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29 de agosto de 2023

Arte feita de pedras

 





O mar, que só preza a pedra, 
que faz de coral suas árvores, 
luta por curar os ossos 
da doença de possuir carne. 

–– João Cabral de Melo Neto,  
"A educação pela pedra" (1966).  
 

 




Pedras comuns – o material mais simples e em maior abundância em qualquer lugar deste planeta Terra, é a matéria-prima usada por Nizar Ali Badr, artista da Síria, para expressar sua visão de mundo. São arranjos que representam mulheres e crianças, homens, árvores, famílias inteiras, seus pertences, até um beijo apaixonado: a arte de Nizar Ali Badr é feita somente de pedras. Nem tintas, nem traços, nenhum outro material. Apenas pedras. Alinhadas, organizadas sobre superfícies neutras, formam imagens que traduzem pessoas, cenas cotidianas, celebrações, denúncias. No olhar e na imaginação do observador, os mosaicos de pedras montados pelo artista traduzem a Síria, país onde Nizar Ali Badr nasceu e onde sobrevive à barbárie da Guerra Civil.

Encontrei uma seleção da arte de Nizar Ali Badr em uma página do Facebook sem nenhum texto de orientação. Apenas o nome do artista e sua terra natal. Por curiosidade, fui pesquisar sobre o artista e sobre seu país. Descobri pouco sobre Nizar, mas fiquei surpreso ao saber que a Síria é um dos territórios mais antigos da ocupação humana, habitado há milhares de anos, desde a mais remota Antiguidade, mas com a explosão da Guerra Civil, que começou em 2011, a capital Damasco e outras grandes cidades do país, Aleppo, Homs, Palmira, Latakia, Hama, surgem sempre, nas imagens dos noticiários, em escombros de explosões e bombardeiros que nunca terminam.











Arte feita de pedras por Nizar Ali Badr:
no alto e acima, o artista em ação na região
em que mora, à beira-mar, nas proximidades
do Monte Jablon, na Síria. Abaixo, amostras
da arte de Nizar: beijos feitos de pedra
e a jornada dramática dos refugiados,
tradução do sofrimento e da revolta pela
Guerra Civil que desde 2011 destrói a Síria


 











Sanções econômicas, que têm sido impostas desde 2011 por Estados Unidos, União Europeia e Liga Árabe, só aumentam o impacto da destruição e da fome sobre mais de 23 milhões de sírios (estimativa de 2023) – uma população em descréscimo acelerado na última década, por conta do número de mortos na guerra e pelas levas de migrantes que abandonam o país. A tragédia recente impressiona, mas a história tem antecedentes violentos há muito tempo. Assim como acontece na maioria dos países do Oriente Médio, a Síria não teve uma trajetória pacífica no decorrer do século 20.


História de conflitos


Estabelecida como território próspero de produção de frutas e cereais desde o imemorial Reino de Eblas, mais de 4 mil anos Antes de Cristo, a Síria ao longo de milênios conquistou muitos povos nas vizinhanças do seu território e também foi dominada, em períodos cíclicos e sucessivos, sendo palco da ascensão e queda dos impérios do Egito, da Suméria, da Mesopotâmia, de Acádios, de Ur, de Arameus, de Assírios, de Neobabilônicos, de Gregos, de Romanos, de Bizantinos, de Mongóis e de Otomanos. Cada império incorporou elementos das tradições ancestrais da Síria e também imprimiu sua marca em períodos de dominação que, em alguns casos, se estenderam por séculos.













Arte feita de pedras: acima, vista do conjunto
arquitetônico da cidade antiga de Palmira, na
Síria
, que era preservado há mais de 2 mil anos
e foi destruído nas explosões da Guerra Civil;
um homem que chora sobre os escombros,
depois de um bombardeio na região; e os corpos
levados pela água depois de um ataque aéreo
na cidade síria de Aleppo, em fotos de 2010
2016 e 2013 de Baraa Al-Halabi, fotojornalista
sírio da Agência France Presse (AFP).

