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28 de abril de 2014

Mestres da Gravura






    Não acredito na ideia de vanguarda, como
    não acredito em progresso na arte. Na ciência,
    essas ideias são aceitáveis, mas em arte o que vale
    é a obra encantar e provocar admiração, ou não.
––  Ernst Hans Gombrich (1909-2001).      



Grandes tesouros da arte produzida do século 15 ao século 18 foram reunidos na exposição “Mestres da Gravura – Coleção Fundação Biblioteca Nacional”. Com 170 obras originais que fazem parte do acervo Real Biblioteca de Portugal, a exposição chegou ao público no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, seguindo depois um extenso roteiro para exposições em outras capitais e cidades brasileiras. Produzidas pelos artistas mais importantes de diversas escolas europeias, as gravuras do acervo estão sob a guarda da Biblioteca Nacional, com sede no Rio de Janeiro, desde 1808, quando a corte portuguesa de Dom João VI transferiu o acervo de Lisboa para o Brasil.

Reunidos no acervo de quatro séculos da história da arte estão 81 grandes mestres do estilo com gravuras originais que representam mitologias, alegorias, paisagens e cenas religiosas criadas na época do Renascimento, do Maneirismo, do Barroco e do Rococó. Fazem parte da exposição itinerante 30 gravuras da coleção alemã, 27 da holandesa, 35 da italiana, 26 da francesa, 14 da flamenga, oito da inglesa, 18 da espanhola e 13 da portuguesa, em técnicas predominantes de xilogravura (gravura impressa a partir de uma matriz de madeira) e gravura a metal – incluindo obras em talho-doce ou gravura a buril, gravura à ponta-seca, à água-forte, à maneira-negra, à água-tinta e pontilhados em técnica mista.

As obras em exposição foram criadas por artistas considerados os mais importantes da História da Arte, entre eles Albrecht Dürer (o principal nome da renascença alemã), Rembrandt Harmenszoon van Rijn (o maior da arte neerlandesa) e Francisco José de Goya y Lucientes, o artista mais importante do Romantismo na Espanha. Também foram selecionadas para a mostra, entre as mais de 30 mil peças do acervo, obras satíricas do inglês William Hogarth, que refletia sobre os desmandos da política em seu tempo e acabou gerando o termo Hogartianas; o italiano Giovanni Battista Piranesi, que registrava a arquitetura com detalhes e é forte influência na arte contemporânea; a extraordinária arte burlesca do francês Jacques Callot; e o talento de retratista do flamengo Anton Van Dyck, entre outros grandes mestres.









Mestres da Gravura: no alto,
Le Antichitá Romane,
obra-prima do italiano Giovanni
Battista Piranesi (1720-1778). Acima, 
Jesus Cristo descendo ao Limbo, do
italiano Andrea Mantegna (1431-1506),
e um mapa descritivo em pergaminho
com as fronteiras da Europa do século 16.

Abaixo, Santa Cecília cantando os
Louvores de Deus, do francês
Étienne Picart (1632-1721);
The Musician, do holandês
Lucas van Leyden (1494-1533);
e As quatro feiticeiras, do alemão
Albrecht Dürer (1471-1528). Todas
as imagens reproduzidas nesta página
estão no catálogo original da
Biblioteca Nacional que apresenta a
exposição Mestres da Gravura
















O acervo de obras-primas em exposição, com curadoria de Fernanda Terra, abarca artistas que nasceram do século 15 ao 18 e obras concebidas de acordo com as técnicas mais avançadas que foram desenvolvidas no período – a única exceção são algumas obras de Goya, que foram criadas em 1815 e trazidas posteriormente para o Brasil, mas ainda assim o artista espanhol é tido essencialmente como um gravador do século 18. A grande maioria do acervo de gravuras foi adquirida por Portugal no período anterior ao terremoto que arrasou Lisboa em 1755 – e sobreviveram ao terremoto, ao maremoto e aos incêndios sucessivos que destruíram a cidade.

Trazidas para o Brasil por Dom João VI, a coleção de gravuras, juntamente com milhares de caixas que incluíam livros, partituras e mapas, deu origem à Biblioteca Nacional, que mantém sua sede no Rio de Janeiro. Considerada a maior biblioteca da América Latina, a Biblioteca Nacional também foi nomeada pela UNESCO entre as 10 mais importantes do mundo. Todas as gravuras em exposição foram selecionadas do acervo que hoje conta com mais de 30 mil obras, raramente exibidas ao público. Em 2012, nos 200 anos da Biblioteca Nacional, a mesma mostra foi aberta no Rio de Janeiro e, nos anos seguintes, foi apresentada em Brasília e outras capitais. Depois de Belo Horizonte, a exposição segue para Salvador e depois prossegue em um roteiro itinerante pelo Recife e outras capitais do Nordeste e Norte do Brasil.










