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5 de setembro de 2013

O Cruzeiro nos bastidores








Uma das maiores revistas da história da América Latina, pela qualidade e pela média de 4 milhões de leitores semanais que atingiu, em meados do século 20 – o mais importante veículo do império de imprensa dos Diários Associados, do lendário Assis Chateaubriand, O Cruzeiro, a TV de papel, como se dizia na época, fez escola, consagrou jornalistas e fotógrafos, realizou coberturas marcantes e ambiciosas sobre a vida de um país em constantes transformações, deixou saudades, muitas polêmicas e também muitas dívidas.

Durante meio século, O Cruzeiro trouxe fama, fortuna e glória para uns e ruína para outros. Entre a primeira edição, em 1928, lançada às vésperas da Revolução de 1930, e a última, em 1974, chegou a atingir em seus tempos áureos, nas décadas de 1940 e 1950, tiragens de mais de 700 mil exemplares – número absurdo, se comparado aos jornais e revistas de maior circulação naquele mesmo período, que raramente tiveram tiragens superiores a 10 mil. O Cruzeiro se manteve por 50 anos como principal fonte de leitura e informação em todo o Brasil, além da multidão de leitores que conquistou na América Latina, nos anos 1950, quando também foi editada em espanhol.

A trajetória da revista que teve sua história vinculada ao processo de modernização da sociedade brasileira e suas questões polêmicas, fundamentais para a imprensa e os desdobramentos da política, no Brasil do século 20, têm poucos registros em livro, em uma proporção inversa à sua importância. Entre os relatos publicados sobre a trajetória da revista, referência obrigatória sobre a imprensa brasileira, há a biografia "Chatô, O rei do Brasil" (Companhia das Letras, 1994), de Fernando Morais – e também o catálogo da mostra recente realizada pelo Instituto Moreira Salles, "As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960)", projeto que une extensa pesquisa acadêmica em torno da revista, exposição itinerante e publicação do catálogo com os estudos e o acervo fotográfico do IMS. 











Imagens de O Cruzeiro: no alto,
capa da primeira edição, lançada no
Rio de Janeiro em 10 de novembro
de 1928, trazendo na capa a ousada
ilustração do beijo de uma melindrosa,
como eram chamadas nos salões da
década de 1920 as moças ousadas nas
atitudes e na maneira de se vestirem.
Acima, Getúlio Vargas na capa 
e no poder, na edição de 8 de
novembro de 1930; Getúlio ao lado
de Assis Chateaubriand, em 1945;
e cena urbana de São Paulo em
1940, em foto de Jean Manzon.

Abaixo, ritual de dança da tribo Caiapó
Kuben-kran-ken na Amazônia, em
fotografia de José Medeiros, em
1957; a Guerra da Coreia, em 1951,
fotografada para O Cruzeiro por
Luciano Carneiro; e carrancas
nos barcos do Rio São Francisco, em
foto de 1943 de Marcel Gautherot








Além do catálogo da exposição e do livro de Fernando Morais, que tornou-se best-seller desde o lançamento, com a história do 'velho capitão' Assis Chateaubriand, mais temido que amado, poderoso, controvertido, há também um outro livro, que não teve destaque na época do lançamento nem tornou-se campeão de vendas, mas que apresenta um registro específico e da maior importância sobre o cotidiano da principal revista brasileira do século 20: "O Império de Papel – Os bastidores de O Cruzeiro" (Editora Sulina, 1998), escrito por alguém que por certo pode falar com propriedade sobre os bastidores da publicação: o jornalista Antonio Accioly Netto, que durante 40 anos foi redator e diretor de redação da revista. 



Nomes, datas, histórias



Na época em que "O Império de Papel" foi lançado, tive a sorte de entrevistar Accioly Netto para o jornal “O Tempo”, de Belo Horizonte. O lançamento do livro, com sessão de autógrafos, chegou a ser agendado em BH, mas terminou cancelado, na véspera do evento, por causa de um problema de saúde do autor, na época com 92 anos, ainda morando no Rio de Janeiro e muito lúcido, bem-humorado, demonstrando uma memória surpreendente para nomes, datas e acontecimentos da história do Brasil – como comprovei na conversa pelo telefone.
 








