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26 de setembro de 2015

Arte no Bordel







Nessa imensa galeria da vida de Londres e da vida de
Paris, encontramos os diferentes tipos da mulher errante,
da mulher revoltada em todos os níveis: primeiro, a mulher
galante, na flor da idade, com pretensões a ares aristocráticos,
orgulhosa ao mesmo tempo da sua juventude e do seu luxo (…);
seguindo a escala, nós descemos até essas escravas confinadas
nessas espeluncas frequentemente decoradas como se fossem
bares: umas infelizes colocadas sob a mais mesquinha tutela.

–– Charles Baudelaire    


Desde as relíquias da mais remota Antiguidade às instalações multimídia contemporâneas, não faltam obras-primas da história da arte dedicadas ao tema. Na Arte Moderna, os exemplos também formam uma extensa lista – incluindo criações a seu tempo polêmicas e revolucionárias. Da “Olympia” (1863), de Édouard Manet, a “L'Absinthe” (1875), de Edgar Degas, ou às “Les Demoiselles d’Avignon” (1907), de Pablo Picasso, e daí a tantas outras mais ou menos consagradas, as mulheres dos bordéis e cabarés são as musas inspiradoras e presença constante na obra de Henri de Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Edvard Munch, Maurice de Vlaminck, Kees van Dongen, František Kupka, Jean-Auguste Ingres, Pierre Bonnard ou Vincent van Gogh, entre outros mestres.

Muitas destas obras-primas da Arte Moderna estarão reunidas no Musée d'Orsay, em Paris, de 22 de setembro até 20 de janeiro de 2016, no primeiro grande evento dedicado ao tema Arte & Prostituição. Intitulada “Splendeurs et Misères. Images de la Prostitution, 1850-1910”, a programação tem uma grande exposição de artes plásticas – também a maior já realizada sobre o assunto, reunindo um extenso acervo de peças originais que inclui pinturas, esculturas, cartazes, desenhos, objetos decorativos, daguerreótipos e fotografias de época – e uma série de palestras, debates, mostra de filmes, apresentação de recitais de ópera, concertos e performances.

Todas as obras na exposição principal e nos eventos paralelos da programação abordam a prostituição – ou “o amor em troca de dinheiro nos bordéis e cabarés e também nas ruas, hotéis, cinemas ou na Opera House”, como define o ensaio de apresentação à exposição, a cargo da equipe de curadoria formada por Marie Robert e Isolde Pludermacher, diretoras do Musée d'Orsay, com as colaborações de Richard Thomson, professor de História da Arte da Universidade de Edinburg, do Reino Unido, e de Nienke Bakker, do Van Gogh Museum, da Holanda. 














Arte no Bordel – imagens que provocaram
escândalos na Arte Moderna estão reunidas
na exposição Splendeurs et Misères.
Images de la Prostitution, 1850-1910,
no Musée d'Orsay, em Paris. No alto e
acima, obras-primas de Édouard Manet:
Olympia e Le Déjeneur sur l'Herbe,
ambas de 1863, Bal masqué à l'Ópera,
de 1873, e La Serveuse de Bocksde 1878.

Abaixo, Rollapintura em óleo sobre
tela de 187de Henri Gervex, e
Scène de fête au Moulin Rouge, pintura em
óleo sobre tela de 1889 de Giovanni Boldini













Esplendor e Miséria



A partir do recorte temático ousado para uma grande exposição, tão polêmico que permanecia inédito no circuito dos grandes museus – a abordagem da prostituição pelas obras-primas reunidas pela curadoria do Musée d'Orsay permite estabelecer novos olhares sobre o século 19. Há os avanços nas questões de moralidade e na liberalização dos costumes, mas também há as questões específicas das descobertas científicas e dos avanços da técnica que estão na gênese do que conhecemos atualmente como Arte Moderna.

Pela trajetória cronológica das obras que formam o acervo da exposição “Esplendores e Misérias”, é possível perceber estes avanços da técnica através do modo como artistas franceses e estrangeiros, estabelecidos em Paris e fascinados pelas mulheres da vida boêmia e mundana dos bordéis e das ruas, também procuravam, entre o Segundo Império e o fim da Belle Époque, por novos e às vezes radicais meios pictóricos para representar realidades e fantasias.










Arte no Bordel – obras-primas de
Edgar Degas: acima, a melancolia
em Dans un café (L’Absinthe),
pintura em óleo sobre tela de 1873, e
L'Attente d'un client (1876-1877).

