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30 de novembro de 2023

Aquarela do Ary


 




Brasil, meu Brasil brasileiro,
meu mulato inzoneiro,
vou cantar-te nos meus versos.

– Ary Barroso, "Aquarela do Brasil" (1939). 






Um lançamento de peso: uma caixa de CDs com a obra completa do compositor Ary Barroso (1903-1964) surge como um sério indicador do fim da época das chamadas mídias físicas no Brasil, incluindo CDs, DVDs e álbuns de música em vinil. O indicador do fim pode ser confirmado não só no decréscimo dos lançamentos, cada vez mais raros e esparsos, mas também na retração acelerada do mercado da oferta e da procura, porque mesmo nas capitais e nas maiores cidades são raríssimas as lojas que vendem discos em vinil e CDs – e as poucas opções que restam estão nas grandes lojas de departamentos, com espaço cada vez mais restrito ou inexistente para discos, CDs e DVDs. As plataformas on-line de comércio são as últimas opções, mas também nelas a presença de vinis, CDs e DVDs parece estar mesmo em fase de extinção.

A caixa de CDs em questão é “Brasil Brasileiro”, com uma primorosa seleção de gravações de grandes intérpretes para todas as canções de Ary Barroso, um dos mais célebres compositores brasileiros. A caixa traz 20 CDs com 316 canções reunidas em ordem cronológica, em gravações originais da Casa Edison, Odeon, RCA Victor, Copacabana e outras gravadoras, na interpretação do próprio compositor e nas vozes de maiorais da Velha Guarda, entre eles Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Orlando Silva, Mário Reis, Sílvio Caldas, Jorge Veiga, Jamelão, Marlene, Ângela Maria e Elizeth Cardoso. As composições de Ary Barroso tornaram-se clássicos, mas não ficaram esquecidas no passado: ainda hoje estão no repertório do cancioneiro popular e também são destaque entre as canções brasileiras mais conhecidas e mais gravadas no exterior – incluindo “Aquarela do Brasil”, “Na Baixa do Sapateiro”, “No Tabuleiro da Baiana”, “Os Quindins de Yayá”, “Risque”, "Camisa Amarela", “No Rancho Fundo”, “Na Batucada da Vida” e “Pra Machucar Meu Coração”.





         




Aquarela do Ary: no alto da página e acima,
Ary Barroso ao microfone na Rádio Cruzeiro do Sul
do Rio de Janeiro, prefixo PRD-2, em 1932.

Também acima, a caixa de CDs "Brasil Brasileiro",
que reúne todas as composições de Ary nas
gravações originais. Abaixo, Ary conduzindo
jornalistas e fãs que acompanham o cantor
das multidões, Orlando Silva; e Ary
ao piano, em apresentação em 1957
na boite Fred's, no Rio de Janeiro












Garimpo em arquivos


O grande desafio, contudo, é encontrar uma loja ou um site em que a caixa de CDs esteja à venda. Não está disponível nem mesmo no site da famigerada Amazon. A produção dos 20 CDs com a obra completa de Ary Barroso foi o resultado de duas décadas de trabalho do pesquisador Omar Jubran, que também fez todo o processo de remasterizações. A caixa foi lançada pela gravadora NovoDisc, criada e gerenciada pela jornalista e musicóloga Maria Luiza Kfouri, em parceria com o Museu da Imagem e do Som (MIS), de São Paulo. O MIS distribuiu uma parte da tiragem das caixas de CDs para bibliotecas e instituições parceiras da Secretaria de Estado da Cultura, mas para pesquisadores e fãs de Ary Barroso o processo para conseguir uma das caixas pode ser um autêntico garimpo. Quem tiver a sorte de encontrar a caixa também terá como encarte um livreto que traz todas as letras, a identificação dos intérpretes e as fichas técnicas relacionadas a cada composição.