Durante a entrevista, um detalhe que me deixou surpreso, além da lucidez do quase centenário Accioly, foi a extensão das atividades a que ele se dedicou. Além do seu trabalho capital em O Cruzeiro, foi também artista plástico (participou da histórica Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo), publicitário, escritor e autor teatral, com vários livros publicados. O registro das memórias do tempo de O Cruzeiro, seu último projeto, consumiu cerca de 25 anos, desde a preparação e revisão dos originais à seleção de fotografias e ilustrações para a edição do livro. Accioly Netto morreria em abril de 2001, três anos depois do lançamento de "O Império de Papel".

Antes de fazer contato com o autor, na época do lançamento, elaborei um roteiro extenso para a entrevista, mas pelo telefone ele foi econômico nas respostas, com tiradas certeiras de bom humor e ironia e, na maior parte das vezes, apontando que a pergunta feita ja estava respondida no livro, no capítulo tal e página tal. Entre uma e outra ironia, ainda lembrou dos vários jornalistas mineiros que passaram pela redação de O Cruzeiro e comentou sobre os tantos jornais importantes que surgiram, fizeram História e desapareceram em Minas Gerais, no decorrer do século 20 – entre eles, Jornal de Minas, Jornal da Noite, Diário da Tarde, Diário de Minas, A Tribuna, Folha de Minas, Diário Mercantil, O Combate, Binômio e muitos outros.









Imagens de O Cruzeiro: no alto,
índio ajuda a tirar um avião de um
atoleiro, em fotografia de José
Medeiros para a reportagem que
acompanhou uma expedição da
Aeronáutica ao Mato Grosso, em
1948. Acima, o presidente Juscelino
Kubitschek na inauguração de Brasília,
em abril de 1960, em fotografia de Luis
Carlos Barreto; e Getúlio Vargas
no Xingu, Amazônia, em 1953,
fotografado por Henri Ballot




  







Mais críticas do que admiração



Pelo telefone, o homem que esteve durante décadas à frente da redação da revista O Cruzeiro não teve reservas em criticar os políticos que estavam no poder no final dos anos 1990. Também não fez nenhum elogio à imprensa – muito pelo contrário. Sobre as grandes personalidades da época de O Cruzeiro, Accioly Netto também confessou, na entrevista e no livro, mais críticas severas do que admiração, incluindo revelações negativas sobre seu antigo chefe Assis Chateaubriand, seus subordinados e seus aduladores, e sobre medalhões da política e da cultura como Vargas, JK, Niemeyer, Carmen Miranda.

O relato do autor, testemunha ocular dos caminhos trilhados pela revista mais importante de seu tempo, resume uma reflexão muito pessoal sobre o passado, reunindo à historiografia saborosas anedotas envolvendo artistas e políticos do primeiro escalão. Tanto que ´"O Império de Papel" poderia ser classificado como livro-reportagem e também como prosa memorialista, por conta do lirismo de suas passagens confessionais.


















Imagens de O Cruzeiro: as polêmicas
e o olhar humanista nas páginas da revista
em fotografias de José Medeiros. No alto,
operários no vagão do trem no Rio de Janeiro,
em 1948; Mara Rúbia, Rainha do Baile das Atrizes,
e Francisco de Moraes Cardoso, o Rei Momo que
reinou de 1934 a 1948 no Carnaval carioca, em fotografia
de 28 de fevereiro de 1946 de Jean Manzon; e o
beijo do casal anônimo no tradicional
Baile de Carnaval do Hotel Glória, no
Rio de Janeiro, em fotografia que ilustrou
uma reportagem publicada em 1950.

Acima e abaixo, imagens de reportagem
sobre ritual de iniciação no Candomblé,
na Bahia, publicada em 1951 com o título
As Noivas dos Deuses Sanguinários”, com
texto de Arlindo Silva e 42 fotografias de
José Medeiros; reportagem de "O Cruzeiro" 
foi uma resposta a matéria sobre o mesmo tema
publicada na revista da França Paris Match,
também em 1951, considerada ofensiva,
sensacionalista e preconceituosa.