Mestres da Gravura: acima,
Orfeu e Eurídice, gravura de 1510
do mestre italiano Marco Antonio 
Raimondi (1480-1534); Cupido tocando 
cravo (1538), do italiano Giovanni Battista 
Ghizi (1503-1575); e Adão e Eva (1504),
do alemão Albrecht Dürer. Abaixo, 
A Sagrada Família, gravura de 1580 do
holandês Hendrik Goltizius (1558-1617); e
O Amor (1591), do mestre de Bruxelas
Raphael Sadelero Velho (1560-1632)












A
Acervo de relíquias preciosas



Todo o acervo da mostra que vem sendo apresentada nas capitais também está reproduzido em um livro belíssimo de capa dura e 240 páginas. Organizado pela mesma curadora Fernanda Terra e com o mesmo título da exposição “Mestres da gravura – Coleção Fundação Biblioteca Nacional”, o livro foi coeditado pela Artepadilla, Caramurê Publicações e Fundação Biblioteca Nacional, com patrocínio da Petrobras. Além do acervo completo da mostra, com imagens em fac-símile das 170 gravuras tanto em xilogravuras, a mais antiga técnica de gravar sobre papel, quanto nas variadas técnicas de gravação em metal, a publicação inclui um breve histórico de cada gravador e artigos assinados por especialistas.

A edição de luxo, subdivida em oito coleções e organizada por ordem cronológica e pela geografia de nascimento dos artistas, acompanha as mudanças técnicas da gravura através dos séculos – percurso delimitado pelos artigos “Mestres da gravura: Coleção Biblioteca Nacional”, resultado da pesquisa de Fernanda Terra; “Breve história da biblioteca: entre livros e símbolos”, escrito pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz; e “Manter o passado no futuro”, assinado pelo presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Renato Lessa. Um texto mais extenso e minucioso apresenta e descreve a Divisão de Iconografia da FBN, assinado por Monica Carneiro Alves e Monica Velloso Azevedo.










Mestres da Gravura: acima, capa
do catálogo da exposição, que
reproduz uma das gravuras da série
Le carcere d'invenzione, de
Piranesi, datada de 1750; e Cristo
na Cruz (A Crucificação), do alemão
Lucas Cranach, Sênior (1472-1553).

Abaixo, Cristo perante Herodes,
de Cranach; e As Três Cruzes (1653),
do holandês Rembrandt (1606–1669) 

 












Entre as centenas de preciosidades, os artigos destacam as séries mais valiosas do acervo da exposição, que não têm equivalentes em nenhuma outra coleção conhecida. Dos grandes mestres, ganham destaque pela ordem cronológica o item mais antigo do acervo, “Jesus Cristo descendo ao Limbo”, assinado por Andrea Mantegna (1431-1506). Na sequência está Albrecht Dürer (1471–1528), com as séries bíblicas dedicadas ao “Apocalipse” e a “Adão e Eva”, ambas datadas por volta de 1500, nas quais transparecem avanços no estudo das proporções humanas e a imensa variedade de tons e de texturas.



Importância histórica e simbólica



Na lista dos autores das obras mais valiosas do acervo também estão Rembrandt (1606–1669), com uma seleção de 12 gravuras, entre as quais estão quatro autorretratos; Francisco Goya (1746-1828), exímio gravador e maior pintor da Espanha no século 18, presente no livro e na exposição com nove obras-primas da série “Os provérbios” e mais cinco ilustrações para uma edição de “D. Quixote”, de Cervantes; e o italiano Giovanni Piranesi (1720-1778), que aparece com as séries “Le carcere d’invenzione” e “Le Antichità romane”.









Mestres da Gravura: acima, A Anunciação
aos Pastores (1634) e Autorretrato com
boina e cachecol (1633), do holandês
Rembrandt. Abaixo, Herodias (1774),
do espanhol Fernando Selma, e duas gravuras
da série Les misères et les mal-heures
de la guerre, de 1633, do mestre francês
Jacques Callot (1592-1635), intituladas
A Batalha O suplício da forca

















No que se refere à importância histórica e simbólica da coleção Mestres da Gravura, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz destaca em seu artigo uma questão política, dramática e crucial: a coleção era tão valiosa que, na conta que o Brasil teve que pagar a Portugal pela sua Independência, a partir de 1822, o acervo da Biblioteca Nacional surgiu em um surpreendente segundo lugar, depois apenas do saldo da dívida pública.