De todas as composições de Ary Barroso, apenas cinco ficaram fora da caixa, porque os fonogramas não foram localizados por Omar Jubran. No encarte, ele esclarece que as cinco canções aparecem nomeadas nos arquivos das gravadoras, mas não há registro sobre as gravações. “Uma explicação razoável para tal, é que pode ter existido a gravação da matriz sem que houvesse a prensagem do disco”, relata o pesquisador. Ele também justifica a existência de alguns ruídos e chiados discretos em algumas das gravações: “Em nome da preservação do som original e das características técnicas de gravação dos anos 1930 e 1940, alguns fonogramas ainda apresentam uma pitada de ruído, o que lhes atribuiu um charme especial”.






Aquarela do Ary: acima, o compositor
e seu piano, em foto de 1953. Abaixo,
o primeiro piano de Ary, conservado
na cidade mineira de Ubá pela família
do compositor e chamado pelos herdeiros
de "o piano da tia Ritinha", porque pertenceu
a uma tia de Ary que era professora de piano










Calouros do Ary


Nascido há 120 anos, completados em 7 de novembro, na cidade mineira de Ubá, Ary Barroso morreu no Rio de Janeiro, em um sábado de Carnaval, em 9 de fevereiro de 1964, aos 60 anos, em decorrência de cirrose hepática, resultado de anos de alcoolismo. O Rio foi a cidade em que passou a maior parte da vida e também o cenário da maioria de suas canções, com a curiosidade de que em algumas, das mais conhecidas, a Bahia e as baianas é que são o tema central. Além de compositor e cantor, Ary também foi muito popular em sua época como apresentador de programas de rádio e comentarista esportivo, sem nunca esconder sua condição apaixonada de torcedor do futebol do Flamengo. Seu primeiro programa de rádio foi “Calouros em Desfile”, que teve sucesso desde a estreia com nomes desconhecidos que passaram depois à condição de astros e estrelas de primeira grandeza da música brasileira.

O programa “Calouros em Desfile”, que estreou em 1932, na Rádio Philips, também trouxe a fama de ranzinza para Ary Barroso, o que pode ser confirmado ao se ler a lista dos nomes que ele reprovou e que depois seriam consagrados como medalhões entre os grandes intérpretes da música brasileira, incluindo aqueles que gravaram versões de sucesso para as composições dele próprio. Nas décadas seguintes, o apresentador e o programa “Calouros em Desfile” seguiriam para outras estações – em 1934, para a Rádio Mayrink Veiga; no ano seguinte, para a Rádio Cosmos, em São Paulo. Na Rádio Cruzeiro do Sul, a partir de 1943, ele apresentou “A hora do calouro”; na Radio Nacional, a partir dos anos 1950, o mesmo programa foi renomeado para “Calouros do Ary”. Ele também criou uma tirada de humor que foi sua marca registrada: o gongo, que soava quando o calouro era eliminado.




 
    





Aquarela do Ary: no alto, o compositor com
os amigos Carmen Miranda e Sílvio Caldas,
em reportagem da "Revista do Rádio" em 1955.
Carmen foi a recordista em gravações das canções
de Ary, com mais de 30 grandes sucessos.

Acima, Ary com o célebre gongo que o
acompanhava em todos os programas de
calouros que apresentou em várias estações
de rádio. O homem do gongo era o comediante
Tião Macalé. Abaixo, Ary com Walt Disney
no Hotel Copacabana Palace, em 1942, na época
em que Disney produziu o filme "Olá, Amigos",
que apresentou o personagem Zé Carioca
e trazia canções de Ary na trilha sonora;
e um encontro de bambas: Linda Baptista,
Grande Otelo, Herivelto Martins e
Ary Barroso
ao piano, no Cassino da Urca,
em 1940, fotografados por Carlos Moskovics










 

A lista dos nomes de calouros premiados que despontaram para a fama nos programas de rádio sob o comando de Ary Barroso é imensa – mas na lista dos que foram reprovados há, também, nomes notáveis, entre eles nomes que depois deram a volta por cima e conquistaram a consagração no primeiro time da música brasileiras, caso de Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Vinicius de Moraes e também Elza Soares, que protagonizou um acontecimento marcante por vários motivos. Com Elza Soares aconteceu aquele diálogo que a cantora repetiu depois, muitas vezes, ao lembrar que foi humilhada na estreia porque era negra e tinha aparência de pobre. Ao microfone, com sua conhecida ironia, Ary perguntou: “De que planeta você vem, minha filha?”. Elza respondeu: “Eu vim do planeta fome”.