Abaixo, cenas da guerra na arte de Nizar Ali Badr













A origem de diversas formas de arte também se confunde com a história da Síria – dos entalhes em pedras de relevos e esculturas às grandes construções arquitetônicas que foram assimiladas e adaptadas por culturas diversas com o passar do tempo. Os sírios também foram os primeiros a dominar a arte de produção do vidro, e seus mais antigos artefatos de vidros coloridos que sobreviveram até nossos dias têm mais de 3 mil anos. São raros, entretanto, os registros da literatura e da História Antiga da Síria, porque o país enfrentou muitos períodos de apagamentos, de violentas perseguições étnicas e religiosas, de censura que remonta à Antiguidade e vem até os dias atuais.

Ainda hoje, expoentes da literatura e das artes da Síria sobrevivem apenas no exílio, entre eles Zakariya Tamir (nascido em 1932), um dos principais escritores do mundo árabe, radicado em Londres, ou Fateh al-Moudarres (1922-1999), expoente do surrealismo e da arte moderna das Arábias, que viveu muitos anos exilado em Roma. A principal homenagem à arte da Síria, e em protesto pela Guerra Civil instalada no país, foi realizada em Paris pelo Institut des Cultures d'Islam (Instituto de Culturas do Islã), reunido obras em diversos suportes de autores sírios nas artes plásticas, fotografia, cinema e arte digital. A exposição foi aberta em 2014 e segue um roteiro itinerante em diversos países. Entre os artistas convidados estão Fadi Yazigi, Akram al Halabi, Mohammed Omran, Khaled Takreti, Muzaffar Salman e Tammam Azzam, todos com obras que fazem referência à Guerra Civil e à resistência dos sírios diante da trajetória de violência e de conflitos históricos.

















Arte feita de pedras: acima, três obras do
artista sírio Tammam Azzam que apresentam
releituras de obras célebres da história da arte
no contexto da Guerra Civil em seu país,
"A Dança" (de Henri Matisse), "Noite Estrelada"
(de Van Gogh) e "O Grito" (de Edvard Munch).

Abaixo, 
uma cena da guerra por Nizar Ali Badr






No século 20, a Síria conseguiu restabelecer sua soberania como nação, logo depois da Primeira Guerra Mundial, tornando-se o maior Estado árabe e, em 1945, ao final da Segunda Guerra, foi um dos membros fundadores da ONU, Organização das Nações Unidas, e da Liga Árabe. Ainda na década de 1940, os sírios elegeram o primeiro presidente do país, Shukri al-Quwati, e conquistaram sua independência definitiva, após um longo período do domínio francês. Nas décadas seguintes, a Síria se alinhou à União Soviética, depois ao Egito, só retornando à independência em 1970, quando houve um golpe de estado liderado pelo general Hafez al-Assad. Depois do golpe o país conquistou novamente a independência, mas permaneceu sob um governo autoritário.


Primavera árabe


Hafez al-Assad ficaria no poder durante 30 anos, até sua morte, no ano 2000, quando seu filho Bashar al-Assad assumiu o poder e o cargo de presidente da Síria. Em 2010, a permanência de Bashar al-Assad no poder foi ameaçada pela onda de protestos nas ruas das maiores cidades da Síria, no contexto da Primavera Árabe – como ficaram conhecidas as manifestações organizadas pelas redes sociais da internet (Facebook, Twitter e YouTube) que agitaram países do Oriente Médio e do Norte da África, a maioria deles, não por acaso, sendo grandes produtores de petróleo. Os protestos, que muitos analistas veem como movimentos atrelados e financiados por interesses de países do Ocidente, provocaram repressão violenta e revoluções, prisões, mortes e guerras civis no Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Argélia, Kuwait, Líbano, Jordânia e outros países. No caso da Síria, a Guerra Civil que teve início com os protestos daquele período já tem duração de mais de uma década (sobre as questões da Primavera Árabe, veja também Semióticas – Das Arábias).














