fotógrafo fez das pessoas comuns não são apenas imagens documentais e sim, “apesar de seu realismo de classe, uma das obras mais verdadeiramente abstratas da história da fotografia” (Sontag, “Sobre a fotografia”, editora Arbor, p. 59-62). Sontag também ressalta que nas fotografias de Sander os pobres não deixam de ter um ar de dignidade, o que não se deve a qualquer altruísmo ou qualquer intenção de compaixão: eles têm dignidade, segundo Sontag, porque são vistos (e fotografados) do mesmo modo frio que qualquer outra pessoa de classes sociais mais abastadas. Susan Sontag também percebe que o fotógrafo não sabia que estava registrando um mundo em desaparecimento, provocado pelo avanço acelerado do nazismo: o próprio August Sander não pensava que estava revelando a verdade das pessoas, mas sim capturando, de uma forma técnica e isenta de preconceitos, as “máscaras sociais” de sua identidade e sua individualidade.















Retratos de August Sander: no alto,
"Carregador de tijolos", fotografia de 1928;
acima, "Fazendeiro", de 1910.

Abaixo, "Dois jovens boêmios
(Willi Bongard e Gottfried Brockmann)"
,
fotografia de 1925







John Berger foi outro teórico importante que não resistiu à analogia das fotografias com “máscaras”, apresentadas a partir dos retratos de August Sander como reveladoras da classe social, do lugar no mundo, das aspirações existenciais de cada indivíduo anônimo ou bem posicionado na escala da sociedade e da hierarquia de seu tempo. Berger vê o “retrato político” na obra de Sander, mas considerando um amplo alcance para o adjetivo “político”, nunca redutível à sedução das instâncias do poder na época ou à resistência diante do que fosse injusto ou opressivo – ainda que seja impossível não considerar a trajetória do projeto fotográfico de Sander frente ao avanço do nazi-fascismo, à destruição e à violência como programa de governo que teriam a Segunda Guerra como desfecho.

Para Berger, alguns dos retratos, na extensa galeria de tipos dos mais diversos extratos sociais que Sander fotografou, são especialmente evidentes quanto à idealização do “poder puramente sedentário” e podem ser destacados como uma ilustração da hegemonia que antecede a tomada do poder na Alemanha pelo nazismo (Berger, “Para entender uma fotografia”, editora Companhia das Letras, p. 63-66). Um dos exemplos, que Berger considera “cristalino” e “sedutor”, é a fotografia que mostra três camponeses felizes, vestindo terno, a caminho do baile. Trata-se, segundo Berger, de uma lição prática sobre a quantidade de informação que existe ali para ser descoberta e revelada.
















Retratos de August Sander: no alto,
"O artista austríaco Raoul Hausmann e suas
amigas Hedwig Mankiewitz e Vera Broido"
,
fotografia de 1929; acima, "Artista de circo",
de 1932; e "Artistas no Carnaval da cidade de
Colônia"
, de 1931. Abaixo, "Cigano", fotografia
de 1930, e "O confeiteiro", de 1928.

No final da página, três amostras das releituras
contemporâneas dos retratos de Sander, que
fazem parte da exposição 
Depois de August Sander,
pessoas do século 21
, também apresentada
no Museu de Arte Contemporânea de Siegen:
"Camouflage" (2006), de Hans Eijkelboom;
"Golden" (2018), de Tobias Zielony; e
"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr











Diálogo contemporâneo


O plural de leituras que a galeria de retratos de August Sander proporciona foi a referência para a escolha dos 13 fotógrafos contemporâneos, alemães e estrangeiros, que tiveram suas obras selecionadas para a mostra “Depois de August Sander, pessoas do século 21”. Foram convidados pelos curadores: Mohamed Bourouissa, Jos de Gruyter & Harald Thys, Hans Eijkelboom, Omer Fast, Soham Gupta, Sharon Hayes, Bouchra Khalili, Ilya Lipkin, Sandra Schäfer, Collier Schorr, Tobias Zielony Artur Żmijewski. O foco para a escolha dos retratos, feitos por cada um dos fotógrafos, foi a possibilidade de diálogo com as 70 fotografias selecionadas pelo próprio August Sander, no começo da década de 1960, agora apresentadas no Museu de Arte Contemporânea de Siegen.

Enquanto os retratos em preto e branco de August Sander ocupam as galerias principais do museu de Siegen, os convidados têm seus trabalhos, em cores, na grande maioria, apresentados em galerias paralelas. Na comparação entre o preto e branco das fotografias antigas e o colorido intenso dos retratos contemporâneos, o impacto das imagens de Sander permanece inalterado, mas os fotógrafos convidados surpreendem com retratos que atualizam o tema das classes sociais e suas ocupações com originalidade.