A batalha acabou sendo ganha pelo Brasil, mas teve custo alto” – avalia Lilia Schwarcz. O acervo da Biblioteca Nacional aparecia avaliado em 800 Contos de Réis, um valor tremendamente alto no montante da dívida. “Para se ter uma ideia mais precisa”, destaca, “tal valor correspondia a 12,5% do total a ser pago, quatro vezes mais do que a famosa prataria da coroa ou do que a equipagem deixada no Brasil. Significava, portanto, muito, e em muitos sentidos: autonomia por aqui, desapego para o lado de lá. Incrível pensar como os livros, mais uma vez, eram protagonistas, desta vez na conta que se pagava pela liberdade do país”.

Muito além do valor em dinheiro, ressalta Lilia Moritz Schwarcz, havia a importância simbólica – para um país tão jovem como era o Brasil, foi uma forma de afirmação e mesmo de soberania contar com tal acervo de preciosidades em uma biblioteca que ostentava proporções monumentais, só comparável já naquela época à biblioteca nacional dos Estados Unidos, superando em valor e importância a maioria dos países da Europa e toda a extensão das Américas. Não é pouco, definitivamente.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Mestres da Gravura. In: Blog Semióticas, 28 de abril de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/04/mestres-da-gravura.html (acessado em .../.../…).














Lista completa de artistas da exposição

Mestres da Gravura



COLEÇÃO ALEMÃ

Albrecht Durër, Martin Schongauer, Israel van Meckenen, Lucas Cranach, Hans Sebald Beham, Martin Treu, Georg Pencz, Heinrich Aldegrever, Virgil Solis.


COLEÇÃO HOLANDESA

Rembrandt Harmenszoon van Rijin, Lucas van Leyden, Cornelis Cort, Hendrik Goltzius, Zacharias Dolendo, Jan Müller, Jacob Matham, Jan Saenredam, Nicolas Ennes Visscher, Willem Jacobsz Delff.


COLEÇÃO ITALIANA

Giovanni Battista Piranesi, Andrea Mantegna, Benedetto Montagna, Agostino dei Musi (o Veneziano), Marco Antonio Raimondi, Giovanni Battista Ghisi (o Mantuano), Marcos Dente, Jacopo de Barbari, dito Mestre do Caduceu, Mestre do Dado, Adamo Ghisi, Enea Vico, Lodovico Carracci, Agostino Carracci, Annibale Carracci, Francesco Brizzi, Guido Reni, Stefano della Bella, Giovanni Benedetto Castiglioni, Salvatore Rosa, Francesco Bartolozzi, Giovanni Volpato.


COLEÇÃO FRANCESA

Jacques Callot, Noel Garnier, François Perrier, Claude Mellan, Egidio Rousselet, Gérard Audran, Étienne Picart, dito o Romano, Gerard Edelinck, Petrus Devret, Charles Dupuis, Henri Simon Thomassin.


COLEÇÃO FLAMENGA

Jacob Van Den Bos, Jan Sadeler Sênior, Raphael Sadeler (o Velho), Cornelis Galle Sênior, Egidius Sadeler, Raphael Sadeler (o Jovem), Anton van Dyck, Pieter de Jode, Paulus Pontius.


COLEÇÃO INGLESA

William Hogarth, Benjamin Smith, Peter Simon, Charles Gauthier Playter, John Ogborne, Samuel Middiman, Robert Thew.


COLEÇÃO ESPANHOLA

Francisco Goya, José de Ribera, Manuel Salvador Carmona, Fernando Selma, Francisco Muntaner, Joaquín Ballester, Joaquín Fabregat.


COLEÇÃO PORTUGUESA

Vieira Lusitano (Francisco Vieira de Matos), Joaquim Manuel da Rocha, Antonio Joaquim Padrão, Manuel da Silva Godinho, Gregorio Francisco de Queiroz, João Caetano Rivara.







Mestres da Gravura: acima, The Bench (1758),
do inglês William Hogarth (1697-1764).