Também abaixo, outra revolução
de costumes em O Cruzeiro através
dos anúncios publicitários, agentes
importantes no processo de modernização
da sociedade brasileira








 



Há também o impressionante e permanente sucesso de público, que fez a revista esgotar nas bancas desde a primeira edição, mantendo de forma ininterrupta o mesmo apelo até que houve a ruína financeira, a morte de Chateaubriand e o esfacelamento do império. Accioly recorda que, mesmo em ruína financeira, O Cruzeiro ainda conservava uma vendagem relativamente boa quando teve sua publicação interrompida. O fim veio em 1974, quando o título foi cedido para pagar dívidas atrasadas e voltou a circular, em versões limitadas e canhestras, até 1975. 



Uma revista assassinada



Com o fechamento da revista, o sofisticado equipamento gráfico foi liquidado a preço de ferro-velho, a memorável equipe de redação no Rio de Janeiro se dispersou e os arquivos da revista – considerados à época os melhores já reunidos por uma publicação em toda a história da imprensa no Brasil – foram arrematados pelo jornal Estado de Minas, sendo transferidos em caminhões para Belo Horizonte. Duas décadas e meia depois da “débácle”, Accioly publicou seu relato sobre a experiência na revista, definido por ele como "um acerto de contas com o passado e com uma revista que foi assassinada".











Os originais de Accioly tiveram a edição final organizada por Ruy Castro e Heloísa Seixas, que mantiveram o tom confessional e a narrativa em primeira pessoa, concisa e equilibrada, pontuada por muitas fotografias e fac-símiles dos arquivos pessoais do autor. Accioly resume os 46 anos de circulação de O Cruzeiro em breves 160 páginas, intercalando a leveza e a complexidade da trajetória com suas lembranças privilegiadas de quem acompanhou 'de dentro' cada número semanal da revista, desde o primeiro, em 1928, até a derrocada do Império Chateaubriand.

Através do relato por vezes irônico, por vezes direto e contundente do autor, "O Império de Papel" apresenta um inventário dos bastidores da revista que formatou o imaginário de milhões de brasileiros por décadas seguidas, antes do sucesso do rádio ou da onipresença da TV. Nas páginas do inventário assinado por Accioly surgem nomes conhecidos, outros nem tanto, e muitas artimanhas que ainda hoje continuam a reger as complexas relações entre imprensa e política. 











Sucessos permanentes de O Cruzeiro:
acima, O Amigo da Onça, de Péricles.
Abaixo, a baiana de Salvador Marta Rocha,
primeira Miss Brasil, eleita em 26 de junho
de 1954, na capa da revista em 1° de agosto
do mesmo ano, na edição que trouxe um famoso
ensaio fotográfico imitado há décadas por todas
as candidatas aos títulos de Miss; e a celebração
de Odete Lara, Glória Menezes, Leonardo Villar
e Norma Bengell pela premiação em 1962 de
"O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte,
versão da peça teatral de Dias Gomes, até hoje
o único filme brasileiro a vencer a Palma de Ouro,
prêmio principal no Festival de Cannes.

Também abaixo: Geraldo Vandré nas páginas de
O Cruzeiro em 2 de outubro de 1968, na edição
que denunciou a desclassificação da canção
"Pra não dizer que não falei das flores" no
3º Festival Internacional da Canção, produzido
pela TV Globo. A canção de Vandré, apesar de
ser a grande favorita do público, não foi a vencedora
do festival por imposição da censura da ditadura militar.
O prêmio de campeã ficou com "Sabiá", canção de
Chico Buarque em parceria com Tom Jobim.

Na sequência abaixo, uma seleção em homenagem a
As Garotas, página criada e ilustrada por Alceu Penna,
publicada semanalmente durante 26 anos consecutivos,
de 1938 a 1964, levando para todo o Brasil a moda e os
costumes cariocas; e a estrela Carmen Miranda, grande
recordista de capas na trajetória de O Cruzeiro











  
Notáveis no 'esquadrão de ouro'



Também surge no livro de Accioly um elenco interminável de personalidades notáveis: aquelas que acabaram virando notícia – artistas, políticos, atletas, jogadores de futebol, nomes de primeira grandeza na história brasileira, alguns visitantes estrangeiros – e aquelas que fizeram a notícia, incluindo o trabalho em dupla de repórter e fotógrafo, que O Cruzeiro inaugurou e manteve como linha de frente, e célebres redatores, colunistas, chargistas, ilustradores. 