O salto no tempo, com um intervalo que tem aproximadamente 100 anos, entre os retratos de August Sander e os retratos contemporâneos selecionados, torna visíveis mudanças de atitude e de comportamento em relação à vida cotidiana e novas questões políticas sobre pessoas comuns. A observação atenta dos retratos de August Sander levou Susan Sontag, em “Sobre a fotografia”, a lembrar aquela máxima do poeta Sthépane Mallarmé de que tudo no mundo existe para terminar num livro. Parodiando Sontag e Mallarmé, podemos chegar à conclusão de que observar estes retratos, com um intervalo de quase um século, revela que todos os rostos do mundo existem para serem fotografados.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos de August Sander. In: Blog Semióticas, 29 de julho de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/07/retratos-de-august-sander.html (acessado em .../.../…).


Para fazer uma visita virtual à exposição no Museu de Siegen,  clique aqui.




Para comprar o catálogo fotográfico de August Sander,  clique aqui.







"Camouflage"
 (2006), de Hans Eijkelboom
     





"Golden" (2018), de Tobias Zielony

  



"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr


26 de novembro de 2016

Mitologias de Fidel







Explicação do título: falando dos complexos problemas cubanos,
uma amiga francesa misturou os termos “crítica” e “política”,
inventando a palavra “policritique”. Ao escutá-la pensei (também
em francês) que entre “poli” e “tique” situava-se a sílaba “cri”, ou
seja, “grito”. Grito político, crítica política na qual o grito aí está
como um pulmão que respira; foi assim que sempre entendi, assim
continuarei entendendo e dizendo. É preciso gritar uma política
crítica, é preciso criticar gritando cada vez que se acredite justo:
só assim poderemos acabar um dia com os chacais e as hienas.

Julio Cortázar, “Policrítica na hora dos chacais” (1971).   



No capítulo final do célebre “Mitologias”, livro publicado em 1957, o francês Roland Barthes alerta para o fato de que não mantemos com os mitos relações de verdade, mas de utilização. “Existem objetos míticos que são postos de lado, entregues ao sono, por uns tempos; são apenas vagos esquemas míticos, cuja carga política perece quase indiferente. Trata-se unicamente de uma oportunidade de situação, e não de uma diferença de estrutura” – destaca Barthes, antes de concluir: “O mito, como se sabe, é um valor: basta modificar o que o rodeia, o sistema geral (e precário) no qual se insere, para poder determinar com exatidão o seu alcance”.

Barthes apresenta, como exemplo para suas reflexões, as ocorrências e significados dos mitos que surgiam na imprensa e na cultura de massa da França na década de 1950, mas suas reflexões também cabem perfeitamente para perceber a grandeza e o alcance de um mito atualíssimo como o líder cubano Fidel Castro, que morreu hoje, aos 90 anos. Dentro e fora de Cuba, Fidel há décadas já havia passado à História na condição de mito, alcançando a primeira grandeza, com todas as definições e características que tanto Barthes como outros grandes pensadores do século 20 apontam para o que seja “mitológico” – em suas questões e conjunções de representação coletiva elevada à categoria de metáfora universal.









Mitologias de Fidel: no alto, Otoño en el
Parque Almendares, fotografia de Julio
Maldonado Mourelle em Havana, Cuba, em
2006. Acima, o jovem Fidel Castro chupando
pirulito em foto com outros estudantes do colégio
Nuestra Señora de Dolores, em Santiago de Cuba,
1940; e na célebre fotografia de Alberto Korda,
que recebeu do autor o título David y Goliath,
durante a visita de Fidel ao Memorial Lincoln,
em Washington, EUA, meses depois da
Revolução Cubana de 1959.

Abaixo, outro registro de Alberto Korda,
fotógrafo oficial da Revolução Cubana e de
Fidel Castro: El Comandante falando
a jornalistas em Havana, em 1961
 



 


Morto em 1980, Barthes por certo acompanhou o desfecho lendário da Revolução Cubana de 1959 e os capítulos dramáticos da Ilha de Fidel nos anos e décadas seguintes, as aproximações com a extinta União Soviética, a rejeição com equivalência e peso de declaração de guerra aos Estados Unidos – mas não chegou a visitar Cuba nem a conhecer pessoalmente El Comandante, como fizeram muitos importantes escritores e intelectuais da esquerda que foram seus contemporâneos e conterrâneos. A lista dos admiradores e convivas de Fidel entre os grandes da intelligentsia” é extensa, incluindo, entre muitos outros, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Henri Cartier-Bresson, Arthur Miller, Noam Chomsky, Ernest Hemingway, Italo Calvino, Bernard Kouchner, Régis Debray, Jorge Semprun, François Maspero, Pablo Neruda, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Gabriela Mistral, Violeta Parra, Fernando Birri, José Saramago, Jorge Amado, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Chico Buarque...