Arte feita de pedras: acima, homens carregam
bebês depois de um bombardeio na cidade de
Aleppo, em fotografia de 2016 de Ameer al-Halbi
para a Agência France Presse; crianças da Síria
em área destruída na cidade de Kobane e um
acampamento de refugiados sírios na fronteira
com a Turquia, em fotografias de 2015 e 2016
de Yasin Akgul, fotojornalista da Síria para a
Agência France Presse. Abaixo, refugiados da
Guerra Civil na Síria na arte de 
Nizar Ali Badr










Na Síria, a repressão aos protestos da Primavera Árabe coincidiu com a ascensão de diversos grupos armados e sectários, alguns deles com histórico de atuação violenta nas décadas anteriores. Os conflitos internos, com apoio bélico intensivo e permanente de forças estrangeiras, já deixaram um número incontável de milhares de mortos e provocaram movimentos de migração que, segundo estimativas não oficiais, atingiram mais de 13 milhões de pessoas. O que começou como protestos pacíficos passou a enfrentar uma violência crescente que se espalhou, à medida que milhares deixavam o país na condição de refugiados e que os combatentes estrangeiros e armamento pesado entravam, fortalecendo o Estado Islâmico. Desde 2011, a paz parece um sonho cada vez mais distante para os sírios.

Este sonho distante ainda move a arte de Nizar Ali Badr que, quando começaram os confrontos violentos, passou a recolher suas pedras à beira-mar na localidade onde mora, entre as cidades de Latakia e Jebel, na região do Monte Zaphon, próxima à fronteira com a Turquia. As pedras se transformaram em passatempo e em registro de cenas que o artista acompanha no dia a dia: famílias em fuga, perseguições, violência, destruição. Também em 2011 ele conseguiu sua primeira câmera fotográfica e passou a registrar as cenas da arte efêmera que constrói diariamente com os arranjos de pedras.

Uma das poucas vezes que Nizar comercializou suas obras foi em 2016, quando a escritora e jornalista canadense Margriet Ruurs pagou pelo uso das ilustrações em seu livro infantil “Caminho de Pedras – A jornada de uma família de refugiados”, que conta a história de uma família de imigrantes, sucesso de vendas em vários países, inclusive no Brasil, onde foi lançado em 2018 pela Editora Moderna em versão ilustrada e bilíngue, em português e árabe. No livro de Margriet Ruurs, a protagonista Rama e sua mãe, pai, avô e irmão, Sami, são forçados a fugir da guerra na Síria, deixando tudo para trás, e partem em busca de refúgio na Europa, levando apenas o que podem carregar nas mochilas. A história, comovente e verdadeira, é contada pelas pedras de Nizar Ali Badr.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte feita de pedras. In: Blog Semióticas, 29 de agosto de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/08/arte-feita-de-pedras.html (acessado em .../.../…).



Para comprar o livro Caminho de Pedras, edição bilíngue,  clique aqui.












20 de agosto de 2011

Das Arábias






Você pode queimar o papel,
mas o que está escrito nele, você não pode.
Está bem guardado no meu peito.

Aonde quer que eu vá, ele me acompanha.
Queimará quando eu queimar e irá
comigo para o túmulo, quando eu morrer.

––  Ibn Hazm (994-1064).   


Por que a imensa maioria dos cidadãos do Oriente Médio e do mundo islâmico – e também de outras latitudes do planeta – vê os Estados Unidos da América como principal responsável por seus maiores problemas? O jornalista e escritor paquistanês Tariq Ali, meses antes da morte de Osama bin Laden (1957-2011), ousou escrever uma resposta que tornou-se um best-seller: o polêmico livro-reportagem "Duelo - O Paquistão na Rota de Voo do Poder Americano".

No livro, lançado no Brasil pela editora Record, Tariq Ali mira, na primeira pessoa e em tom confessional, porém estritamente jornalístico, o panorama político da sua terra-natal e dos levantes das populações árabes contra as invasões norte-americanas, contra o terrorismo do Estado de Israel e contra as monarquias e regimes autoritários. "Duelo" não é primeiro best-seller explosivo de Tariq Ali, que periodicamente também publica reportagens investigativas e ensaios analíticos em jornais e revistas de vários países, entre eles dois dos mais prestigiados veículos de imprensa do Reino Unido: o jornal "The Guardian" e a revista "New Left Review".

No Brasil, além de "Duelo", também estão publicados vários livros de Tariq Ali, entre eles "Piratas do Caribe" (relato que vai contra a visão distorcida e muitas vezes criminosa que a velha imprensa tenta construir no Brasil sobre a trajetória do venezuelano Hugo Chávez e a ascensão da esquerda democrática na América Latina), "Confrontos do Fundamentalismo" (sobre os atentados de 11 de setembro de 2001 e as origens da "guerra ao terror") e "Bush na Babilônia", que apresenta a guerra no Iraque no contexto da história de resistência do povo persa contra novos e antigos impérios.