Um dos maiores sucessos de O Cruzeiro, a seção e o personagem "O Amigo da Onça" foram criados por um dos cartunistas fixos da revista, Péricles, inspirado em um outro personagem de sucesso na imprensa argentina da primeira metade do século 20. Outro grande sucesso da revista foi a seção "As Garotas", coluna impressa em cores semanalmente entre 1938-1964, produzida por Alceu Penna com seu traço característico em ilustrações sobre as 'jovens modernas' e breves textos de ironia e humor, levando para todo o Brasil a moda e os costumes cariocas. A seção "As Garotas" também foi considerada referência no comércio de tecidos e produtos direcionados ao público feminino e precursora na criação de uma moda brasileira. 


















Além de Péricles e Alceu, nomes que permanecem em destaque na imprensa como Millôr Fernandes e Ziraldo também fizeram parte dos quadros da revista, assim como Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Rachel de Queiroz e muitos outros. "O Cruzeiro só fez o sucesso que fez, durante tanto tempo, porque contava com um 'esquadrão de ouro' de grandes repórteres e de grandes fotógrafos. Eles é que foram as verdadeiras estrelas, porque levaram a atividade de imprensa no Brasil a um patamar novo e muito nobre. O 'esquadrão de ouro' de O Cruzeiro provocou uma profunda revolução no Brasil e no jornalismo brasileiro", defende Accioly, relembrando uma ou outra das grandes reportagens que fizeram história sobre índios, misses, escândalos, estrelas e até discos voadores, para destacar o mérito dos profissionais que fizeram a revista e que permanecem entre os mais brilhantes na imprensa brasileira.

"O Império de Papel" apresenta a lista completa do 'esquadrão de ouro' da revista que, em seus tempos áureos, era comparada a publicações internacionais como Life, Look, Vogue, Cosmopolitan, entre outras. Estão na lista o repórter David Nasser, que formou dupla com o fotógrafo Jean Manzon, além de outras duplas memoráveis reunindo nomes como Mário de Moraes e Ubiratan Lemos, Arlindo Silva e Jorge Ferreira, Odorico Tavares e José Medeiros, João Martins e Eduardo Keffel, Luciano Carneiro, Edmar Morel, Eugênio Silva, Flávio Damm, Carlos Moskovics, Salomão Scliar, Roberto Maia, Indalécio Wanderley, Pierre Verger, Luis Carlos Barreto – além de muitos e muitos outros e do próprio Accioly Netto, seguramente um dos personagens principais na saga de O Cruzeiro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O Cruzeiro nos bastidores. In: Blog Semióticas, 15 de setembro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/09/o-cruzeiro-nos-bastidores.html (acessado em .../.../...).












Acima, capa do catálogo da exposição
organizada pelo Instituto Moreira Salles;
e fotografia das páginas de O Cruzeiro
com publicidade em que uma família
assiste à novidade da TV em São Paulo,
em 1950, época da inauguração da pioneira
TV Tupi dos Diários Associados de
Assis Chateubriand. Abaixo, a estrela
da TV Tupi, Hebe Camargo, na capa
de O Cruzeiro em 1963; Leila Diniz na
edição de junho de 1967; e Rita Lee
em uma das últimas edições da
revista, em 1974, fotografada
por Indalécio Wanderley














15 de janeiro de 2013

Das Minas Gerais






As nuvens do céu azul que se agigantam sobre o horizonte do casario barroco. Os grãos do asfalto que segue serpenteando até sumir no infinito das matas e no horizonte de montanhas distantes. O espaço aberto da imensidão dos vales avistados na Serra do Cipó. Os enigmas das pinturas rupestres e, nas páginas seguintes, uma jararaca escondida, quase invisível, nas ranhuras que se abrem sobre o granito. Prosaicas garrafas de cachaça, enfileiradas no balcão, cachos e cachos de bananas, borboletas e flores, bandeirinhas coloridas, buritis.

Há também detalhes da arte feita pela gente simples, os monumentos seculares de Aleijadinho, os traços cromáticos de Manuel da Costa Athaíde e, na sequência, uma fileira de mandacarus, um estranhamento momentâneo na perspectiva provocado por um espelho transversal, que reflete a bancada respingada de tinta dos artesãos em Prados, as pessoas e os lugares, a mata cercada pelo pasto, o vaqueiro, o prosaico cavalo branco que lembra os seres mitológicos, perdido na vereda, o gado, o curso do rio, o maciço suspenso das cachoeiras em Conceição do Mato Dentro. A fotógrafa Rosa de Luca reuniu em livro uma surpreendente seleção de pontos de vista em cenários e sutilezas extraídas das tradições e do imaginário das Gerais.

