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18 de agosto de 2012

Unanimidade para Nelson Rodrigues





O aprofundamento da intuição leva naturalmente o indivíduo um 
grande afastamento da realidade palpável, de modo a tornar-se 
completo enigma até para as pessoas mais chegadas. Se for 
artista, apresentará na sua arte coisas extraordinárias, estranhas 
ao mundo, reluzentes em todas as cores, ao mesmo tempo 
importantes e banais, belas e grotescas, sublimes e ridículas. 

–– Carl Gustav Jung, “Tipos psicológicos” (1921).  


Autor de clássicos absolutos de nossa dramaturgia como "Vestido de Noiva", "O Beijo no Asfalto" e "Toda Nudez Será Castigada", Nelson Rodrigues (1912-1980), aniversariante do dia 23 de agosto, é uma unanimidade como maior nome do teatro moderno brasileiro e maior cronista brasileiro, seja na crônica de costumes, literária, ou na crônica esportiva, além de ter passado à história como referência em sua atuação como escritor, jornalista, romancista, contista e um dos maiores polemistas do Brasil do século 20. Um destaque que, por certo, desmente ou, no mínimo, abre exceções para um dos muitos bordões consagrados pelo próprio Nelson, que gostava de repetir: “Não sou um escritor unânime, porque toda unanimidade é burrice”.

Além de seu lugar de destaque no panteão da dramaturgia e como cronista, foi também consagrado como autor de frases que ganharam o imaginário nacional e como ficcionista, especialmente com suas histórias populares publicadas primeiro na imprensa, a exemplo das centenas de contos e crônicas reunidos sob os títulos "Confissões" e "A Vida como Ela É", ou em romances como "Asfalto Selvagem", “Meu Destino é Pecar” e "O Casamento", alguns deles publicados sob os pseudônimos femininos Suzana Flag e Myrna. Sobre a trajetória de Nelson Rodrigues, também jornalista nascido em uma família de jornalistas, muito já foi escrito – em especial por Ruy Castro, autor da polêmica biografia "O Anjo Pornográfico", um livro recordista de vendas, publicado em 1992 pela Companhia das Letras. 

Ao relatar a vida do jornalista e escritor – que nasceu em Recife, em 1912, quinto de 14 irmãos, e mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1916 – Ruy Castro revela algumas das célebres tragédias que pontuaram a trajetória de Nelson e uma sucessão espantosa de ocorrências dramáticas, com muito mais risos e lágrimas do que qualquer uma das conhecidas histórias burlescas do autor, todas recheadas com as mais variadas obsessões e compulsões sobre sexo e morte. Nelson Rodrigues teve uma biografia que é, no mínimo, incomum. Nasceu em uma família de jornalistas e seu pai, Mário Rodrigues, fundou na década de 1920 o jornal carioca "A Manhã". Seu irmão, Mário Filho, também celebrado como um dos principais cronistas esportivos do Brasil, foi homenageado com a criação do estádio do Maracanã.

















Desde a infância o futuro cronista e dramaturgo, como ele mesmo disse, certa vez, viu o mundo pelo "buraco da fechadura". Sua infância e adolescência foram marcadas por episódios bizarros: entre eles, a morte de um dos irmãos, Roberto, assassinado na redação do jornal. Com a Revolução de 1930, o jornal da família é embargado. Nos anos seguintes, o jovem Nelson passa a escrever crônicas policiais e sobre futebol, depois investe na criação de peças teatrais. Tudo, segundo ele mesmo, tão somente para "pagar o leite das crianças".

O próprio Nelson Rodrigues demorou anos para percebeu o valor real de suas crônicas e peças. Seu centenário, em 23 de agosto, o traz de volta à mídia e à cena cultural em comemorações em pompa e circunstância, com séries de programas na TV, novas montagens de sua obra nos palcos do eixo Rio-São Paulo e um programa da Funarte para tradução e edição da íntegra de suas 17 peças para o espanhol e o inglês. Há também uma nova versão nos cinemas de “Bonitinha, Mas Ordinária”, com direção de Moacyr Góes e com Leandra Leal e João Miguel no elenco, uma grande exposição itinerante sobre a carreira do dramaturgo nas sedes do Instituto Itaú Cultural e a reformulação do site oficial (clique aqui para visitar), que passará a ter em destaque o tópico “Nelson por Ele Mesmo”, com trechos de entrevistas e crônicas, a maioria ainda inédita em livro.