Das Arábias: acima, visão interna da cúpula
do mausoléu de Mumtaz Mahal, o Taj Mahal,
em Agra, Índia, pináculo da arquitetura mongol,
em fotografia extraída do catálogo Thinkstock
Taschen. Também acima, o jornalista e escritor
Tariq Ali fotografado em 2003 no Imperial College,
em Londres. No alto da página e na sequência
abaixo, imagens de protestos contra os EUA
e da chamada Primavera Árabesérie de
revoltas e protestos violentos patrocinada
pelos EUA, com flagrantes registrados pelas
agências de notícias internacionais Reuters,
Associated Press, AFP (France-Presse)
e BBC sobre as manifestações e combates
nas ruas contra os governos locais.

Os protestos de multidões nas ruas, que foram
caracterizados como guerra civil em alguns
países, tiveram propaganda pelas redes sociais
da Internet, principalmente pelo Facebook, e
em pouco tempo se espalharam pela Líbia,
Egito, Paquistão, Índia, Síria, Tunísia,
Iraque, Argélia, Iémen, Líbano e outros
países islâmicos do norte da África,
do Oriente Médio e da Ásia a partir
de dezembro de 2010













A coragem e as denúncias explosivas dos relatos de Tariq Ali, contudo, custaram o exílio do jornalista, atualmente refugiado em Londres. Em "Duelo", livro que combina uma estrutura narrativa que lembra os roteiros de filmes de ação e suspense aliada a reflexões sobre a história política do Oriente Médio e a uma extensa pesquisa de fontes que incluem entrevistas, noticiários e convívio in-loco com outros jornalistas e correspondentes de guerra, Tariq Ali também antecipa a recentíssima crise em vários países da Liga Árabe – a maior parte deles às voltas com protestos populares inéditos, violentos e sangrentos, apoiados de forma ostensiva pelos Estados Unidos e difundidos de forma maciça pelas redes sociais da internet. Detalhe da maior importância: os países em questão estão entre os grandes produtores de petróleo do planeta.

Por conta das denúncias e análises de "Duelo" e de seus outros livros, principalmente os que apontam em minúcias os prós e contras para o império norte-americano ao interromper ou intensificar os combates no Oriente Médio, Tariq Ali foi acusado de apoiar o terrorismo e de ser um agente contra a democracia. Em outras palavras: a máquina da propaganda de guerra dos EUA, como acontece com muita frequência, foi acionada para tentar calar uma voz que ousa ser dissonante em relação aos interesses bélicos e econômicos do império do Tio Sam.









Das Arábias: bandeiras da Inglaterra e dos
Estados Unidos queimam em protestos nas
ruas do Irã e do Iraque. Abaixo, três colagens
do fotógrafo turco Ugur Gallenkus, que reúne
imagens recortadas de revistas de moda e da
cultura pop às suas fotografias de crianças e
refugiados em regiões de guerra e violência
na África e em países do Oriente Médio












Menestrel do mundo árabe


 

A impressão que o leitor tem, na primeira leitura das reflexões e descrições de Tariq Ali é que ele aprendeu o melhor de dois mundos. Nascido de tradicional família política Punjabi, Tariq Ali é formado no Ocidente pela Universidade de Oxford e autor de roteiros para cinema, biografias e obras sobre história e política internacional. Há muito ele é reconhecido como um dos principais comentaristas das questões sobre o mundo árabe e, por conta de seu tom personalíssimo e sua desenvoltura frente a questões diversas e polêmicas, revistas e programas de TV em vários países da Europa costumam se referir a Ali como "o menestrel das arábias".

Crítico ferrenho do fundamentalismo islâmico – que aponta como responsável pela propagação de atos terroristas – também não poupa os governos autoritários que nos últimos anos e décadas agiram sob o jugo norte-americano, casos de Egito, Jordânia e Síria. Para Ali, o direito dos povos oprimidos da região à resistência é sagrado, até porque quando se fala do mundo islâmico o que está em questão é um número quase incontável de histórias, povos, línguas, tradições, experiências e culturas.