Abaixo, Trois machos et trois majas dansant,
Disparate feminino e Modo de Vida,
três das gravuras originais da série
Os Provérbios (1815) do espanhol
Francisco Goya (1746-1828)

















6 de outubro de 2013

De Humani Corporis Fabrica







Todo corpo de cada ser humano é algo sagrado porque 
tornou-se alojamento temporário e um instrumento da alma 
imortal, uma morada que em muitos aspectos corresponde ao 
universo, razão pela qual os seres humanos eram chamado
pelos antigos sábios de microcosmos [pequenos universos]. 

–– Andreas Vesalius (1514-1564).  


Fonte inesgotável dos mais vivos e duradouros prazeres, dos sofrimentos mais lancinantes e também das mais grandiosas volúpias sensuais ou filosóficas ou científicas, o corpo humano, em sua aparência e estrutura de ossos, músculos, pele, sangue, veias, nervos, membros, vísceras, secreções, coração e cérebro, tem um capítulo fundamental na obra-prima "De Humani Corporis Fabrica" (A estrutura do corpo humano), publicada originalmente em 1543 pelo sábio renascentista Andreas Vesalius (1514–1564). O livro, que tem uma trajetória lendária nos últimos séculos, finalmente ganhou uma edição no Brasil em parceria da Editora da Unicamp, Imprensa Oficial de SP e Ateliê Editorial, em parceria com a Editora Elsevier, da Holanda, uma das principais editoras internacionais especializadas em publicações científicas.
A versão nacional do livro de Vesalius também se tornou um fenômeno editorial, com tiragem esgotada poucos meses após o lançamento. Em sua época, a edição completa do livro que se tornaria uma relíquia lendária para colecionadores e especialistas, com a aura de ter sido a primeira obra a ilustrar em planos e posições perfeccionistas as diferentes partes do corpo humano, foi proibida e excomungada, para depois permanecer irremediavelmente perdida durante séculos. Um exemplar da primeira edição, de 1543, assim como a maioria das chapas em madeira das xilografias originais, reapareceriam quase por milagre quatro séculos mais tarde, na Inglaterra, na década de 1930.
Saudado, desde então, como obra de arte e marco incontestável da Ciência, o livro de Vesalius foi novamente editado em sua versão completa, com textos em inglês e alemão e fac-símile das anotações em latim. Esta edição completa ganhou agora, finalmente, sua primeira publicação no Brasil (veja link para a edição nacional no final deste artigo). Contemporâneo de artistas geniais como Michelangelo e Leonardo da Vinci, Vesalius passaria à História como fundador da Medicina e da Anatomia modernas, sempre citado por todos os compêndios e pesquisadores, mas pouco conhecido durante séculos. Quando se observa suas centenas de estudos reunidos em “De Humani Corporis Fabrica”, saltam aos olhos as qualidades de metodologia científica e registro historiográfico, assim como o progresso que representou no “diálogo” que seu livro impresso inaugura entre figuras e texto.








No alto, frontispício das edições originais
de 1543 e 1642, com trabalho de ourives
em policromia. Acima e abaixo, retratos em
xilogravuras do século 16 do mestre
Andreas Vesalius de Bruxelas e reproduções de
xilogravuras que retratam Johann Gutenberg
 e uma página de sua Bíblia de 42 linhas.
 
Também abaixo, imagem de um exemplar
original da Bíblia de Gutenberg que está
no acervo da Biblioteca do Congresso
em Washington D.C. (EUA)






Magia e ciência na Renascença


Andreas Vesalius de Bruxelas, como a maioria dos sábios de sua época, também foi acusado de feitiçaria, enfrentando as ameaças terríveis da Inquisição e os princípios sagrados da tradição judaico-cristã para sobreviver como pioneiro no que estuda e ensina dissecando o cadáver humano. As pesquisas muito avançadas e as experiências de mestre Vesalius, que por diversas vezes foram consideradas heresias e o levaram aos tribunais e às listas de persona non grata, da qual faziam parte os "alquimistas" e integrantes das irmandades secretas, cometeram o sacrilégio de estabelecer a prioridade à ciência, e não mais tão somente à religião, como base e referência primeira para a observação direta dos fenômenos. Mais um motivo para reconhecer sua obra de 1543, também, como notável revolução na historiografia do livro – como destacaram autoridades contemporâneas como Marshall McLuhan em "Galáxia de Gutenberg" (1962), Alberto Manguel em “Uma História da Leitura” (1996) ou Umberto Eco em “Conceito de texto” (1984) e “Sobre a Literatura” (2003), entre outros.
Não bastasse o inventário completo descritivo e ilustrado da composição do corpo humano que Vesalius descobre e apresenta, suas ilustrações e elaborações em técnicas gráficas e tipográficas para as xilogravuras, que ele prepara em parceria com o impressor Johannes Oporinus e de outros artistas de renome, como Ticiano, inventaram procedimentos instrumentais para os processos de impressão, como cinzel em hachuras e retículas – no pontilhado e nos traços paralelos, oblíquos ou cruzados que ainda hoje, com a tecnologia digital, são usados como ferramentas de desenho e pintura para ressaltar sombreamentos, detalhes, dimensões e texturas para impressão e visualização em suportes variados.