São belíssimos enquadramentos coloridos que traduzem o poético e as diferenças de um certo traçado no mapa do Brasil, que desde o Setecentos vem demarcado pelo Coroa Portuguesa como Terra das Minas Geraes de Ouro, Diamantes e Pedras Preciosas. “Arte Vida Minas Gerais” (editora Alles Trade) reúne cerca de 200 imagens produzidas no intervalo de oito meses, entre muitas viagens pelos cenários e lugarejos que Rosa de Luca registra. “Meu trajeto sempre começava por Belo Horizonte”, recorda a fotógrafa, em entrevista por telefone.

















Sertões d
e Minas Gerais: no alto e acima,
João Guimarães Rosa fotografado por
Eugênio Silva para a revista O Cruzeiro,
em reportagem de Álvares da Silva que
junto com o fotógrafo acompanhou a viagem
de dez dias do escritor pelo sertão, em maio
de 1952, seguindo de Três Marias a Araçaí, na
região central de Minas Gerais, com um grupo
de boiadeiros que levava 300 bois e vacas
em um percurso de 10 fazendas e cerca de
240 quilômetros. A travessia de Rosa seguindo o
grupo, que incluía o vaqueiro Manuelzão (na quinta
foto acima), um dos integrantes da comitiva, daria
origem a diversas anotações em cadernetas que,
anos depois, seriam fundamentais para algumas
obras-primas do escritor, entre elas Corpo de Baile,
livro publicado em 1956, Tutameia, de 1967, um
grande clássico da literatura em língua portuguesa:
o romance Grande Sertão: Veredas, de 1956.

Abaixo, outra imagem de valor histórico: um grupo
anônimo de tropeiros em Itabira do Mato Dentro,
terra natal de Carlos Drummond de Andrade, em
retrato feito no começo do século 20 por
Brás Martins da Costa, um dos pioneiros
da fotografia em Minas Gerais. Também
abaixo, fotografias do Santuário do Caraça,
no município de Catas Altasoutros cenários
típicos do interior de Minas extraídos do livro
de Rosa de Luca "Arte Vida Minas Gerais"




  





Começo a entrevista comentando sobre a beleza dos cenários de Minas nas fotos e pergunto se ela conhece a história lendária e as imagens da viagem que o escritor Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro, acompanhando uma tropa de vaqueiros, em 1952. Ela diz que conhece as fotos, do também mineiro Eugenio Silva, que foram publicadas na revista "O Cruzeiro" e que sempre estão presentes nas edições dos livros de Guimarães Rosa e nas reportagens sobre a obra do escritor, mas explica que seu roteiro não teve nenhuma intenção de seguir o trajeto de Rosa pelo sertão.

"Meu roteiro era sempre assim: eu chegava de avião, entrava no carro em Belo Horizonte e buscava o destino da Estrada Real, com algumas variações no trajeto", recorda Rosa de Luca. "As belas paisagens e as cenas mais espontâneas que pediam enquadramento pela câmera são só uma parte do encanto”, destaca, descrevendo com lembranças de sons, cheiros e sabores as iguarias da culinária, as cores da natureza, as pessoas e o artesanato que encontrou pelo caminho.



Moda, Milão, Bahia, Minas



“Arte Vida Minas Gerais” é o terceiro livro de Rosa de Luca, que nasceu na Itália e está radicada há décadas no Brasil, com dedicação ao registro das paisagens mais deslumbrantes e da diversidade do brasileiro nas cidades e nos confins dos sertões, das montanhas e dos litorais. Ela conta que teve formação em Artes pelo Liceu Artístico de Salerno, na Itália, fazendo questão de destacar que o início de carreira na fotografia teve como marco importante uma exposição que ela conseguiu realizar no Brasil em 1984: “São Paulo Cromática”, realizada no Centro Cultural São Paulo.









