Mostrando postagens com marcador pops. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador pops. Mostrar todas as postagens

11 de julho de 2011

Louis entre os cronópios







Não há absolutamente nada no trompete que não venha

de Louis Armstrong. Na verdade, você pode dizer que

não há nada no jazz que não venha de Louis Armstrong.

Miles Davis (1926-1991).  



Há um conto de Cortázar, publicado em “Valise de Cronópio”, editado em 1993 pela Perspectiva, em que o narrador está em um concerto de Pops em Paris, em 1952. Tudo é normalidade e expectativas, mas quando o artista surge no palco, o fabuloso se instala, multiplicado em risos, pausas, canções, gestos mirabolantes.

A história de Pops é a história do blues e do jazz desde o começo do século 20. Nascido no primeiro ano do século, em Nova Orleans, ele é um daqueles artistas que superaram a infância miserável e uma condenação penal como menor infrator para ganhar o mundo como incontestável e incontestado porta-bandeira do gênero que ajudou a criar e do qual permanece como maior protagonista.

Pops, o apelido, veio dos amigos. Para os fãs, ele era Satchmo (em inglês, forma reduzida de “satchelmouth”, boca de saco), por conta de sua expressão facial nos solos prolongados de voz e trompete. Quatro décadas depois de sua morte, o trompetista, cantor, compositor, ator e chefe de orquestra Louis Armstrong (1901-1971) encontrou no jornalista Terry Teachout um biógrafo que não se opõe à mitologia criada em torno do artista. Tampouco a repete.













No alto, Louis Daniel Armstrong em 1970,
fotografado durante seu último show, na
Sala Imperial do Waldorf Astoria, Nova York.
Acima, Louis aos 17 anos, em março de
1918, quando se casou com Daisy Parker.
Louis trabalhava carregando carvão em
uma fábrica em Nova Orleans e, à noite,
frequentava os bares de Storyville, na zona
da prostituição da cidade, para ouvir os
músicos e, com atenção, aprender as canções
e aprender a tocar os instrumentos. Em 1922,
com o fechamento de Storyville, decidiu
tentar a sorte como tocador de trompete em
Chicago, a convite de Joe "King" Oliver,
que na época era um músico de sucesso.
Em pouco tempo, Louis também se tornaria
referência no  mundo do jazz e do blues.


Também acima, Louis ensinando garotos
a tocar trompete na vizinhança da casa onde
morou com a esposa Lucille Wilson em Nova York,
de 1943 até sua morte em 1971; e um flagrante
do escritor Julio Cortázar diante do Olympia de
Paris, em fotografia de Antonio Gálvez em
abril de 1962, antes de um dos lendários
concertos de Satchmo. Abaixo, o músico
em casa, no seu quarto de ensaios, em
fotografia de 1958 de Charles Graham;
dois retratos de Louis na célebre sessão
de fotos de 1966 por Philippe Halsman;
Louis fotografado por William P. Gottlieb;
Louis no estúdio da NBC em 1967, fotografado
por David RedfernLouis em 1956, em
cenas do documentário Satchmo the Great, com
narração e direção de Edward R. Murrow, que
foi lançado nos cinemas brasileiros com o título
O Embaixador do Jazz. Também abaixo, em
visita ao Vale das Pirâmidesno Egito, em 1961,
Louis toca trompete em homenagem a Lucille,
que foi sua quarta esposa, com quem ficou
casado de 1942 até sua morte em 1971











Em “Pops: A Vida de Louis Armstrong”, lançamento Larousse do Brasil, o biógrafo vai além do lugar-comum. Repórter de cultura do “Wall Street Journal” antes de seu livro virar best-seller internacional, Teachout é conhecido do público de jazz como produtor e autor dos textos de encartes de CDs de nomes de prestígio como Karrin Allyson, Diana Krall e a brasileira Luciana Souza, entre outros.

Em 2009, Teachout recebeu prêmios e seu livro "Pops" entrou nas listas de melhores do ano do “Washington Post”, “The New York Times” e “The Economist”. Louis Armstrong era um homem muito consciente da importância que tinha na história da arte americana”, registra Teachout, que não poupa o leitor de revelações surpreendentes, além de enumerar dos primeiros tempos do artista tocando corneta e trompete à trajetória do sucesso, destacando o poder de Louis como protagonista maior do jazz clássico.






