Entre ordenações de traços e reticulados que formam detalhes para ilustrações minuciosas, as invenções de Vesalius, e dos artistas e artesãos com os quais colaborou, deixaram como saldo a primeira representação científica e pictórica, não mais manuscrita, mas em folhas impressas e encadernadas no formato do livro. Reunidos em páginas consecutivas que resumem um vasto acervo de pesquisas e de dissecções, surgem em exposição ossos e vísceras e músculos dorsais e colunas vertebrais, com as figuras e os breves textos de Vesalius dialogando e mesclando-se com surpreendente criatividade. “De Humani Corporis Fabrica” leva o leitor-observador contemporâneo a perceber um primoroso e estranho trabalho de diagramação em perspectiva e em arte descritiva, algo inigualável e que sobrevive, ainda hoje, nos diversos formatos gráficos similares do papel impresso ou das telas de tecnologias digitais.


Bíblia de 42 linhas


A combinação de forma, tipografia e ilustração, na obra de Vesalius, representa um todo inseparável de precisão em referências cruzadas que ultrapassa e aperfeiçoa os padrões das formas gráficas de letras em frases e colunas de textos que simulam o traço da caligrafia – tudo isso poucas décadas depois do aparecimento da “Bíblia de 42 linhas” do ourives alemão Johann Gutenberg (1398 – 1468), reconhecida como primeira obra encadernada e impressa em série sobre papel, por volta do ano 1450.











Porém, enquanto o livro original de Andreas Vesalius utiliza a ilustração na página para eliminar ambiguidades e delimitar aspectos de exposição verbal, os exemplares da Bíblia Sagrada de Gutenberg eram impressos apenas com números e letras uniformes. Em Vesalius, o leitor encontra evidências de um diálogo esclarecedor e extremamente inovador na composição de palavras com cada gravura, enquanto a Bíblia de Gutenberg reunia manchas gráficas ordenadas em páginas com duas colunas de texto, cada uma com 42 linhas simétricas e paralelas, sendo que apenas as impressões sob encomenda da realeza eram ilustradas com iluminuras decorativas, pintadas a mão com variações cromáticas, repetindo o que havia sido prática com manuscritos medievais produzidos principalmente nos conventos e abadias.
Na impressão da Bíblia de Gutenberg, pelo processo que teve início por volta de 1450 e terminou somente em 1455, as páginas eram vendidas em separado, sem encadernação e sem ilustrações – ficando a cargo do comprador a ilustração e pintura posterior, feita a mão, por ourives, de acordo com gostos ou posses de seus privilegiados e nobres proprietários. Apontado como marco comparável à Bíblia de Gutenberg, o livro de Vesalius também estabelece parâmetros técnicos para impressão e composição de figuras e textos, motivo pelo qual seu pioneirismo é referência obrigatória em campos tão diversos do conhecimento como a História da Arte, da Medicina, da Anatomia, das Artes Gráficas, da Semiótica (ou das linguagens) e da Metodologia Científica. Como se não bastasse, "De Humani Corporis Fabrica" também apresenta raridades da melhor xilogravura produzida nos últimos séculos.











De Humani Corporis Fabrica: acima e
abaixo, amostras em fac-símile das primeiras
pranchas anatômicas do corpo humano
segundo Vesalius de Bruxelas,
impressas por xilogravuras em 1543









.