No alto, cena rural no Sul de Minas.
Acima, vista do adro da Igreja Matriz
de Santo Antônio em Tiradentes.
Abaixo, uma seleção de portas e janelas
do casario nos cenários do barroco







 .
Depois desta primeira experiência em terras brasileiras, Rosa de Luca retornaria à Itália para trabalhar em Milão e só voltaria ao Brasil em 1990, desta vez para se dedicar à fotografia de moda. Foram diversos trabalhos, alguns deles premiados e selecionados em exposições individuais e coletivas, no Brasil, na Itália e em outros países. Até que surgiu como projeto a determinação de publicar o primeiro livro.

Foi em 2007. Elaborei um longo trabalho de pesquisa que concluí com uma sequência de 60 retratos de nomes das artes plásticas de importância na atualidade”, recorda. Adriana Varejão, Cildo Meireles, Arthur Omar e outros foram flagrados em circunstâncias de trabalho e, no livro – intitulado “Contemporâneas Artes Artistas” (Alles Trade) – todos aparecem com um pequeno perfil biográfico produzido pela historiadora do Museu de Arte Moderna (MAM), Margarida Sant'Anna.

“A ideia inicial era produzir uma série de catálogos, abordando arquitetos, designers etc”, conta. Uma viagem à Bahia, contudo, mudou os rumos do projeto e deu origem ao segundo livro, também publicado pela Alles Trade, em 2008. Rosa de Luca explica que o livro “Arte Vida Sul da Bahia” nasceu quase por acaso. “Tudo começou com uma viagem a trabalho e um passeio que fiz depois. Foi quando decidi reunir uma série de retratos sobre a região Sul da Bahia, tendo como foco principal os artistas e suas produções artesanais. É quase um roteiro de viagem pelas regiões de Belmonte, Santo André, Porto Seguro, Trancoso, Caraíva e tantos outros lugares perto do mar e da mata”, descreve, lembrando enquadramentos e situações mais incomuns que deram origem a belas imagens.



            

  
   



Os tecidos dependurados no varal sob o

sol do sertão, uma das imagens preferidas

da fotógrafa, e a Igreja de Nossa Senhora 

do Carmo em São João del Rei. Abaixo, o

adro da Igreja de Nossa Senhora das Mercês

em Ouro Preto, e um detalhe das tintas do

artesanato no lugarejo conhecido como Bichinho





       
 

O livro sobre as paisagens de Minas Gerais também nasceu de uma viagem a trabalho. “Minas é um mundo, são várias, como aquela passagem do Guimarães Rosa que todo mundo gosta de repetir. Foi difícil, tive que investir, viajar, voltar outras vezes, mas espero que o resultado possa traduzir uma pequena parte das impressões que mexeram comigo”, conta Rosa de Luca. Ela diz que prefere trabalhar sozinha, sem uma equipe de produção. Usa duas câmeras digitais – uma Nikon e uma Canon.



O inusitado e a tradição



Ela conta que, até o projeto do primeiro livro, trabalhou com filme analógico. Depois passou para a tecnologia digital pela facilidade maior para pré-editar o material: além de produzir as fotos originais, ela também assina direção de arte e o projeto gráfico de seus livros. Nas belas imagens emolduradas nas páginas de “Arte Vida Minas Gerais”, a fotógrafa registra cenas que remetem à tradição, ao barroco, à religiosidade, mas também à pedra preciosa, ao detalhe inusitado, como convém ao trabalho de qualidade na arte como no fotojornalismo mais cotidiano.









Da Serra do Cipó ao Vale do Jequitinhonha, e daí a Milho Verde, Carrancas, Catas Altas, Barão de Cocais, Bichinho, Ouro Preto, Mariana – cenários muito diferentes entre si que remetem a diversos extratos de história, coletânea extensa e preciosa de paradoxos entre metrópoles e pequenas cidades, punjança industrial e delicadeza artesanais. É como aponta o prefácio do livro: “nas cidades históricas, com as suas ruas de pedra, estão intactas, bem-guardadas, as histórias de heroísmo e brasilidade, iluminadas pelo nosso primeiro compromisso, que é, e sempre será, com a liberdade. Elas nos trazem, todo o tempo, para o início de tudo, e seus sinos nos embalam, apontando o caminho e o rumo, não importa a encruzilhada”.

O livro também traz breves textos assinados pela atriz, cineasta e escritora Bruna Lombardi, pela própria Rosa de Luca e por Margarida Sant'Anna. Bruna e Margarida participaram dos projetos anteriores da fotógrafa. A apresentação de Bruna é um poema em prosa: “Assim como as pedras preciosas escondem seu brilho dentro, Minas Gerais esconde infinitos tesouros, que vão se mostrando aos poucos a todos aqueles que a descobrem", registra, em uma das passagens.