Aquarela do Ary: no alto, o compositor no começo
da carreira, em 1936, com a estrela Carmen Miranda
e o amigo e parceiro de composições Luiz Barbosa.

Acima, com a esposa Yvonne e amigos. Abaixo, com
o maestro Heitor Villa-Lobos; com Dolores Duran;
com Elizeth Cardoso; e comemorando a vitória do
Flamengo, seu time do coração, com Ângela Maria














Um brasileiro internacional


Também é inegável que o salto de Ary Barroso para o primeiro time como compositor popular no Brasil tem participação de Carmen Miranda. A estrela mais popular no Brasil desde a década de 1930, no rádio, no teatro de revista e no cinema, foi a recordista em gravações de canções de Ary Barroso, com mais de 30 grandes sucessos, incluindo a mais célebre, “Aquarela do Brasil’, gravada por Francisco Alves em 1939 e três anos depois incluída na trilha sonora de “Alô, Amigos” (“Saludos Amigos”), o filme de animação que Walt Disney fez no Rio de Janeiro, como encomenda para a Política da Boa Vizinhança lançada pelo governo do norte-americano Franklin Roosevelt, no final da década de 1930, para ganhar a simpatia dos governos e dos povos da América Latina na época da Segunda Guerra Mundial.

O filme “Alô, Amigos”, lançado nos cinema dos Estados Unidos e do Brasil em 1942, marca a estreia das canções de Ary Barroso em uma produção de Hollywood e também foi a estreia do personagem Zé Carioca (veja também Semióticas – Estratégias do Zé Carioca). Na gravação de Carmen Miranda, “Aquarela do Brasil” foi um grande sucesso nas rádios norte-americanas e em outros países, conquistando um lugar no imaginário do público. A canção foi o grande sucesso da carreira de Ary Barroso e teve inúmeras regravações que ganharam o mundo nas vozes de artistas de várias gerações e vários estilos, de Frank Sinatra a Ella Fitzgerald, Ray Conniff, Harry Belafonte, Dionne Warwick e até com as bandas Arcade Fire e Beirut, entre muitos outros.














Aquarela do Ary: no alto, o compositor em ação
como narrador e comentarista de futebol. Acima,
em um encontro com os novatos da Bossa Nova,
João Gilberto, Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli e
Carlos Lyra
, fotografados por Indalécio Wanderley

Abaixo, Ary com Carmen Miranda em Hollywood,
em 1944, na época em que rejeitou o contrato
de trabalho para ser compositor exclusivo dos
Estúdios Disney e voltou para o Brasil, alegando
que não conseguiria ficar longe dos jogos do
Flamengo; e Ary em 1957, em uma prosa
animada com o presidente da República,
Juscelino Kubitschek.

Também abaixo, Ary diante da multidão
em um show em Buenos Aires, Argentina,
em 1955; Ary com Dorival Caymmi, na foto
para a capa do álbum que gravaram juntos
em 1958; e na última foto, poucos dias antes
de sua morte, em 9 de fevereiro de 1964









A trajetória de Ary Barroso coincide também com momentos marcantes da história do Brasil. Seu primeiro grande sucesso popular acontece em 1930, ano da chegada de Getúlio Vargas ao poder, com a Revolução de 1930, e sua morte antecede em apenas dois meses o golpe de 1964 que instalou a ditadura militar. Naquele ano de 1930, Ary Barroso foi notícia pela primeira vez porque venceu o Grande Concurso da Música Popular, para escolha de canções do Carnaval, promoção da gravadora mais popular da época, a Casa Edison, e do jornal Correio da Manhã, com a marchinha “Dá Nela”. Meses antes, Mário Reis, seu colega na Faculdade Nacional de Direito e já consagrado cantor, havia gravado duas canções de Ary, “Vou a Penha” e “Vamos deixar de intimidade”.