Lição de Anatomia


Nos detalhes das mais de 200 gravuras reunidas na edição nacional, e nas breves e precisas anotações de Vesalius, é possível reconhecer tanto a perfeição plástica quanto o entusiasmo com que o homem sábio da Renascença descobriu o corpo humano do obscurantismo medieval e dos milênios de tabus e dogmas religiosos. Na edição nacional, que faz parte do projeto Edições Históricas de Medicina, parceria entre Editora da Unicamp, Imprensa Oficial de SP, Ateliê Editorial e Editora Elsevier, o trabalho de Vesalius é apresentado em fac-símile à edição bilíngue inglês/alemão, de 1934, publicada pela Academia de Medicina de Nova York e pela Biblioteca da Universidade de Munique.
A edição bilíngue de 1934, intitulada “Icones Anatomicae” – que também foi a primeira sobre a qual há registros desde 1543 – em sua maior parte foi impressa direto das chapas de madeira originais, entalhadas em Veneza por Vesalius e redescobertas depois de 400 anos. A bela edição nacional, em capa dura e projeto gráfico que respeita as dimensões da publicação original, em formato semelhante à página de jornal impresso tamanho standard, inclui ensaio biográfico, análise das ilustrações e reprodução da íntegra da arte de Vesalius que sobreviveu até nossos dias.










A partir das anotações traduzidas do latim por J.B.D. Saunders e Charles O'Malley, a edição nacional apresenta as séries de entalhes didáticos das “Tabulae Sex” e da “Carta da Vivissecção”, que circularam como excertos anônimos em diversos livros de Medicina desde o século 16, e os impressionantes esboços de frontispício (as primeiras páginas da edição, ou páginas de rosto originais) para o “De Humani Corporis Fabrica” – com as cenas de sábios e seus discípulos reunidos em uma cerimônia de dissecação do cadáver, as mesmas cenas que seriam recriadas quase um século depois, em 1623, por Rembrandt, na célebre pintura “Lição de Anatomia do Professor Tulp”.


Náufrago no Paraíso


Vesalius, nascido Andries Van Wesel, em Bruxelas, antes mesmo da publicação do seu livro havia ficado muito conhecido nas academias da Europa na Renascença por conta suas aulas e demonstrações de dissecação do corpo humano, testemunhadas por estudiosos, nobres e magistrados. Catedrático da Universidade de Bolonha, o sábio autodidata centralizou todos os processos envolvidos no seu livro. Ele mesmo escreveu, organizou e acompanhou cada passo dos minuciosos trabalhos da impressão pioneira de sua obra magnífica em diversos aspectos.
Em ilustrações, diagramações e considerações teóricas, o trabalho de Vesalius também revela tributos e correções importantes para estudos clássicos que vieram antes dele, na tradição greco-latina, com interpretações revolucionárias e releituras para a fisiologia do corpo humano e sobre preceitos de saúde, da interação com a natureza e das recomendações sobre a atividade física que vigoravam desde a Antiguidade, atribuídos a Aristóteles (384-322 a.C.) e Galeno de Pergamum (século 2 d.C.), entre outros mestres.


















Acima, pranchas anatômicas publicadas em
1543 no livro De Humani Corporis
Fabrica e Vesalius em autorretrato em
xilogravura com detalhes de ourives na
policromia sobre papel. Abaixo, Vesalius
representado em litografia em policromia
de 1861 por Edouard Hamman; a capa
da edição nacional; e a célebre pintura
de Rembrandt de 1632, considerada
uma homenagem a Vesalius, intitulada
Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp






O pioneirismo de Andreas Vesalius também estende-se à noção de arte, concebida por ele como “criação da inteligência, sujeita a regras de perfeição apreensíveis e que podem ser formuladas e ensinadas com precisão científica”. Pela audácia de suas experiências e de seu empreendimento com o livro, um trabalho sem precedentes, Vesalius de Bruxelas acabou condenado à morte pela Inquisição, sob acusação de que teria dissecado um homem vivo. Mas escapou, por misericórdia de Filipe 2°, rei da Espanha, que conseguiu transformar a sentença final em uma peregrinação de Vesalius à terra santa de Jerusalém.
No breve ensaio biográfico que acompanha “De Humani Corporis Fabrica”, o leitor descobre que, depois de enfrentar séries intermináveis de peripécias dignas de galerias de heróis picarescos da melhor ficção, Vesalius ainda sobreviveria de forma mirabolante a um terrível naufrágio, na sua viagem de volta de Jerusalém à Europa. Morreu, finalmente, na condição de náufrago, um sobrevivente esquecido à espera de resgate na ilha de Zante, periferia da Grécia, na época um território desabitado, até hoje citado como um dos cenários especialmente paradisíacos no Hemisfério Norte.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. De Humani Corporis Fabrica. In: _____. Blog Semióticas, 6 de outubro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/10/de-humani-corporis-fabrica.html (acessado em .../.../...).


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