Margarida Sant'Anna, em texto tão breve quanto didático, recorda a relação entre os cenários de Minas e os modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Em seu projeto de “descoberta do Brasil”, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e vários outros fizeram em 1924 a lendária viagem às cidades históricas de Minas, onde encontraram os encantos esquecidos da arquitetura, da pintura e da talha barroca, mas também das manifestações populares. Margarida destaca que Tarsila, anos mais tarde, registraria suas impressões de viagem:

As decorações murais de um modesto corredor de hotel, o forro das salas, feito de taquarinhas coloridas e trançadas, as pinturas das igrejas, simples e comoventes, executadas com amor e devoção por artistas anônimos; o Aleijadinho, nas suas estátuas e nas linhas geniais de sua arquitetura religiosa, tudo era motivo para as nossas exclamações admiradas”... Para os modernistas da década de 1920 e ainda hoje – aponta Margarida, com propriedade – a originalidade da cultura mineira tem seus polos de interesse no legado barroco e no patrimônio da expressão popular.








Cenários barrocos de Minas: no alto,
menina trabalha em artesanato na Associação
Cultural Sempre Viva em São Gonçalo do
Rio das Pedras. Acima, a capa do livro
Arte Vida Minas Gerais. Abaixo, duas páginas
do livro; detalhes da extração de pedraria em
garimpo de topázio na região central do Estado;
e uma visão noturna sobre o cenário
barroco de Ouro Preto






Lembranças e enquadramentos


 
Mas entre tantas belas imagens que remetem à literatura e aos sentimentos de Minas, qual ou quais as preferidas de Rosa de Luca? “Todas, com certeza”, brinca a fotógrafa, ao telefone, rindo e fazendo piada com a curiosidade sem tamanho do repórter. Depois ela reconhece que, realmente, uma ou outra imagem publicada no livro trazem com mais força à lembrança circunstâncias que ultrapassam os cenários do enquadramento.

Duas delas me comovem de modo especial, talvez por isso estão nas últimas páginas. Uma é o longo varal de roupas secando, dependuradas, no meio do sertão. Outra são os dois vaqueiros na curva da estrada de asfalto. Mas cada foto pode ter seu encanto. É como o trabalho dos artesãos em lugares como Bichinho ou Pitangueiras, com a beleza tão diferente em cada uma daquelas peças, que comove e encanta”, explica, para completar, depois de uma breve pausa em pensamento. “Basta olhar com atenção para descobrir a qualidade única do que, na verdade, sempre esteve ali”.
 


  
           












Depois desta entrevista, que publiquei em um jornal de Belo Horizonte em 2010, Rosa de Luca lançou um novo livro no Bienal de São Paulo, em 2012, retomando a trajetória iniciada com os belos registros fotográficos sobre o Sul da Bahia e sobre Minas Gerais. “Brasil Arte Vida” (Alles Trade) também retrata com maestria a ocupação humana e paisagens deslumbrantes, captadas no Parque Nacional da Serra do Bodoquena (MS), Lagoa Bonita (MA), Rio Tapajós (PA), Alta Floresta (MT), Pantanal (MT) e Rio Amazonas.

Tanto nos projetos anteriores, como no atual “Brasil Arte Vida”, as imagens mantêm um forte apelo cromático, com a habilidade incomum de Rosa de Luca para fundir o mais poético e o trivial, cotidiano. Pós-produção, manipulação em sistema, photoshop? Sim, há páginas reservadas a sobreposições, justaposições, profundidade em macro. Mas talvez sejam os detalhes que menos interessam, porque a maior parte das fotografias é resultado de captação e transposição direta. Em outras palavras, uma lição para aprender e um deleite para os sentidos, definitivamente saborosos.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Das Minas Gerais. In: Blog Semióticas, 15 de janeiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/01/das-minas-gerais.html (acessado em .../.../…).


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Acima, arte gráfica de Rosa de Luca,
a partir de fotografias de detalhes do casario
barroco de Minas Gerais, e o pequeno
índio no telhado, uma das imagens do novo
livro da fotógrafa, Brasil Arte Vida




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