Com isso, a partir de 1930 estrearam as canções de Ary Barroso nas paradas de sucesso e muitas outras viriam, nos anos e nas décadas seguintes. Desde então, muitos conhecem de cor suas canções, que já foram nomeadas como marchinhas e como samba, samba-canção, samba-exaltação, mesmo que não associem seu nome às canções ou não saibam quem é o compositor. Ele é Ary Barroso: criador de algumas das canções brasileiras mais conhecidas no mundo inteiro, cantor, pianista, vereador (o mais votado em 1946 na Guanabara, pela UDN, União Democrática Nacional), radialista, cronista, roteirista de radionovela e do teatro de revista, comentarista de futebol, flamenguista, humorista, figura consagrada no folclore nacional. Seja no Brasil ou mesmo no exterior, ainda hoje é muito difícil separar os acordes de “Aquarela do Brasil” e de tantas canções de Ary Barroso das lembranças e dos sentimentos mais autênticos da nacionalidade brasileira.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Aquarelas do Ary. In: Blog Semióticas, 30 de novembro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/11/aquarela-do-ary.html (acessado em .../.../…).








   





25 de abril de 2013

O novo Jards






Arte não é só talento, mas sobretudo coragem.
A arte é tão difícil como o amor.

–– Glauber Rocha (1938-1981).    


“Só Morto”, o primeiro disco de um dos grandes nomes da MPB, está finalmente disponível em CD. O original foi lançado em formato de LP de vinil em 1970 e desde então se tornou uma relíquia conhecida apenas pelos colecionadores. Por coincidência, chega agora pela primeira vez ao formato CD como uma homenagem ao artista, que completou 70 anos no dia 3 de março. O nome que consta na certidão de nascimento, por sinal, é tão incomum quanto o nome artístico que ele adotou: Jards Anet da Silva. Desde o final dos explosivos anos de 1960, ele assina somente Jards Macalé.

Não sei de onde tiraram essa história de que Macalé era o nome do pior jogador do Botafogo. Sempre que vejo uma matéria sobre mim encontro essa mesma história, de que ele era o pior. É tudo mentira”, explica o próprio Jards na entrevista que fiz com ele por telefone para um jornal de Belo Horizonte. “Macalé não era o pior e também não era o melhor. Era um jogador que naquela época estava em evidência porque jogava no Botafogo e eu ganhei este apelido porque eu também jogava futebol, só que na praia, e achavam que ele era parecido comigo. Apelido é assim. Ou pega no ato ou não pega”.

Senso de humor apurado, cheio de ironia e afiado nas tiradas inteligentes, Jards Macalé concedeu esta entrevista no dia seguinte a seu retorno ao Rio de Janeiro, vindo de Nova York. A viagem foi um convite que ele nem pensou em recusar, porque era para acompanhar Eryk Rocha na estreia internacional do filme “Jards”, destaque do festival New Directors/New Films, promovido pelo MoMA, Museu de Arte Moderna. 








Jards Macalé aos 70: no alto, um
fotograma de Jards, filme de Erik Rocha.
Acima, Jards no palco do Nublu, em
Nova York. Abaixo, em 1967, na praia
de Copacabana com Maria Bethânia,
na época em que começou a carreira
profissional como violonista e diretor
musical dos primeiros espetáculos de
Bethânia; com Erik Rocha, no festival
de cinema promovido pelo MoMA, e a
capa do disco Só Morto, que agora
chega finalmente ao formato CD,
em lançamento do selo Discobertas








Em Nova York, Jards e Eryk Rocha, filho de Glauber, assistiram às exibições concorridas e participaram de debates no MoMA, no Lincoln Center e em programas de TV. O músico e o cineasta têm mesmo o que comemorar, já que o filme foi aplaudido de pé e muito bem recebido pela crítica, com elogios e reportagens de destaque nos principais veículos de imprensa.

Começamos a entrevista falando sobre o lançamento de “Só Morto” na versão CD, que vem recheada de faixas-bônus que permaneceram inéditas por décadas, mas no minuto seguinte o assunto vai para outras direções e chega à estreia do filme nos Estados Unidos. “Foi uma experiência tão fantástica que depois da estreia fomos celebrar no Nublu, um dos redutos do jazz em Nova York, e a comemoração acabou virando uma canja e o show seguiu com meu improviso no palco, pela madrugada adentro”, conta Jards, feliz com o filme e com a parceria com Eryk Rocha.