Munido de um arsenal de entrevistas, publicações de época, fotos inéditas e registros audiovisuais, o biógrafo reconstitui o entorno no qual a presença calorosa do mito, seu “swing”, sua voz grave e rouca, suas improvisações geniais confrontavam a tradicional submissão do negro na cena cultural e política dos Estados Unidos – e do mundo inteiro, por extensão.

Em “Pops”, Louis surge introspectivo, contraditório, quase sempre muito amável. Durante mais de meio século inventou canções que se tornariam standards, tocou inúmeros solos com inúmeras bandas, fez parcerias antológicas com outros gigantes do jazz como Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Duke Ellington, participou de filmes, programas de rádio e TV e enfrentou críticas de ativistas negros por não militar no movimento dos direitos civis. “Ele trabalhou muito e morreu feliz, dormindo em casa, em Nova York”, destaca Teachout.















Fruto da miséria social, mas também de um fervilhante caldeirão musical, a saga do genial Louis Armstrong se espraia em detalhes minuciosos em “Pops”, biografia assinada por Terry Teachout. Infância miserável, adolescência difícil como cantor de rua, depois trompetista de cabaré. Com o fechamento do “bairro de tolerância” Storyville, em 1917, Louis fica sem emprego e segue à deriva para Chicago com outros negros adeptos da novidade do jazz. Acaba fazendo história.

Lançado por King Oliver em 1922, Louis foi contratado por Fletcher Henderson em 1924. Em 1925 funda seu próprio conjunto, o Hot Five, passa a gravar discos e, a partir daí, sua fama não parou de crescer. Na biografia, Teachout destaca que Louis Armstrong cresceu e chegou à juventude ao mesmo tempo em que o jazz começava a ganhar forma.









Armstrong não inventou o jazz, não foi sua primeira figura importante, e não é correto afirmar que foi o primeiro grande solista do gênero”, decreta no prólogo o autor, sem ignorar que Louis foi o mais popular e influente dos primeiros solistas de jazz. As inovações rítmicas e melódicas, a voz granulada e repleta de modulações, assim como o expressivo sorriso e o impagável senso de humor também têm destaque no livro.

Teachout lembra que, no auge da forma, em 1950, as performances de Louis tomam a forma do virtuosismo dos músicos eruditos, mas transformadas por largos vibratos de complexas passagens de conjunto, mudanças súbitas de tempo, alterações harmônicas inesperadas, um senso de ritmo irresistível.




























Louis Armstrong e suas célebres parcerias
com outros gigantes do jazz: acima,
ao lado das duas maiores cantoras do jazz,
com Billie Holiday e com Ella Fitzgerald;
com Duke Ellington em Paris, em 1960,
e no estúdio, em 1961, quando gravaram
dois álbuns e seguiram juntos em uma
turnê internacional; e em 1970, fotografado
por Jack Bradley no estúdio com Miles Davis.

Abaixo, no camarim em Nova York, em
1958, fotografado pelo amigo Dennis Stock;
e Louis nos estúdios da NBC, em Nova York,
em 1967, em fotografias de David Redfern











Os dotes literários do músico também são destacados: na sala de casa ou nos camarins, ele batucou em sua máquina de escrever dois livros de memórias, vários manuscritos biográficos, artigos para revistas e jornais e extensas cartas, além de 650 fitas com seus próprios depoimentos — gravações a que Teachout teve acesso e usadas pela primeira vez por um biógrafo.

Pops” também revela casos hilariantes e outros dramáticos – quiproquós decorrentes do apreço de Louis por marijuana, os impedimentos do preconceito racial, empresários metidos com a máfia negociando seus contratos, represálias de gângsteres, embates públicos com jazzistas como Dizzie Gillespie e Miles Davis e com autoridades como o então presidente dos EUA Dwight Eisenhower, num caso que marcou época e mostrou um Louis Armstrong corajoso, libertário e consciente de seus direitos. 

Teachout investiga os motivos de cada atitude arriscada de Louis – que fez da música sua tábua de salvação, capaz de tirá-lo da sarjeta onde nasceu, em Nova Orleans, e fazer dele uma celebridade mundial que na última década de vida bateu todos os recordes de vendagem de discos e viajou pelos cinco continentes em shows que arrastavam multidões e eram celebrados pelos críticos mais renitentes.







.