"Quando comecei a escrever este livro um amigo de Londres perguntou: Não é imprudente começar um livro quando os dados ainda estão no ar? Se eu esperasse os dados caírem, nunca teria escrito nada", anuncia Tariq Ali, alertando o leitor para a possibilidade permanente e urgente de lances que dia sim dia não explodem nos noticiários.

A invasão do Afeganistão e do Iraque, a situação do Paquistão, os governos colaboradores, a frequência das revoltas populares e a complexa situação entre Palestina e Israel são os temas que perpassam em "Duelo". O escritor, que visitou o Brasil duas vezes – na Flip de 2006, em Paraty, e em Salvador, em 2010, convidado especial do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual – relata notícias recentes, mas também recorre à história árabe no último século, assim como busca paralelos na milenar história do Islã e seus contatos com a cultura cristã e judaica.







"A história oficial é composta sobretudo de meias verdades e mentiras sinceras, nas quais tudo é atribuído a governantes nobres, a sentimentos devotos", escreve Tariq Ali na conclusão de "Duelo". O capítulo, pontuado pelas memórias afetivas do autor sobre acontecimentos que têm versões radicalmente divergentes divulgadas pelas agências de notícia internacionais, recebe o título sintomático de "Poderia o Paquistão ser reciclado?" 



A outra história



"Os que escrevem a história oficial são adoradores de fatos realizados e estão ao lado dos vitoriosos", registra Tariq Ali, retomando teses emblemáticas de filósofos e historiadores capitais do século 20, como Walter Benjamin e Hannah Arendt. "Algumas vezes generais, outras políticos. O êxito justifica tudo. Mas existe outra história que se recusa a ser reprimida", alerta. É em direção a esta "outra história" que ele investe em “Duelo”, em análises contundentes, porém equilibradas, coerentes, demonstração do melhor jornalismo, tão em falta nos dias que correm.








Reunindo muitas de suas análises apresentadas como colaborador habitual de telejornais, revistas e jornais europeus, o paquistanês Tariq Ali demonstra no livro, na prática, as regras da apuração e os problemas da informação confidencial. Contudo, não há heróis em "Duelo". Nem aos mártires anônimos é reservada esta honra. Mas há esperança como nos versos do poeta Fakhar Zaman que encerram o relato de Tariq Ali:


Sem olhos, nós pintamos
Sem mãos, esculpimos estátuas
Sem ouvir, compusemos músicas
Desprovidos de língua, cantamos
Com as mãos atadas, escrevemos poesias
Com as pernas presas a grilhões, dançamos
E a fragrância das flores penetrou
nossas bocas e narinas tapadas.













Sherazade no mundo masculino


 

Enquanto em “Duelo” o jornalista Tariq Ali antecipa e analisa a crise árabe mais recente, a questão da mulher no Oriente é o centro do relato de primeira qualidade de uma mulher árabe, por coincidência jornalista. Lançada à ordem do dia com a proibição do uso em público, na França e em outros países da Europa, da burca e do véu integral muçulmano, a situação da mulher no mundo árabe é o tema de Joumana Haddad em "Eu Matei Sherazade – Confissões de uma Árabe Enfurecida", também lançado pela Editora Record.







Assim como “Duelo” também um best-seller internacional, o relato de Joumana Haddad, jornalista, editora, tradutora, poeta, romancista e ativista dos direitos humanos em sua terra-natal, Beirute, no Líbano, é escrito na primeira pessoa. Mas enquanto Tariq Ali expõe e elabora quase como metalinguagem seu livro-reportagem, a prosa de Joumana Haddad (foto abaixo) exalta com ironia e erotismo o poder libertador da literatura.

O relato de Joumana Haddad convida também, nos limites da metalinguagem, o leitor a compartilhar, a cada página, a trajetória de descobertas na passagem de Joumana de estudante adolescente para o mundo adulto predominantemente masculino. "Em vez de se render imediatamente a uma determinada imagem que foi criada por outra pessoa em seu nome, tente perguntar: afinal de contas, o que é uma mulher árabe?", desafia Joumana, logo nas primeiras páginas. Mas por quê, o leitor se perguntaria, matar Sherazade?