Parceiro de Glauber



Novato em cinema Jards não é – muito pelo contrário. Desde a década de 1960, participou como ator e compositor da trilha sonora em filmes marcantes, incluindo um dos lendários longas de Glauber, “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, além dos não menos importantes “Amuleto de Ogum” e “Tenda dos Milagres”, de Nelson Pereira dos Santos, “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, “A Rainha Diaba”, de Antônio Carlos Fontoura, “Se segura, malandro!", de Hugo Carvana, e “Getúlio Vargas”, de Ana Carolina, entre vários outros.

Jards comemora: “Já dizia meu grande amigo Hélio Oiticica que quanto melhor, melhor”. No Brasil, “Jards”, o filme, estreou em janeiro no Festival de Cinema de Tiradentes e segue na agenda de outros festivais, mas só deve chegar ao circuito comercial no segundo semestre de 2013. "Fazer este filme com o Eryk foi muito especial. Foram três semanas no estúdio com a equipe de filmagem, com três câmeras, e saiu um filme muito melhor do que a encomenda. É um filme diferente, mais experimental, que foi surgindo de tentativas, de repetições, de improvisos, e no final ficou mesmo muito parecido com a música que venho tentando fazer desde o primeiro disco”.







No cinema, a próxima parceria já está agendada: Jards Macalé volta a trabalhar com Nelson Pereira dos Santos, que depois do mergulho na obra de Tom Jobim com os recentes “A Música Segundo Tom Jobim” e “A Luz do Tom”, agora prepara um filme sobre o imperador Dom Pedro 2°. “Nelson sabe o que faz e faz um cinema de verdade, incomum. Tudo o que fiz na vida foi em busca desta verdade. E olhando para trás acho que acertei algumas vezes”, ele diz, recordando histórias engraçadas dos amigos e dos “erros e acertos” das muitas parcerias em quase 50 anos de carreira. Mais acertos do que erros, é bom destacar.

Arte é assim. Tem que sair do lugar de conforto, tem que procurar o novo, tem que criar. Foi assim que a arte e a cultura no Brasil produziram o que temos de melhor. Foi desse jeito com nossos grandes artistas, foi assim com as revoluções que o Tropicalismo inventou”, destaca, lembrando de novo o gênio de Hélio Oiticica. “Foi o Oiticica que deu o pontapé inicial para o que chamamos de Tropicalismo quando registrou em cartório a palavra Tropicália, lá em 1958. Hoje ninguém mais fala disso, mas temos que falar porque é importante”.













Memórias da MPB: no alto, Jards Macalé no
final da década de 1960. Acima, bastidores
do terceiro Festival da Record, em 21 de
outubro de 1967, noite da final do festival, com
uma reunião de tropicalistas com Edu Lobo 
(vencedor do festival, com “Ponteio”, parceria
com José Carlos Capinam). Na primeira foto,
em preto e branco, estão, entre outros,
Nara Leão, Sidney Miller, Rita Lee e os
irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias Baptista
(da formação original de Os Mutantes),
Zé Rodrix (de óculos, embaixo da escada),
Maurício Maestro (de óculos), Os Incríveis
(no alto da escada), Marilia Medalha, Gilberto Gil,
Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso,
Nana Caymmi (sentada), Geraldo Vandré,
Roberto Carlos, Sergio Ricardo (sentado),
David Tygel, os integrantes do MPB4,
Capinam, Marcelo Frias (dos Beat Boys) e
Torquato Neto. Abaixo, Jards Macalé com
Wally Salomão; e o produtor musical
Guilherme Araújo (sentado), um dos
mentores da Tropicália, em fotografia de
1968 com Arnaldo Baptista, Rita Lee,
Caetano Veloso, Nana Caymmi, Sérgio
Dias Baptista, Jorge Ben,
Gal Costa e Gilberto Gil












É proibido proibir!



Jards Macalé começou a carreira profissional em 1965, como violonista e diretor musical dos primeiros espetáculos de Maria Bethânia no Rio de Janeiro, e estava no “olho do furacão”, como ele diz, no mesmo grupo que também tinha, entre outros, futuros medalhões das artes plásticas, da literatura, do cinema e da música, além do poeta e jornalista do Piauí Torquato Neto e dos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Bethânia, Gal Costa, José Carlos Capinam.