Herói mítico



Nenhum minuto da história é igual a outro; nenhuma ideia ou acontecimento humano pode ser julgado fora de sua própria época” – escreveu o próprio Fidel em 2004, em carta endereçada a outro líder revolucionário da América Latina, o venezuelano Hugo Chávez (1954-2013), reproduzida em “Fidel para Principiantes”, livro dos argentinos Néstor Kohan e Nahuel Skerma publicado em 2006 pela Era Naciente, editora de Buenos Aires. Herói mítico de sua própria época, desde o final da década de 1950 Fidel passou a representar a expressão máxima das rebeliões anti-imperialistas e socialistas do Terceiro Mundo – na América Latina, na África, na Ásia. Não é pouco.










Mitologias de Fidel – El Comandante
em fotografias de Alberto Korda: acima,
a prisão de Fidel em 1953, após a invasão
que ele liderou ao Quartel Moncada; e
com seus companheiros na guerrilha em
1957 em Sierra Maestra. Abaixo,
Fidel e Che Guevara na guerrilha,
em 1957 e na foto histórica em 1961











No comando de sua ilha, “tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos” – como diz a frase lendária e irônica atribuída a outra personalidade polêmica latino-americana, Porfírio Díaz, presidente do México no final do século 19 – Fidel sobreviveria a nada menos que 11 presidentes norte-americanos e a mais de 600 tentativas de assassinato, segundo informam seus biógrafos. El Comandante resistiu e continuou enfrentando por décadas o Grande Império, cujos dirigentes não conseguiram derrubá-lo, nem eliminá-lo, nem modificar os rumos da Revolução Cubana, até que em dezembro de 2014, com Barack Obama na Casa Branca, tiveram que admitir o fracasso e a derrota diplomática para, enfim, iniciar um processo de normalização das relações com o sistema político cubano.

Na exata medida de nossa alienação, não conseguimos ultrapassar uma apreensão instável do real: vagamos incessantemente entre o objeto e a sua desmistificação, incapazes de lhe conferir uma totalidade” – conclui Barthes em “Mitologias”. Novamente, o raciocínio serve como uma luva para o caso Fidel Castro, porque avaliar a figura mítica de Fidel não é tarefa fácil. Seu lugar é o do líder revolucionário que dividiu com outra figura mítica, Che Guevara (1928-1967), o enfrentamento contra o regime brutal e corrupto instalado em Cuba pelo ditador sanguinário Fulgêncio Batista, subserviente aos EUA, mas seu apoio a muitas guerrilhas do Terceiro Mundo e sua aliança posterior com Moscou também fizeram dele uma referência libertária e personagem-chave da Guerra Fria em escala planetária.












Mitologias de Fidel: acima, cenas
da Revolução Cubana em fotografias
do inglês Lee LockwoodAbaixo, a
capa do livro Fidel para Principiantes,
editado na Argentina; e a fotografia de
Alberto Korda de 1961 que registra
travessia de Fidel com o casal
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir
pelo pantanal de Cienaga de Zapata,
durante a visita dos intelectuais
franceses a Cuba


 







Ação internacional



Para seus detratores, Fidel, em sua necessidade estratégica de fazer vingar a Revolução Cubana, atropelou direitos humanos e liberdades individuais, principalmente de opositores associados aos governos dos EUA e saudosos das práticas do antigo regime – ao que a imensa maioria da população da ilha responde com a salvaguarda dos avanços sociais, com a reforma agrária, com os sistemas de educação e saúde pública reconhecidos como exemplares no mundo inteiro, com a inexistência de analfabetismo e de desnutrição infantil e com a expectativa de vida que alcança 79 anos, muito além de qualquer país das vizinhanças.