No cenário literário, entretanto, há controvérsias. Sônia Rodrigues, filha do escritor e gestora do site oficial, prepara o lançamento da autobiografia póstuma “Nelson Rodrigues por Ele Mesmo” (Nova Fronteira). No livro, a voz do escritor surge em trechos de entrevistas e relatos pessoais em que Nelson cada uma de suas peças e apresenta suas ideias personalíssimas sobre o Brasil e os brasileiros, enquanto investe contra o divórcio, contra a imoralidade e o que mais o incomodava na sociedade.










Nelson Rodrigues Filho: livro sobre a relação
com o pai nos tempos da ditadura militar.
Abaixo, Luís Augusto Fischer, autor de
Inteligência com dor, livro que aborda
as crônicas e a vertente ensaística na
extensa produção de Nelson Rodrigues








Nelsinho, outro filho, também prepara um livro: "Nelson Rodrigues – Pai e filho", sobre a relação entre eles, em especial durante a ditadura militar, quando o pai conservador viveu agoniado com o filho esquerdista mantido na prisão pelos militares por quase oito anos. Outros lançamentos e relançamentos, entretanto, ainda não foram confirmados, por conta principalmente de desentendimentos entre os herdeiros e a editora Nova Fronteira, que atualmente detém os direitos de publicação.  

 

Nelson, o Pensador



Nelson Rodrigues teve seis filhos: Joffre (morto em 2010) e Nelsinho, de seu casamento com Elza Bretanha; Maria Lúcia, Sonia e Paulo César, do casamento com Yolanda; e Daniela, com Lúcia. Hoje, os herdeiros, que já viveram uma trajetória de muitos impasses decorrentes de brigas sérias, até conseguem se reunir, mas há divergências sobre a cessão de direitos autorais para novas montagens, reedições ou publicação dos textos inéditos. Mais de mil crônicas de Nelson ainda não foram publicadas em livro. 
 





 
Entre tantas homenagens, há também as novas facetas que vêm reforçar o mito do dramaturgo e cronista de primeira grandeza. Uma delas foi proposta e defendida por um especialista: segundo o escritor e jornalista Luís Augusto Fischer, professor de literatura na UFRGS e doutor em Nelson Rodrigues, as crônicas do autor de "Vestido de Noiva" provam que ele foi, além de tudo, um dos grandes pensadores do Brasil.

Em seu mais recente livro, "Inteligência com Dor - Nelson Rodrigues Ensaísta", lançamento da editora gaúcha Arquipélago, Fischer analisa as crônicas do autor reunidas sob o título "Confissões" (publicadas em livros como "O Óbvio Ululante", "A Cabra Vadia", "O Reacionário", "A Menina Sem Estrela" e "O Remador de Ben-Hur", entre outros) para defender a tese: Nelson Rodrigues não era apenas cronista, mas também um pensador e ensaísta de primeira grandeza.

Para Fischer, o autor de “Toda Nudez Será Castigada” marcou época no Brasil do século 20 como uma espécie de Michel de Montaigne (1533-1592), em referência ao escritor francês considerado o fundador do gênero ensaio e filósofo das instituições e dos costumes sociais. Autor da antologia em tom de ironia "Dicionário de Porto-Alegrês", dos ensaios "Literatura Brasileira – Modos de Usar" e "Machado e Borges", além da premiada novela "Quatro Negros", Fischer se debruçou sobre as crônicas de Nelson Rodrigues com a intenção de estudá-las dentro da tradição do ensaio. Sua tese, controversa para alguns, foi defendida no doutorado da UFRGS e agora ganhou nova versão para o formato livro.







Montaigne do Brasil



O pai da ideia do estudo, revela Fischer, foi o jornalista, roteirista e professor de cinema Aníbal Damasceno Ferreira. "Ele sempre dizia que Nelson é o Montaigne do Brasil e também escreveu um artigo importante defendendo esta proposição. O artigo foi publicado em 1986 aí em Belo Horizonte, no Suplemento Literário do Minas Gerais", destaca. Fischer investe a fundo na ideia – e localiza nos textos em questão características marcantes dos melhores ensaístas, além de "acertar os relógios da crítica" diante de qualidades das crônicas-ensaios de Nelson Rodrigues como a intencionalidade quase profética de convicções e a incorporação da linguagem mais coloquial à literatura brasileira.