Lá estávamos todos nós no apartamento em que eu morava em Ipanema, até que um dia aconteceu o fogo que atravessou o Atlântico, vindo da revolta dos estudantes nas ruas do maio de 1968 francês. Lembro que foi o Guilherme Araújo que chegou de Paris muito impressionado, contando que nunca viu nada igual, que os estudantes tomaram as ruas da cidade, ficaram acampados, e por todo lado se via os grafites dizendo 'é proibido proibir'. Para nós, que buscávamos o novo, naquela ditadura militar que foi terrível, esta mensagem foi uma luz no fim do túnel: é proibido proibir”.








Jards no palco com Luiz Gonzaga,
registrado pela revista “Pop”, na edição
de outubro de 1976, e com o “malandro”
Moreira da Silva, seu parceiro no
samba de breque Tira os óculos
e recolhe o homem. Abaixo,
Jards com Vinicius de Moraes
no começo da década de 1970






 


A frase do grafite das revoltas estudantis do maio de 1968 francês foi transformada em canções que marcaram época e se fez a História, contada ao telefone por um dos principais protagonistas. “Para nós, que mergulhamos na Tropicália, naquele contexto de repressão, é muito triste, tristíssimo, descobrir que hoje os espaços da mídia no Brasil foram tomados por tanta estupidez, tanta bobagem repetida, tanto lixo importado. Não sou contra o produto importado. Nunca fui. Mas ao menos deveriam ter o cuidado de importar o luxo de outros países, e não somente o lixo”.

E a experiência de completar 70 anos? Muda alguma coisa ou não muda nada? – pergunto. “Muda tudo”, ele responde, disparando uma gargalhada. “Muda porque agora sou outra pessoa. Aquele Jards Macalé que veio até aqui tem seu valor, vou guardar com carinho as boas lembranças. Mas agora virei outro: nasceu o novo Jards”.



Obra em várias mídias



Planos e projetos encaminhados não faltam. O “novo Jards” segue na temporada de lançamento do filme com Eryk Rocha no Brasil e no exterior, está finalizando um CD com canções inéditas (que têm como parceiros Adriana Calcanhotto, Elton Medeiros, Luiz Melodia), organiza os registros de sua obra em várias mídias e está em negociações para a instalação do acervo em um instituto cultural, trabalha com Nelson Pereira dos Santos no novo filme e, para completar, também faz parte do elenco que vai acompanhar o Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, programada para julho, no Rio de Janeiro. Ele comemora, bem-humorado: “Jards com o Papa Francisco, já pensou? Por essa ninguém esperava. Nem eu”.









O “novo Jards” também diz que está surpreso e satisfeito com as novas parcerias, mas quero ouvir sobre as histórias do passado e pergunto sobre os antigos parceiros do velho Jards, incluindo Glauber Rocha, Vinicius de Moraes, Egberto Gismonti, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Augusto Boal, Moreira da Silva, Paulinho da Viola, Jorge Mautner, Naná Vasconcelos, Torquato, Capinam, Rogério Duprat, Chico Buarque, Gal Costa, Bethânia, Clara Nunes, Nara Leão.

Todos parceiros da maior importância”, ele diz, lembrando de cada um deles com histórias saborosas que trazem à conversa outros nomes, outras artes, outras épocas. A conversa chega aos tempos sombrios da ditadura militar, tempos difíceis, e Jards recorda as tristezas e a repressão do período, mas também as alegrias e agitos da Swinging London, durante a temporada que passou com Gilberto Gil e Caetano Veloso, que estavam exilados na Inglaterra. Gil e Caetano foram presos pela ditadura militar em dezembro de 1968, acusados de subversão, e permaneceram presos durante meses, sem qualquer julgamento. Enquanto o mundo assistia ao pouso da espaçonave Apollo 11 na lua, em 21 de julho de 1969, Gil e Caetano eram obrigados a deixar o Brasil e seriam proibidos de retornar por mais três anos.






.


