Abaixo, a intimidade da nudez em
outras duas obras de Degas:
Le Tub (A banheira), de 1886,
e Ballet (L’Étoile), de 1878









 
Os negócios privados com ramificações públicas, que a prostituição representava e representa, ganharam maior destaque no final do século 19 e também passaram à condição de interesse central na obra de vários artistas e escritores, ao mesmo tempo em que o progressivo movimento migratório das populações rurais formava as multidões empobrecidas e proletárias das cidades, provocando aumento crescente da criminalidade. Nas cenas retratadas pelos mestres da literatura e da Arte Moderna, multidões, criminosos, bordéis e prostitutas vão se tornando inseparáveis da paisagem urbana

No período histórico traçado pela exposição, que tomou o título de um dos romances de Honoré de Balzac, “Esplendor e Misérias das Cortesãs” – parte integrante de “As Ilusões Perdidas” (1843), que trata das desventuras do jovem poeta Lucien de Rubempré – são duas revoluções, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, que formam o pano de fundo da crônica social e mundana da Paris, onde a prostituição passou a ser assunto frequente e interesse central na rotina da cidade e de seus habitantes.

               





Arte no Bordel: acima, La femme
en chemise ou Danseuse, pintura de
André Derain. Abaixo, Au Café
d'Harcourt à Paris, pintura em óleo
sobre tela de 1897 de Henri Evenepoel;
Noël au Bordel, de Edvard Munch 














Nudez embrutecida e melancólica



Além das cortesãs do livro de Balzac, o esplendor e a miséria da prostituição na França do Oitocentos também surgem entre as tramas e personagens de outros grandes nomes da literatura da época, incluindo Charles Baudelaire, Émile Zola, Gustave Flaubert – e também de outros países, com destaque para o brasileiro José de Alencar e seu romance “Lucíola”, publicado em formato de folhetim em 1862, muito avançado para seu tempo. Assim como os mestres franceses e como outros autores brasileiros que viriam depois dele, Alencar também aborda uma trama de contradições e dificuldades econômicas que culmina com a hipocrisia, o preconceito latente e a intolerância implacável da sociedade, seja contra a presença de cortesãs e prostitutas ou contra "pecadores" que tentam esquecer o passado para recomeçar uma vida nova e "honrada".

As atividades das prostitutas eram permitidas, mas também eram rigidamente regulamentadas por leis e vigiadas na França durante todo o século 19 e até o começo do século 20. Fazer ponto nas ruas, o chamado “trottoir”, mesmo à noite, era ilegal – mas nem por isso era uma prática incomum. Para atender clientes dentro da lei, as mulheres tinham que se registrar na polícia, empregar-se oficialmente em um único bordel e pagar pontualmente seus impostos.


 








Arte no Bordel – seleção de obras-primas
de Henri de Toulouse-Lautrec: acima,
Rue des Moulins, L'Inspection Médicale;
Femme tirant son bas; e La Toilette.

Abaixo, edetalhe e tela completa,
a imagem destacada no cartaz da
exposição do Musée d'Orsay,
 Au Moulin Rouge, pintura em óleo sobre
tela de 1892-1895 de Toulouse-Lautrec










Depois de fichadas nas delegacias de polícia, as prostitutas da França do século 19 também tinham que fazer exames médicos todos os meses, algo que podia ser mais humilhante do que o próprio ato de vender o corpo. O pintor Henri de Toulouse-Lautrec, obcecado pelos bordéis e pelas prostitutas, captou estas cenas de humilhação em obras célebres – entre elas duas pinturas em óleo sobre tela de 1894, “Rue des Moulins, L'Inspection médicale” e “Femme tirant son bas”, em que revela a nudez embrutecida e melancólica das mulheres em nada sensuais.

Toulouse-Lautrec foi um dos nomes centrais da interface entre Arte & Prostituição: de 1892 a 1895 ele criou mais de 50 pinturas em grande formato e mais de 100 desenhos – tudo com inspiração nas mulheres e cenários dos bordéis. Pioneiro da Arte Moderna, Toulouse-Lautrec era descendente da nobreza francesa e boêmio inveterado desde a juventude, quando decidiu abandonar a família abastada e fugir para Montmartre, onde se reuniam prostitutas, artistas e aventureiros. Passava dias e noites no Moulin Rouge e outros cabarés e bordéis da região do Pigalle. Morreu jovem, mas revolucionou a pintura, a litografia e as técnicas para o design gráfico dos cartazes publicitários, definindo o estilo que seria posteriormente conhecido como Art Nouveau.










Arte no Bordel – duas obras-primas
que abordam a presença ambígua de
mulheres nas ruas de Paris: acima,
L'Attente (A espera), pintura em óleo
sobre tela de 1880, e La proposition,
pintura de 1885, ambas de Jean Béraud.