Luís Augusto Fischer argumenta que os textos de Nelson Rodrigues, lidos hoje, têm sua permanência assegurada por sua agudeza, densidade, coragem e maestria no trato com a linguagem. A tese de Fischer é corajosa, criativa e fundamentada em expressivo aparato teórico. Mas não há como negar que ela também soa contraditória no seu argumento principal – basta lembrar que as crônicas de Nelson, revalorizadas depois que Ruy Castro organizou os textos em vários volumes, constituem a face menos celebrada do autor.












Foi através das crônicas, por exemplo, que Nelson Rodrigues escreveu ironias contra a organização das minorias pelos direitos civis e contra os movimentos de esquerda, em plena Ditadura Militar. Por essas e outras, acabou ficando marcado pelo título de reacionário. Ainda assim, mesmo que a personalidade de Nelson sempre se destaque pela polêmica e cercada pelas muitas contradições, é difícil ficar indiferente diante do estudo que Fischer apresenta.

Para o autor de “Inteligência com Dor”, que teve primeira edição em 2009, o ensaio de Nelson Rodrigues, como também o ensaio em geral, pode ser compreendido como um canto de cisne: majestoso, altivo e desesperado. "Ele foi sim um reacionário, por vezes obtuso, medonho ou até risível, mas também era rigoroso e cruel consigo mesmo", argumenta Fischer, destacando que Nelson, um escritor realista em plena vigência do modernismo, encerra um projeto construtivista moderno na literatura brasileira.






Nelsinho Filho e Nelson Rodrigues, o filho
de esquerda e o pai que chegou a apoiar a
ditadura militar. Abaixo, três amigos cronistas
em fotografia da década de 1950: Vinicius de
Moraes, Nelson Rodrigues e Otto Lara Rezende






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"Ele vem completar algo que teve início com os parnasianos, que prosseguiu com João do Rio, que alcançou os modernistas e que teve seu desfecho com os tropicalistas, contemporâneos das melhores crônicas de Nelson. O mais importante mesmo é reconhecer, diante do conjunto expressivo de suas crônicas, a obra maiúscula que Nelson produziu", conclui Fischer. "Ele definitivamente introduziu um patamar novo do ensaio no Brasil, e também fora daqui, por certo, quando sua obra for traduzida. É o trabalho de um mestre, um escritor de absoluto primeiro plano nas letras de língua portuguesa, ao lado dos maiores", completa.




Sapiência em cena



Enquanto Luís Augusto Fischer localiza em Nelson Rodrigues o pensador e ensaísta, o veterano Jacó Guinsburg, mestre do teatro no Brasil, também destaca que a obra de Nelson é singular, especialmente suas tragédias cariocas, elevando o autor, no último século, à condição de maior contribuição brasileira ao teatro universal. “Nelson é singular e construiu um lugar personalíssimo na dramaturgia que se faz no Brasil”, aponta em entrevista por telefone o crítico, ensaísta e mentor da Editora Perspectiva. 

















 Vida e obra: no alto, o casal de noivos
Nelson Rodrigues e Elza Bretanha
 em 1940, e cenas da primeira montagem
de "Vestido de Noiva", apresentada em
1943, no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, com o grupo Os Comediantes
contando com cenografia e figurinos
de Tomás Santa Rosa, sob direção de
Zbigniew Ziembinski (abaixo, em foto
em 1966, durante os ensaios da peça
"O Santo Inquérito", de Dias Gomes), 
diretor, ator e comediante polonês que
fugiu da Segunda Guerra na Europa e
veio em 1941 para o Brasil, onde provocou
revoluções no teatro, no cinema e na TV.

Também abaixo, Nelson Rodrigues com
Fernanda Montenegro em 1961; e
Jacó Guinsburg, nascido na Bessarábia,
atual Moldávia, e naturalizado brasileiro
desde 1924, quando chegou ao Brasil
com os pais imigrantes, aos 3 anos de idade.
Guinsburg se consagrou como referência por
seu trabalho como tradutor, jornalista,
professor, crítico de teatro e fundador
da Editora Perspectiva













Extremamente lúcido e bem-humorado, aos 92 anos, Jacó Guinsburg, que foi homenageado na última edição do Prêmio Shell, pela contribuição ao pensamento crítico do teatro no Brasil, esteve recentemente em Belo Horizonte como convidado especial de um evento que reuniu profissionais e pesquisadores de teatro de vários países, o Ecum – Encontro do Centro Internacional de Pesquisa sobre a Formação em Artes Cênicas. Além do elogio à permanência de Nelson Rodrigues em cena, Guinsburg também destacou alguns dos requisitos que considera essenciais para a qualidade e a atualidade do teatro.