Jards Macalé e Os Brasões em 1969,
durante o quarto Festival Internacional
da Canção, quando  Gothan City, canção
de Jards e Capinam, foi vaiada pela plateia
do Maracanãzinho. Acima, Caetano e Gil,
 amigos no exílio em Londres, por imposição
da ditadura militar; e Gal Costa em visita aos
amigos no exílio, em fotos de 1971 publicadas
pela revista Fatos & Fotos. Gil e Gal fizeram
um show histórico em 26 de novembro de 1971,
na London University, que só foi lançado em
CD no Brasil em 2014. Abaixo, Jards entre
amigos em visita a Caetano e Gil em Londres,
em 1971, na época da produção do álbum de
Caetano Transa; a partir da esquerda, em foto
de Antonio Guerreiroo engenheiro de som
Maurice Hughes, os músicos Aureo de Souza,
Jards Macalé, Caetano e Moacir Albuquerque.

Também abaixo, Gil e Caetano diante da
torre do Big Ben e passeando na Trafalgar
Square, em 1969, durante o exílio em Londres;
Caetano, Jards e Moacir Albuquerque durante
os ensaios para as gravações do álbum Transa,
em fotografias de Pedro Paulo Koellreutter;
Jards com João Ubaldo, Alberto Cavalcanti
e Glauber Rocha em 1979 (fotografados por
Paula Maria Gaitán); Jards em 2003 com
Jorge Mautnere Jards em 2013, em
autorretrato com Jorge Ben Jor
































Da temporada em Londres saíram duas obras-primas com participação intensa de Jards Macalé: a primeira foi o filme “O Demiurgo”, de Jorge Mautner, que além de Jards também teve no elenco Mautner, Caetano, Gil, Norma Bengell, Péricles Cavalcanti, Roberto Aguilar, Leilah Assunção, Gal Costa e Dedé Gadelha, esposa de Caetano – um filme experimental como poucos, mistura de drama, comédia, poesia, música e filosofia. Glauber dizia que “O Demiurgo” é o melhor filme do exílio e sobre o exílio, enquanto Jorge Mautner define o filme como uma fábula musical e uma chanchada filosófica que retrata a saudade do Brasil.

A segunda obra-prima desta temporada com os amigos no exílio em Londres permanece em destaque entre os melhores discos brasileiros de todos os tempos, “Transa”, de Caetano Veloso, álbum lançado em 1971, resultado de mais de oito meses de ensaios com produção e arranjos por conta de Jards, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Souza. “Ensaiávamos num parque de Londres, todos os dias. Parecíamos aqueles malucos do 'Blow Up' (filme de Michelangelo Antonioni). Quem nos visse ali, sempre daquele jeito, pensaria que estávamos num eterno piquenique”, recorda.



Vapor barato



As histórias de Londres trazem à tona as principais referências de Jards, seus ídolos da Velha Guarda e os cantores e cantoras da Era do Rádio, Carmen Miranda, Orlando Silva, Marlene e Emilinha Borba, o primeiro encontro com Nélson Cavaquinho e Ciro Monteiro numa mesa de botequim, a descoberta dos gigantes do jazz e o impacto que foi ouvir pela primeira vez Erik Satie, compositor e pianista, precursor das vanguardas minimalistas. Na trajetória da formação de Jards também houve as aulas de música e os mestres que teve a sorte de encontrar pelo caminho, Guerra Peixe, Turibio Santos, Dauelsberg, Jodacil Damasceno, Ester Scliar.












Entre tantas histórias e personagens célebres que vão surgindo na entrevista, comento sobre a relação afetiva de muitos da minha geração com as belas canções de Jards Macalé, muitas delas com lugar cativo entre os grandes clássicos da MPB, “Mal Secreto”, “Gothan City”, “Movimento dos Barcos”, “Rua Real Grandeza”, “Poema da Rosa”, “ Anjo Exterminado”, “Alteza”, "The Archaic Lonely Star Blues", "Love, Try and Die" e, especialmente, “Vapor Barato”, sua parceria com o poeta Wally Salomão que teve aquela mítica e longa versão ao vivo de Gal Costa em “Fa-Tal / Gal a Todo Vapor”, em 1971, tido com um dos shows mais importantes da música brasileira.