Armstrong preferiu a arte à política


Diversas biografias de Louis Armstrong já foram escritas, motivo pelo qual o esforço de Teachout correria o risco de cair em redundância. Correria, não fosse o pulo do gato: jornalista dos bons e músico treinado, ele dedicou anos às pesquisas sobre o mestre do jazz e cita passagens sobre Louis em uma centena de livros e de entrevistas. Diz que ouviu e ouviu de novo todas as 650 fitas gravadas pelo próprio músico, nas quais Louis se revela por inteiro.

Louis gravou todas estas fitas justamente para salvar para a posteridade tudo o que podia de si”, destaca Teachout, que fez uma decupagem inspirada da enorme quantidade de material que dispunha para escrever o que seria recebido como um dos melhores livros de 2009 na lista do jornal The New York TimesO biógrafo também aponta o orgulho que o músico sentia por ter visitado todos os continentes e chega a listar algumas das performances memoráveis ou inusitadas que ele realizou em palcos célebres e quadras de esportes pelos quatro cantos do planeta. Mas não menciona o Brasil entre os roteiros de shows de Louis.











Louis Armstrong em terras brasileiras em 1957:
acima, ao lado do mestre do choro Pixinguinha.
Abaixo, com Dorival Caymmi; no encontro com
o presidente Juscelino Kubitschek (fotografado
para a revista O Cruzeiro) e, entre outros
convidados e músicos, com Dorival Caymmi,
Herivelto Martins, Fernando LoboLamartine Babo,
Pixinguinha, Benedito LacerdaAtaulfo Alves.

Também abaixo, nos encontros com Elizeth Cardoso
e com Ângela Maria, coroada "rainha do rádio" no
ano de 1957; com Grande Otelo, Juscelino,
Pixinguinha e outros convidados; cantando
acompanhado por Sivucadurante o almoço
oferecido pelo presidente JK no Palácio das
Laranjeiras, no Rio de Janeiro; e durante uma
apresentação para convidados na Embaixada
dos Estados Unidos, também no Rio de Janeiro































Em sua viagem em 1957 às terras brasileiras, ele fez questão de encontrar alguns dos nossos mais importantes cantores, compositores e artistas tradicionais, e posou para fotos ao lado de nomes como Pixinguinha, Grande Otelo, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, Elizeth Cardoso, Ângela Maria (que tinha acabado de ser eleita “rainha do rádio”) e até do presidente Juscelino Kubitschek. No Brasil, Louis se apresentou em uma série de shows com sua banda All Stars. Sua apresentação em São Paulo, que reuniu uma multidão no ginásio do Ibirapuera, fez história: foi um dos primeiros shows transmitidos ao vivo pela TV Record.

Seguindo a trajetória de sucessos do artista, o livro de Terry Teachout consegue colocar o leitor no cotidiano de Louis – percebendo e comentando, de forma sutil, por que o músico negro, embora tenha em certo momento levantado a voz para o presidente Eisenhower pelo descaso em implementar medidas antirracistas, preferiu sempre, em sua longa trajetória, a expressão artística à expressão na política.













Sua maneira de cantar era uma extensão da maneira de tocar: o fraseado é o mesmo e semelhantes são o balanço e o sentido de tempo”, conclui Teachout. O final de “Pops” é poético, feliz, com o autor recordando sua própria emoção com a notícia da morte do artista. Faz lembrar o final de “Louis, Enormíssimo Cronópio”, o conto de Cortázar, quando o narrador na plateia em Paris percebe que o concerto acabou mas a sala continua cheia – com todos perdidos no seu sonho.

O fantástico show de Satchmo, descrito e comentado de forma poética nas palavras iluminadas de Cortázar: “Montões de cronópios que procuram lentamente e sem vontade a saída, cada um com seu sonho que continua, e no centro do sonho de cada um Louis pequenininho soprando e cantando”. Louis morreu no dia 6 de julho de 1971, em Nova York.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Louis entre os cronópios. In: Blog Semióticas, 11 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/ha-um-conto-de-cortazar-publicado-em.html (acessado em .../.../…).










Louis entre os cronópios: no alto,
Satchmo e sua Big Band com Billie Holiday
em uma sequência de New Orleans, filme
de 1947. Acima, o artista homenageado em
pintura fauvista do russo Leonid Afremov




Outras páginas de Semióticas