"O primeiro requisito para qualquer dedicação ao teatro tem que ser, em primeiro lugar, gostar de teatro", adverte. "Teatro é ação e reação. É a menos permanente das artes e a mais intensa, porque depende da relação presencial. O teatro é a arte do aqui e do agora, representado a partir do corpo do ator", completa o sábio veterano que nasceu na Bessarábia (hoje território da Moldávia, no Leste Europeu) e emigrou para o Brasil com os pais em 1924, aos 3 anos de idade.

Nas décadas seguintes, Guinsburg ganharia destaque como o principal teórico do teatro brasileiro, além de tradutor e editor de mais de uma centena de tratados de teoria e história das artes e do teatro em particular. Autor de dezenas de grandes clássicos sobre as artes cênicas, como "Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou", "Semiologia do Teatro", "Dicionário do Teatro Brasileiro" e obras sobre Diderot, Lessing e Nietzsche, entre outros, Guinsburg também é sempre destacado como fundador e editor da Perspectiva, uma das mais respeitadas editoras do Brasil, voltada para obras de vanguarda e teoria. 








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Grandes momentos de Nelson Rodrigues
no cinema: acima, cenas de A Falecida,
filme de 1965 de Leon Hirszman com
Fernanda Montenegro 
e Paulo Gracindo
no elenco, com roteiro assinado por
Leon Hirszman e Eduardo Coutinho.

Abaixo, o cartaz original e cenas de
Toda Nudez 
Será Castigada, filme
de 1973 com 
Darlene Glória e
Paulo Porto à frente do elenco, com

roteiro e direção de Arnaldo Jabor
















Recordes de adaptações



Jacó Guinsburg recorda na entrevista que sua maior aproximação com a arte dramática e seu ensino começou em 1964, na Escola de Arte Dramática (EAD), onde ministrou a cadeira de crítica teatral e, posteriormente, em 1967, no então recém-criado Departamento de Teatro, mais tarde de Artes Cênicas, da Escola de Comunicações e Artes da USP. Sob este novo prisma, passou a concentrar seus estudos em teoria e estética teatral e nos grandes clássicos do teatro russo, judeu e iídiche, além da dedicação ao chamado teatro do absurdo.

"Fico extremamente honrado e feliz com a homenagem do Ecum, que apresentou uma curadoria impecável sobre o panorama do teatro russo", destaca Guinsburg, que reconhece qualidades no "caminho trôpego" que o teatro brasileiro cultiva desde tempos remotos. "A grande contribuição do teatro do Brasil para o mundo são alguns momentos que refletiram genialidade e ousadia e que têm alguns registros importantes de reconhecimento no exterior”, explica.
















Nelson Rodrigues no cinema: acima,
o escritor com Yara Amaral, Sonia Braga e
Neville de Almeida, durante as filmagens de
A Dama do Lotação (1978), e Nelson com
Neville e Sonia Braga na primeira entrevista
coletiva para o lançamento do filme. Adaptação
de uma crônica de Nelson Rodrigues, com
roteiro e direção de Neville de Almeida
e com Sonia Braga como protagonista,
o filme tornou-se um dos campeões
de bilheteria do cinema brasileiro.

Abaixo, Nelson flagrado em um passeio
no calçadão da praia de Copacabana,
em 1979; na ativa, com sua inseparável
máquina de datilografia na década de 1970;
e o túmulo do escritor no Cemitério São
João Batista, no Rio de Janeiro












A extensa obra de Nelson Rodrigues também conta com um número recorde de adaptações para o cinema e a TV, algumas com sucesso raro e imbatível de público e crítica. Em um levantamento que fiz nos arquivos da Embrafilme, verifiquei que há registros de 22 filmes que são adaptações de obras de Nelson Rodrigues, realizados no período de 1950 a 2009. Mas é na cena do teatro que o universo de Nelson se revela como uma revolução na crônica de costumes e na série inédita de avanços que incorpora à carpintaria das artes cênicas, conforme destaca Guinsburg. Entre os grandes momentos de ousadia do teatro brasileiro, ele enumera diversos aspectos que percorrem a obra completa de Nelson Rodrigues, seguindo os mesmos critérios do crítico Sábato Magaldi, que agrupou as 17 peças do autor em três categorias: peças psicológicas, peças míticas e tragédias cariocas.