Abaixo, Traversant la rue (Atravessando a
rua), pintura de 1875 de Giovanni Boldini;
e uma das pinturas da série intitulada
Le Café de Paris, realizada por
Jean Béraud no final do século 19











Choque estético e moral



Fugindo aos estereótipos do Impressionismo e da pintura francesa anterior a 1900, com suas paisagens naturais e imagens de doces personagens, as figuras realistas ou amargas de bordéis e prostitutas reunidas pela exposição do Musée d'Orsay podem mesmo provocar algum choque estético e moral. Mas trata-se do retrato fiel de uma época. No final do século 19, Paris era uma cidade em plena transição social – e a prostituição estava em toda parte, fazendo do amor algo incerto, efêmero e fugaz, como escreveu Charles Baudelaire no soneto “A uma passante”, incluído em seu célebre “As Flores do Mal” (1857), publicado no Brasil em 1985 pela Nova Fronteira, em tradução de Ivan Junqueira.

Hoje, como no passado, a arte espelha a sociedade com suas transformações e paradoxos – talvez por isso, diante das obras-primas reunidas na exposição “Esplendores e Misérias”, a centralidade deste mundo obscuro de prostitutas e bordéis no desenvolvimento da pintura moderna torna-se evidente. A modernidade da vida urbana entrou com força na cultura e, nos domínios da arte, muito pouco, ou quase nada, ficou escondido – nem mesmo os segredos de alcova em cabarés de Montmartre ou os encontros furtivos e mundanos em hotéis às margens do Sena, entre cavalheiros com suas cortesãs, com dançarinas de Can-Can ou com as mulheres anônimas que faziam, durante noites e madrugadas, o “trottoir” proibido por ruas e avenidas. 









Arte no Bordel – acima, duas fotografias
de Maurice Gilbert de 1895 registram
Toulouse-Lautrec no ateliê, finalizando
uma de suas obras-primas, a pintura
Moulin Rouge, La Dansee com uma
de suas musas e modelos de trabalho,
Mireille, dançarina de Can-Can.

Abaixo, La Goulue tenant un verre de vin
(A Goulue segura uma taça de vinho), uma
fotografia de 1895 de Louis Victor Paul Bacard
que registra uma mulher muito famosa pela
vida noturna na região de Montmartre: ela era
La Goulue (a gananciosa), nome artístico
de Louise Weber, a mais conhecida das
dançarinas de Can-Can nos cabarés de
Paris no final do século 19. Também
abaixo, uma fotografia de 1904 do célebre
bistrô Auberge du Clou, ponto de encontro
de artistas e intelectuais, também em
Montmartre; e uma gravura de 1895
de Toulouse-Lautreccriada pelo
artista para ser usada como
anúncio publicitário 











 

Nas primeiras décadas do século 20, a prostituição sofreria mudanças radicais: as duas guerras mundiais moveram fronteiras, aumentaram a miséria e a proliferação das doenças e, em 1946, os bordéis se tornariam ilegais na França. A legislação teria outras idas e vindas nas décadas seguintes, mas ainda há muita controvérsia sobre a presença ostensiva de prostitutas em lugares públicos. Atualmente, receber dinheiro em troca de sexo é uma atividade legal na França, mas o país ainda trava um intenso debate sobre criminalizar ou não o ato de pagar por sexo, como na Suécia – outra demonstração do acerto do Musée d'Orsay em lançar luzes sobre a questão.

Além da atualidade do tema, o fator ineditismo também conta muitos pontos a favor de “Esplendores e Misérias”, já que a mostra é a primeira a examinar de perto um assunto por certo explosivo, ainda tão polêmico e tão comum na pintura moderna, especialmente na França. Tudo indica que a reunião valiosa desta coleção de obras-primas, garimpadas no acervo do museu ou tomadas de empréstimo a outras instituições, será motivo suficiente para marcar época, garantindo destaque nas agendas de cultura e o interesse do público – e, quem sabe, talvez também possa ajudar no combate ao preconceito e à intolerância.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Arte no Bordel. In: Blog Semióticas, 26 de setembro de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/09/arte-no-bordel.html (acessado em .../.../…).



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Arte no Bordel: acima, fotografia de
1895 de Carabin François-Rupert,
escultor, gravador e fotógrafo
profissional, exibida na exposição
Esplendores e Misérias, intitulada
“Femme nue assise de trois-quarts dos,
sur une chaise, visage de profil gauche”
(Mulher nua de costas, sentada em uma
cadeira, perfil da face esquerda). Abaixo,
uma visitante da exposição diante da série
Rolla, de Auguste Chabaud (1882-1955)
e o cartaz original da exposição 











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