Aos detratores de Fidel, muitos deles exilados e entrincheirados em Miami, a intelectualidade de Cuba vem repetindo o questionamento: como seria possível uma democracia formal com embargo comercial, econômico e financeiro? Durante décadas, Fidel resistiu bravamente e a revolução vingou em Cuba – e sua influência avançou muito além das fronteiras da ilha: ano após ano a reputação internacional do mito Fidel Castro foi construindo uma política externa de apoio a outras lutas no Terceiro Mundo, incluindo campanhas de alfabetização e de saúde pública, com destaque para a reputação humanitária da medicina e dos médicos cubanos – no caso brasileiro e também em vários outros países.










Mitologias de Fidel: acima, a entrada de
Fidel e Che com o Exército Rebelde em
Havana, em 1959; e El Comandante em
seu gabinete de trabalho, fotografado em
1959 por Burt Glinn. Abaixo, Fidel com
o líder soviético Nikita Khrushchev em
1963, durante a visita oficial a Moscou;
e Fidel no Brasil: poucos meses após a
Revolução Cubana, em 1959, com o
presidente Juscelino Kubitschek e seu
vice, João Goulart, fotografados no
Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro;
e com dona Marisa Letícia Lula da Silva,
com o líder sindical Jair Meneguelli e
com Lula, na época presidente do
Partido dos Trabalhadores, em 1989,
em São Bernardo do Campo, São Paulo,
em fotografias de Luiz Prado,
durante um encontro de lideranças
de esquerda da América Latina















.





No passado recente, o mito Fidel Castro paira sobre casos e números que impressionam: atualmente, mais de 51 mil profissionais de saúde de Cuba trabalham em 66 países do mundo, tanto como voluntários como em missões remuneradas. Depois do maior acidente nuclear da História, em Chernobyl, em 1986, a medicina cubana teve destaque no tratamento a mais de 25 mil vítimas da radiação, entre adultos e crianças, que são recebidas em Cuba e atendidas no centro de atenção especial instalado no território cubano em Tarara desde 1990, tornando-se um complexo médico de referência internacional. Em 2010, o governo cubano enviou 1.200 médicos para combater a epidemia de cólera no Haiti após um terremoto, quando todas as missões estrangeiras de apoio à saúde haviam partido. Também recentemente, quando o pânico causado pelo Ebola assolava a África Ocidental, Cuba liderou os esforços de ajuda humanitária, enquanto missões oficiais da Europa e dos EUA mantinham distância.

Além da ação surpreendente contra a epidemia de Ebola, os povos de países da América Latina, da África e da Ásia também devem a Fidel esforços de guerra contra ditaduras, pela soberania nacional e pela libertação das antigas colônias em processos de independência contra países europeus e contra os regimes de Apartheid. Os registros oficiais mais conhecidos destacam, entre outros casos, ações de Cuba para impulsionar movimentos de esquerda em países latino-americanos, em apoio a brasileiros, argentinos, venezuelanos, bolivianos, colombianos, uruguaios, paraguaios, nicaraguenses, salvadorenhos, chilenos.







Mitologias de Fidel: acima, Fidel em 2010,
durante as celebrações do 50º aniversário da
criação dos Comitês para a Defesa da Revolução,
em Havana, fotografado por Desmond Boylan.
Abaixo, com Oliver Stone em Havana, em
2004, durante as filmagens do documentário
Procurando Fidel (Looking for Fidel).

Também abaixo, Fidel com Nelson Mandela
em Cuba, em 1991, em fotografia de
Omar Torres; com Hugo Chávez, da
Venezuela, e Evo Moralesda Bolívia, em
Havana, em 2006; e com Vladimir Putin,
presidente da Rússia, durante a visita
oficial de Putin a Havana, em 2000














Há, também, o apoio cubano à Argélia, na guerra contra o colonialismo francês, em 1961, e em 1963, na guerra contra o Marrocos; em 1965, quando Che Guevara e guerrilheiros cubanos passaram um ano no Congo, em Angola e em Guiné-Bissau; a participação direta de Fidel nos conflitos e nos acordos que levaram ao fim da Guerra do Vietnã, em 1973; o envio da força expedicionária de Cuba, através do Atlântico, em 1975, para ajudar a salvar Angola, na época recém independente, de uma invasão sul-africana; e o apoio à libertação de Nelson Mandela e sua escalada de resistência rumo à presidência e à pacificação na África do Sul.

Com o Brasil os laços diplomáticos de Cuba seriam retomados em 1985 e sinalizaram a retomada da Democracia: a primeira ação internacional da ditadura militar que tomou o poder em 1964 havia sido o rompimento das relações oficiais entre o governo brasileiro e o governo cubano. O receio de que o Brasil seguisse o exemplo da Revolução Cubana e se alinhasse à União Soviética foi um dos pretextos para o apoio decisivo do governo norte-americano ao golpe de Estado que levou à deposição do presidente João Goulart e implantou a ditadura que duraria décadas.