Não há como negar, reconhece Guinsburg, que Nelson Rodrigues mudou radicalmente a trajetória do teatro no Brasil e criou referências que ganharam destaque também no plano internacional, como no caso da montagem ímpar e revolucionária para “Vestido de Noiva”, com direção de Zibgniew Ziembinski (1908–1978), cenários e figurinos originais de Tomás Santa Rosa (1909–1956) e elenco do grupo Os Comediantes, que estreou entre aplausos e vaias em 28 de dezembro de 1943 e inaugurou em grande estilo o teatro moderno brasileiro. “Nelson Rodrigues é um caso muito especial”, completa Guinsburg. “Mas o teatro é sempre singular e nem sempre a melhor qualidade tem a repercussão que merece. Igual a tudo na vida, afinal de contas..."


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Unanimidade para Nelson Rodrigues. In: Blog Semióticas, 18 de agosto de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/08/unanimidade-para-nelson-rodrigues.html acessado em .../.../…).
















5 de março de 2012

Heleno e outros craques






           Futebol é o ópio do povo. E também é o narcotráfico da mídia. 

    –– Millôr Fernandes em “A Bíblia do Caos” (1994).  
     


A história é antiga: jogador de futebol de origem humilde consegue fama e fortuna em muito pouco tempo e passa a ser um "craque problema" que ruma a passos largos para a decadência e o fundo do poço depois de se envolver em sucessivos escândalos e casos de polícia. Da ascensão vertiginosa ao martírio galopante, a história do jogador de futebol que levou ao delírio tantos torcedores e tem um final dos mais trágicos se repete no Brasil desde as primeiras décadas do século 20 – conforme destaca a biografia "Nunca Houve um Jogador como Heleno" (Ediouro/Geração Conteúdo), do jornalista carioca Marcos Eduardo Novaes.

O livro de Novaes serve de inspiração ao filme de José Henrique Fonseca, que tem roteiro do diretor em parceria com Felipe Bragança e Fernando Castets. “Heleno – O príncipe maldito” traz Rodrigo Santoro na pele do gênio temperamental e boêmio e estreia no Brasil depois de receber prêmios em festivais de cinema da América Latina em Havana, Lima e Cartagena. Com cenários das décadas de 1940 e 1950 e fotografado em preto e branco, o filme de José Henrique, que é filho do escritor Rubem Fonseca, apresenta a trajetória dramática do craque artilheiro, galã e mulherengo na era de ouro do Rio de Janeiro, trazendo no elenco, entre outros, Alinne Moraes, Angie Cepeda, Erom Cordeiro, Othon Bastos e Herson Capri.

Mineiro de São João Nepomuceno, Heleno de Freitas (1920-1959) é um dos personagens inaugurais na galeria brasileira dos craques problemáticos, segundo o biógrafo Marcos Eduardo Novaes. O título do livro, ele explica, faz uma referência ao slogan de lançamento de filme “Gilda” (1946), com Rita Hayworth – “nunca houve uma mulher como Gilda”. Porque Gilda, como recorda o biógrafo, foi um apelido nefasto muito usado pelas torcidas adversárias que quase sempre tirava do sério o jogador: Heleno explodia e partia para a briga sempre que era provocado e chamado de Gilda. 









 
Bonito, charmoso e presença refinada nos salões elegantes, o mais mítico centroavante que já passou pelo Botafogo e pela Seleção Brasileira é tido por muitos como um dos maiores craques de todos os tempos. Foi o protagonista de uma trajetória marcada por grandes vitórias, mas também por muitos escândalos. O final de Heleno é melancólico: endividado, viciado em lança-perfume e diagnosticado com sífilis em seu grau mais avançado (quando a doença atinge o cérebro), abandonou o futebol e passou o resto da vida internado em um sanatório em Barbacena, Minas Gerais, até morrer, em 1959, considerado louco.

"Certamente, houve outros antes do Heleno de Freitas. Apenas a imprensa brasileira, que não tinha tradição de reportagem, não cobriu nem registrou os primeiros dramas do nosso futebol" – avalia em entrevista por telefone o jornalista e escritor Ruy Castro, que recebeu alta hospitalar no final de fevereiro, depois de sofrer uma crise convulsiva. "Mas um craque problema", destaca Ruy Castro, “não é mais frequente no Brasil do que em outros países”.