Joumana Haddad, no seu relato jornalístico e ao mesmo tempo confessional, argumenta sobre sua tese literária com implicações sociológicas, antropológicas e políticas: é preciso matar Sherazade porque ela, a narradora aprisionada do clássico "As Mil e Uma Noites", que interrompe ao fim de cada noite sua história mirabolante para sobreviver diante da tara assassina de seu algoz nobre e todo poderoso, a mesma Sherazade tida como uma das personagens mais emblemáticas da literatura universal – e símbolo particular da mulher e da cultura do Islamismo – em suas milhares de histórias inventadas (Ali-Babá, Simbá, Aladim, o Gênio da lâmpada, o gigantesco pássaro Roca, o tapete voador etc...) para evitar a morte, não seria jamais um bom exemplo de resistência. 



Metáfora da submissão



Para Joumana Haddad, que fundou em 2009 a "Jasad", revista trimestral publicada em língua árabe e especializada em arte, em erotismo e em literatura dos povos árabes, Sherazade é, sim, uma metáfora pessimista sobre a concessão e da submissão. Na argumentação da jornalista, Sherazade não representa um valor a ser cultivado. Pelo contrário: é uma referências extremamente nociva para o imaginário árabe porque faz alusões à negociação de direitos que não deveriam estar em jogo porque são direitos básicos para todos a humanidade – ou que, pelo menos, deveriam ser. 













"Este livro dedicado à figura mítica de Sherazade é uma tentativa singela de refletir sobre esse tema. Ele não pretende dar respostas às questões apresentadas, nem soluções aos problemas expostos, nem lições ou receitas para viver bem. Sua maior aspiração é divulgar um depoimento e uma reflexão" – com esta premissa Joumana Haddad vai tecendo um relato sedutor – tal e qual nas estratégias de sua antagonista Sherazade no clássico das “Mil e Uma Noites”.

O relato que Joumana Haddad apresenta em "Eu Matei Sherazade" soa breve e franco, por vezes político e explosivo, sobre o que significa ser mulher e ser mulher no mundo árabe. Com humor incomum, destrói preconceitos, diverte, faz pensar e condena a postura de quem assume o papel de vítima. Nascida em 1970, a jornalista é reconhecida atualmente como uma das mais engajadas representantes da luta pela liberdade feminina no Oriente Médio.







Joumana Haddad tem no currículo um trabalho extenso que é reconhecido também no exterior: além da revista "Jasad" e dos livros que publica, e da vida normal de todo dia, como ela destaca na apresentação de Eu Matei Sherazade”, ainda trabalha como editora do principal jornal do Líbano, o "An-Nahar", e também administra o Arab Booker, principal prêmio internacional da literatura de ficção em língua árabe.



Desafio aos tabus



Eu Matei Sherazade” defende a emancipação da mulher e aborda os tabus do sexo, da poligamia, da virgindade, do prazer, do casamento forçado, dos projetos autobiográficos dos quais se esquece e dos que abraça com paixão para contar como ela própria se impôs e venceu num opressivo mundo masculino. 

"Não entendia por que algumas coisas não eram permitidas a mim, por ser mulher. Então, tive a ideia de fazer uma revista que desafiasse todos esses tabus, falando sobre corpo, sexualidade e erotismo", esclarece a jornalista, comentando sobre as estratégias que adotou, logo nas primeiras páginas do livro.




Das Arábias: acima, Joumana Haddad e

reproduções da revista "Jasad" (a palavra

significa "corpo" em árabe). Abaixo, figuras

do feminino segundo a fotojornalista

Shadi Ghadirian, um dos nomes mais

conhecidos da fotografia contemporânea no

Irã. Na série fotográfica Qajar”, de 1998,

Ghadirian retrata mulheres usando trajes

típicos do mundo islâmico mais tradicional,

da época da dinastia Qajar (1785-1925),

porém com objetos da modernidade

do Ocidente na mesma cena















Joumana Haddad não só rejeita e ironiza os percalços de Sherazade, mas também confessa no livro que sua inspiração vem de clássicos da literatura, principalmente os do Ocidente – em especial o Marquês de Sade, autor polêmico que ela traduziu para o árabe e transformou em campeão de vendas no Líbano – mas também do cotidiano dos problemas que uma mulher árabe que ousa ser jornalista enfrenta, a cada pauta de trabalho e também na vida que segue.