Depois da retomada oficial das relações diplomáticas, uma missão oficial do Brasil visitou Cuba em 1987 e, em 1989, o presidente Fidel Castro visitou o Brasil e teve participação importante, ao lado do futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em um encontro de lideranças de esquerda da América Latina que aconteceu em São Paulo. Depois da eleição de Lula para a Presidência da República, as relações entre Brasil e Cuba ficaram mais próximas com acordos de cooperação em diferentes áreas. Lula realizou visitas oficiais a Cuba em 2003, em 2008 e em 2010. Em 2014, a presidenta Dilma Rousseff implantou um programa importante na área da saúde: o Mais Médicos, com participação ativa dos médicos cubanos no atendimento à população de baixa renda e também às comunidades mais afastadas dos grandes centros urbanos. 



Um mito e suas variações



Com o desfecho de sua trajetória mítica, as glórias e as polêmicas sobre Fidel proliferam. Herói revolucionário que enfrentou os EUA? Ditador que em nome da revolução ignorou os direitos humanos? Estrategista que treinou e armou guerrilheiros em lutas pela liberdade política em vários países de vários continentes? Tudo isso junto e misturado? Provavelmente sim: tudo isso e mais. Um mito é a soma de suas variações – explicaria Roland Barthes, nas reflexões reunidas em “Mitologias”, ressaltando que todas as possíveis variações são expressão da verdade última do mito.















Mitologias de Fidel: acima, El Comandante
no Brasil, em 2003, na posse do ex-presidente 
Lula;, fotografados por Ricardo Stuckert;
e com a ex-presidente Dilma Rousseff 
durante encontro em Havana em 2014.

Abaixo, Fidel com Dom Pedro Casaldáliga,
bispo católico e referência para a defesa dos
Direitos Humanos e para a causa dos povos
indígenas no Brasil; Fidel com o escritor
norte-americano Ernest Hemingway,
Prêmio Nobel de Literatura em 1954,
fotografados em Havana por Alberto Korda
em maio de 1960; Fidel com Jorge Amado,
em 1974, fotografados em Havana pela esposa
de Jorge, Zélia Gattai; Fidel em Havana com
Gabriel García Márquez em 1982, ano em que
o escritor venceu o Prêmio Nobel de Literatura;
Fidel com o jogador de futebol da Argentina
Diego Armando Maradona, militante de
esquerda e ativista das causas sociais; Fidel
com o Papa Francisco, também em Havana,
em 2015; e Fidel em duas fotografias de 1965
registradas por Lee Lokwood: discursando
para uma multidão em Havana e em um raro
momento de descanso, na Ilha de Pines,
ditando uma carta para a secretária.
Também abaixo, as homenagens póstumas
ao líder revolucionário nas ruas e na
Universidade de Havana, em três
fotografias de Alejandro Ernesto


























A História me absolverá” – declarou certa vez o próprio Fidel, na época um jovem revolucionário de 26 anos, preso depois de liderar em julho de 1953 a invasão ao quartel militar de Moncada, em Santiago de Cuba, uma ação de resistência contra o golpe de Estado em que Fulgêncio Batista tomou o poder e instalou uma ditadura sangrenta. A invasão terminaria de forma trágica, com a morte da maioria dos manifestantes e com a prisão do líder Fidel. A história, porém, nunca tem fim: é um constante vir a ser, como destaca o cientista político Moniz Bandeira em "De Martí a Fidel  A Revolução Cubana e a América Latina", livro de referência em que analisa a evolução do regime revolucionário de Cuba e as conquistas sociais desde os antecedentes da Revolução de 1959.

Depois de passar 76 dias preso em um cela solitária, Fidel, recém-formado em Direito, apresentou-se em 1953 para fazer sua própria defesa no julgamento. As palavras com que encerrou seu discurso de defesa no tribunal têm um caráter premonitório, quase de profecia – antecipando uma trajetória que estava apenas no início: “Sei que a prisão será dura como nunca foi para ninguém, cheia de ameaças, de enfurecimento ruim e covarde, mas não a temo, como não temo a fúria do tirano miserável que arrancou a vida de 70 dos meus irmãos. Condene-me, não importa, a História me absolverá.”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Mitologias de Fidel. In: Blog Semióticas, 26 de novembro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/11/mitologias-de-fidel.html (acessado em .../.../...).


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