A ficção e a vida real: no alto, Rodrigo Santoro
em cena do filme 
Heleno e fotografado durante
as filmagens com 
Alinne Moraes. Acima e

abaixo, o craque Heleno fotografado nas ruas

do Rio de Janeiro e durante os treinos com o
Botafogo na década de 1940; e na pose para

a fotografia oficial com o time em 1945




















"Será que temos tantos craques-problema aqui? Não sei não. A Inglaterra teve, por exemplo, o George Best, que foi o Garrincha deles, lembra? Também morreu de birita. Mas, realmente, no Brasil, a coisa está passando dos limites", aponta Castro. "O inacreditável dinheiro que entra hoje no bolso de certos jogadores e o estilo de vida que eles passam a levar tendem a criar os tais problemas. Acho que nem o Renato Gaúcho e o Romário, nos anos 1990, tinham tanto acesso a mulheres como os jogadores de hoje".

Ruy Castro, mineiro de Caratinga e autor de biografias especialíssimas como "Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha", lançada em 1995 (além de "O Anjo Pornográfico", sobre o dramaturgo e cronista esportivo Nelson Rodrigues, "Carmen", sobre Carmen Miranda, e livros de reconstituição histórica como "Chega de Saudade", sobre a Bossa Nova, entre outros), também considera que as origens humildes, assim como a infância e a juventude marcadas pela pobreza, podem sim ser apontadas como causas determinantes para atitudes de escândalo e até mesmo casos de polícia.








Heleno e outros craques: acima,
outro herói do Botafogo na pátria
do futebol, Mané Garrincha (1933-1983).
Abaixo, cena de Garrincha, Alegria do Povo,
filme de 1962 dirigido por Joaquim Pedro
de Andrade, e Garrincha em campo
pela Seleção Brasileira em 1962











"Sim, é possível apontar essas causas determinantes. Mas não se esqueça de que há muito mais corrupção entre os ricos que entre os pobres", alerta Ruy Castro, antes de acrescentar que o caso policial envolvendo o goleiro Bruno do Flamengo pode ser considerado um dos casos mais graves, já registrados no Brasil, envolvendo um craque do futebol. "Sem nenhuma dúvida, é um dos mais graves. Mas, se Bruno fosse goleiro do Arapiraca, do Botucatu ou do Cascavel, e não do Flamengo, teria tido tanto destaque e seria capa da 'Veja'?", questiona.

Mas nem todo atleta do futebol brasileiro mergulha em excessos e até no crime: também há exceções. Dois exemplos sempre lembrados pela atuação política contra a censura e a repressão da ditadura militar no Brasil são Sócrates, pelo Corinthians, e Reinaldo, pelo Atlético Mineiro. No final da década de 1970, Reinaldo foi um dos responsáveis por denunciar um programa internacional de tortura e perseguição aos opositores, a Operação Condor, comandada pelos generais das ditaduras latino-americanas; e Sócrates, no começo da década de 1980, foi um dos idealizadores do movimento Democracia Corinthiana, o maior movimento ideológico do futebol brasileiro que, entre outras demandas, atuou pela volta das eleições diretas e pelo fim do regime militar.



Recados da bola



Para o também jornalista e escritor Jorge Vasconcellos, autor do livro "Recados da Bola" (Cosac Naify), que reúne depoimentos de 12 mestres do futebol brasileiro: Sócrates, Rivelino, o goleiro Barbosa, Didi, Zito, Nilton Santos, Djalma Santos, Zizinho, Jair Rosa Pinto, Ademir Menezes, Domingos da Guia e Bellini), casos de craques como Heleno de Freitas e Bruno do Flamengo, entre tantos outros no Brasil e em outros países, talvez possam ser considerados paradigmas.

"São exemplos famosos em suas épocas", analisa Vasconcellos. "Na década de 1930, por exemplo, vários jogadores já desfrutavam de grande fama e prestígio, e não deixavam de 'aprontar', como Leônidas da Silva, que, jogando no Peñarol do Uruguai, era criticado pela torcida por gostar de frequentar os cabarés e as atrações da noite local. Mas Leônidas nunca foi considerado um exemplo clássico de 'craque problema'. Ao contrário, é sempre lembrado sempre como um gigante do futebol brasileiro, o que de fato ele foi".








Dois heróis da velha guarda: no alto,
Leônidas da Silva (1913-2004), na época
conhecido por Diamante Negro, tricampeão
 pelo Botafogo e inventor do "gol de bicicleta";
acima, Didi (1928-2001), o Mister Football,
inventor da jogada que ficaria conhecida
como "folha seca". Didi foi eleito
o melhor do mundo na Copa de 1958
e Pelé foi o melhor jogador jovem.

Abaixo, a seleção brasileira na estação de

Poços de Caldas (MG), esperando o trem,

dias antes de embarcar para ser a campeã

na Copa do Mundo na Suécia, em 1958.