Em seu relato saboroso, inteligente, Joumana lança mão de estratégias da melhor literatura e retorna, no final, à questão do começo do livro: há alguma diferença autêntica, significativa, evidente, entre a situação da mulher árabe muçulmana e da cristã?

"Temo que não há diferenças", ela conclui, num dos breves capítulos que antecedem aos poemas anexados em "O capítulo da poetisa – uma tentativa de autobiografia". "Se você for fundo, temo que não há diferença entre a mulher árabe e a maioria das outras mulheres do mundo. A injustiça, os códigos morais duplos e os preconceitos são um pouco mais óbvios e visíveis na primeira, só isso. E o óbvio é quase sempre uma armadilha".









Das Arábias: acima e abaixo, mulheres
árabes beduínas (beduínos são integrantes
das tribos nômades que habitam os desertos
do Oriente Médio e do norte da África, 
se deslocando continuamente para as práticas
do comércio e o pastoreio). Na sequência,
também abaixo, jovens religiosos católicos
participam de manifestação em Paris, em
setembro de 2011, em apoio aos protestos
nas ruas de países do mundo árabe; a arte
feita de pedras pelo pintor e escultor da Síria,
Nizar Ali Badr, para denunciar a violência da
guerra civil que teve início em março de 2011;
e uma das ilustrações da brasileira Lu Martins
no livro Três Fábulas do Oriente





 


Ensinar com as fábulas

Enquanto as fábulas de Sherazade são metáforas para as reflexões de Joumana e as notícias que se sucedem montam a cena para “Duelo”, o brasileiro Bruno Pacheco defende que fábulas e notícias podem ser apresentadas ao público infanto-juvenil como uma introdução à filosofia. Em "Três Fábulas do Oriente" (Editora Record), o jornalista carioca, assim como fazem os jornalistas árabes Joumana Haddad e Tariq Ali, também transforma certas observações triviais sobre o cotidiano em comoventes lições de vida. 










Nas três fábulas apresentadas no livro – "Quebrador de Pedras", "Carregador de Água" e "Buda de Pedra" – a lição vem nas entrelinhas, sem verdades absolutas, sem emburrecer nem aborrecer, para mostrar que as mesmas coisas podem ser de uma outra maneira, ensinando que a vida pode ser mais simples do que se pensa.

"Como minha avó, minha mãe e meu pai, ele nos faz de novo meninos e a gente aprende que um pote quebrado que podia parecer defeituoso pode, na sua imperfeição, regar as flores do caminho", destaca a poeta Elisa Lucinda na apresentação ao trabalho de Bruno Pacheco, que também é roteirista de programas de TV e autor do belo "Sidarta para Jovens" (Editora Bookmarks), além de ter assinado sucessos recentes do teatro carioca.

Com fragmentos destacados da meditação do zen-budismo, que o autor pratica há 16 anos, reunidos a um mosaico de narrativas sem dono, sem autor, que foram escritas há muitos e muitos anos, "Três Fábulas do Oriente", com belas ilustrações em cores e em preto e branco, a cargo de Lu Martins, não deixa de ser um presente para quem acha que criança tem o direito de entender logo sobre os mistérios da vida e do bom-senso.

Ou ainda, nas palavras do menestrel Tariq Ali, que recorda das Arábias o lugar primordial das Utopias, ao citar Oscar Wilde, um dos gênios visionários da Belle Époque. Tariq Ali destaca que um mapa do mundo que não inclua a Utopia não merece ser olhado, conforme escreveu Oscar Wilde no final do século 19, já que este mapa deixa de fora o único país no qual a humanidade está sempre desembarcando. Segundo Oscar Wilde, quando a humanidade chega ali, olha para o horizonte e, ao ver no horizonte distante um país melhor, zarpa de novo em sua busca. O progresso só existe quando há a realização de Utopias.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Das Arábias. In: Blog Semióticas, 20 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/das-arabias.html (acessado em .../.../…).


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Acima, documentário produzido pela
TV Cultura de SP sobre a Primavera Árabe,
nome como ficou conhecida a série de
revoltas populares fomentada pelos EUA
contra os governos locais em diversos
países do Oriente Médio. As manifestações
tiveram início em dezembro de 2010







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