A partir da esquerda, Nilton Santos, Dino Sani,

Gilmar, Bellini, Garrincha, Moacir, Dida, Joel,

Mazolla, Zagalo e Pelé. Também abaixo, Vavá

e Garrincha no primeiro gol da partida final

contra a Suécia; e Leônidas no seu célebre gol

de bicicleta contra o Juventus na década de 1940





      


      






Emoldurado por dois grandes traumas nacionais, as derrotas nas Copas de 1950 e 1982, o livro de Jorge Vasconcellos traz conversas com alguns dos craques que fizeram história no futebol brasileiro. Nos depoimentos, comandados por Jorge Vasconcellos e por Claudiney Ferreira, o leitor fica sabendo como Didi inventou a folha-seca; o porquê de Zizinho preferir passar a bola em vez de fazer o gol e acompanha os bastidores do trágico dia da final da Copa do Mundo do Brasil, em pleno Maracanã, contra o Uruguai em 1950.

Vasconcellos também apresenta em detalhes no livro histórias saborosas sobre as aventuras italianas de Sócrates; Jair Rosa Pinto ensinando Pelé a se defender dos zagueiros violentos e a criação da Democracia Corintiana, entre outros casos e escândalos pontuais que marcaram época no decorrer do século 20 e construíram a mítica do esporte das multidões em todo o Brasil.






Comoção nacional em 1950: o gol
do adversário silenciou o Maracanã 
na final da Copa do Mundo, que teve a
situação até hoje pouco esclarecida sobre a
não convocação do craque Heleno de Freitas.
Abaixo, a seleção brasileira na Copa de 1950,
fotografada minutos antes da final
dramática contra a seleção do Uruguai 










Sobre a trajetória dramática de vitórias e derrotas de Heleno de Freitas e de outros "craques problema", Vasconcellos considera que, diante da enorme população mundial que pratica o futebol, de modo amador ou profissionalmente, esse tipo de escândalo é, na verdade, uma minoria absoluta. "Está longe de ser privilégio nosso. Fiquemos somente com alguns exemplos recentes encontrados no exterior: Maradona, o inglês Paul Gascoigne e o irlandês George Best, entre muitos outros".

As origens humildes e a infância pobre podem ser apontadas como causa determinante para um ou outro escândalo que vem com a fama, mas Vasconcellos é enfático em destacar que pobreza não é sinônimo de desvio de caráter ou de psicopatia. "Com a riqueza, de certa forma, acontece a mesma coisa. Não é a classe social que determina a conduta ética e moral de ninguém. Da mesma forma, deslumbramento não é privilégio de nenhuma categoria social. Acredito que são menores as chances de um jogador dar passos errados quanto mais educado ele for", avalia. 






 Hideraldo Luiz Bellini, que entrou para

a história como capitão do primeiro título

em Copa do Mundo da seleção brasileira.

Em 1958, na Suécia, Bellini ergueu o troféu,

a Taça Jules Rimet, após a disputa final,

e criou um gesto que se transformaria em

um ritual universal para o esporte.


Também abaixo, duas imagens da Copa

do Mundo de 1962 no Chile, em que o

Brasil se tornou bi-campeão: Garrincha

e Pelé no jogo contra a seleção do México;

e Pelé cercado por crianças e adolescentes

durante um treino da seleção brasileira

em Viña del Mar, Valparaíso, em

fotografia de Reginaldo Manente














Para Vasconcellos, é importante considerar também que adquirir fama e fortuna rapidamente não é uma experiência muito fácil para a maior parte das pessoas, sendo ou não atletas de origem humilde. "É preciso aprender a lidar com a nova situação. Mas ninguém está condenado a fazer bobagem por ficar rico e famoso de uma hora para outra, isso não está não. Isso é gravíssimo. Acredito mesmo que o caso do goleiro do Flamengo seja o mais grave registrado no Brasil envolvendo um jogador".



Memórias de craques



Carioca de 1956 e torcedor do Flamengo, Jorge Vasconcellos vem reunindo desde 1994 depoimentos de craques de todos os tempos da Seleção Brasileira – de Domingos da Guia a Rivelino e Sócrates. Às entrevistas, algumas feitas em parceria com Claudiney Ferreira para a BBC de Londres, ele acrescentou bela pesquisa fotográfica, privilegiando imagens de bastidores que os jornais raramente publicavam na época. Na entrevista abaixo, concedida por telefone, Vasconcellos fala sobre o acervo reunido no livro e sobre alguns dos personagens que fizeram a história do futebol no Brasil.







Há quem diga que o futebol é uma das mais complexas formações que a cultura e a sociedade brasileira foram capazes de produzir. Você concorda?

Jorge Vasconcellos – O futebol, de fato, está arraigado na alma brasileira. Só esse aspecto já exige boa dose de complexidade analítica para quem deseja entender a razão de ter evoluído dessa forma por aqui. Quanto à cultura, foram produzidas expressões de grande gabarito no campo das artes com foco no futebol, em diferentes linguagens: filmes, artes visuais, literatura, museus etc. Contudo, muitas iniciativas que ambicionaram chegar ao estado de arte por meio do futebol não foram bem-sucedidas.

Seu livro "Recados da Bola" começa com depoimento de Barbosa, goleiro na Copa de 1950, e fecha com Sócrates, personagem em outra derrota, a de 1982. Por que destacar no livro os heróis que ficaram marcados por derrotas históricas?

Na verdade, o grande trauma de Sócrates (foto abaixo) foi com a Seleção de 1982, na Copa da Espanha. Salvo melhor juízo, as derrotas em 1950 e 1982 foram os momentos mais difíceis vividos pelos brasileiros no que diz respeito ao futebol. No caso de 1950, é muito complexo e extenso o baque que o “Maracanazo” causou nos brasileiros. Jogadores, como Barbosa, nunca mais se recuperaram. Imagine dezenas e dezenas de milhares de pessoas calando-se "estrepitosamente" num mesmo lugar, atônitas com o que estão vendo. 






Sócrates (Corinthians) e Reinaldo (Atlético Mineiro):

exemplos de atuação política contra a ditadura militar no Brasil





 



Vem desse episódio no Maracanã o que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira-lata”?

Isso mesmo. O famoso complexo de vira-lata, tão bem vislumbrado por Nelson Rodrigues como uma "vocação natural" dos brasileiros, tem sua matriz na derrota arrasadora sofrida pela seleção no Maracanã em 1950. Já em 1982 a seleção assombrou o mundo com um futebol alegre, vistoso, mas que sucumbiu diante da Itália, campeã daquele ano. Sócrates era o capitão daquele time. Ele simboliza, no livro e para quem reflete sobre futebol, a perda de status do futebol-arte como um recurso de jogo vencedor. Infelizmente, a primazia do futebol jogado em grande estilo, pelo menos entre nós, foi mandada para a linha de fundo, ainda que tenhamos craques desfilando nos gramados daqui e do exterior.

Mas o trauma da derrota do Brasil para o Uruguai, no Maracanã, na Copa de 1950, foi o combustível para a sequência de vitórias espetaculares da Seleção nas décadas seguintes?

Há uma espécie de consenso indicando a derrota na final da Copa de 1950 como fator essencial para a posterior sequência de vitórias da Seleção Brasileira. O fato é que o trauma que aquela derrota causou nos brasileiros foi de tal ordem que sua reparação se tornou algo próximo a uma obsessão no Brasil.

O que tem sido mais marcante na trajetória do futebol brasileiro: as vitórias ou as derrotas?

Sem dúvida, as vitórias. Salvo melhor avaliação, somos a maior potência do futebol mundial. Ganhamos cinco Copas do Mundo e centenas de nossos jogadores são objeto de desejo de clubes mais e menos importantes do futebol internacional. Eles são até mesmo titulares em seleções de outros países.







Dos depoimentos de craques reunidos no livro, qual foi o mais complicado ou mais emocionante?

Por incrível que pareça, não houve nenhuma complicação na realização dos depoimentos. Ao contrário, diria que o time dos 12 caracterizou-se pela gentileza e generosidade em lembrar detalhes de suas vidas esportiva e pessoal. Uma das passagens inesquecíveis foi o momento em que Bellini relatou a criação do gesto imortal de vitória, segurando a Taça Jules Rimet sobre a própria cabeça com as duas mãos. Nos momentos efusivos de comemoração, ele lembrava da saúde debilitada do pai e do que estaria se passando, àquela altura, com o povo brasileiro.

Por que o depoimento de Pelé ficou de fora do livro?

Pelé, se não é o maior, é um dos principais protagonistas do futebol em todos os tempos. Tentamos diversas vezes agendar com ele uma entrevista. Mas não foi possível.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Heleno e outros craques. In: Blog Semióticas, 5 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/heleno-e-outros-craques.html (acessado em .../.../...).



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