Sim, você tem razão, porque Vapor Barato é um hino. É uma história que entrou na vida de muita gente lá nos anos 1970 com a interpretação 'Fa-Tal' da Gal e é uma canção que volta sempre. Vapor Barato está sempre voltando. Voltou nos anos 1990, no filme do Walter Salles ('Terra Estrangeira'), depois voltou na gravação do Rappa, depois com o Zeca Baleiro. Engraçado que toda hora tem alguém fazendo contato comigo por causa de Vapor Barato, querendo Vapor Barato na trilha sonora disso e daquilo. O que é muito bom. Só posso comemorar, porque também sempre gostei muito de Vapor Barato”.







Para encerrar a entrevista, voltamos ao primeiro disco, “Só Morto”, lançamento recente do Selo Discobertas. “Este CD foi outra grande surpresa. Mas olha o que falei no começo da nossa conversa: aí já é o novo Jards (risos). Foi um presente da melhor qualidade para o novo Jards, uma homenagem bacana que recebi de presente de aniversário de 70 anos do Marcelo Fróes, que é um cara muito especial, um pesquisador e produtor como poucos, pouquíssimos”.

O disco de 1970 tinha quatro músicas: “Soluços”, dele próprio, e “O Crime”, parceria com Capinam, no Lado A. No Lado B, “Só Morto / Burning Night” e “Sem Essa”, duas parcerias de Jards e Duda (Carlos Eduardo Machado). “O Marcelo Fróes me procurou e disse que tinha encontrado as outras gravações, todas elas inéditas em CD. Fiquei animado com o projeto e, depois, quando recebi o CD pronto, tão bem cuidado, tão profissional, foi só felicidade”.







Só Morto” saiu com as quatro faixas como compacto duplo em 1970. Agora, tem como acréscimo 10 canções que foram gravadas ao vivo em shows realizados entre 1970 e 1973, com Jards Macalé acompanhado do Grupo Soma, um dos mais conceituados do “rock brasilis” na década de 1970. As quatro canções do primeiro Jards não ganharam sucesso popular, mas a importância daquele compacto duplo é sempre destacada pelos fãs e pelos pesquisadores da música brasileira, ainda que o disco permanecesse uma raridade, conhecido apenas por uns poucos colecionadores.

Jards, no comando dos arranjos, no violão e nos vocais, é sempre uma surpresa: tom personalíssimo, grave, experimental e crítico, por vezes gritado, por vezes irônico, festivo, ritmado. Na primeira metade da década de 1970, Jards contava com o auxílio luxuoso do Soma, formado por Ricardo Peixoto (guitarra), Jaime Shields (guitarra), Bruno Henry (baixo) e Alírio Lima (bateria), além da presença muito especial de Zé Rodrix no piano e no órgão.



Música com atitude



Completam a trilha de “Só Morto”, além das quatro canções originais, uma lista de pérolas da MPB que inclui versões para “Gothan City” (de Jards e Capinam), “Só Morto / Burning Night” (Jards e Duda), “Let's Play That” (Jards e Torquato Neto), “Poema da Rosa” (Jards e Augusto Boal), “Orora Analfabeta” (Belizário Gomes e Waldeck Macedo) e mais três parcerias da dupla de “Vapor Barato”, Jards e Wally Salomão, em “Revendo Amigos”, “Anjo Exterminado” e “Rua Real Grandeza”.

 



O novo Jards, tanto quanto o antigo, é falante, provocador, imprevisível. Faz reverência aos amigos e às parcerias, em especial a Wally Salomão, morto aos 60 anos, em 2003. “Wally é uma pessoa importantíssima para mim e para o Brasil. Grande poeta, grande pensador, grande na música e na atitude. Faz muita falta sua inspiração, sua conversa franca”. Antes de concluir a entrevista, arrisco um desafio: muitos se referem a você como “maldito da MPB”, ou “marginal”, ou “pós-tropicalista”, mas qual é a melhor definição para a música de Jards Macalé?

Ele faz uma pausa e diz que para responder terá que recorrer a duas figuras geniais, segundo ele duas das personalidades mais brilhantes com as quais teve a sorte do convívio: Hélio Oiticica e João Gilberto. “Veja bem... (risos). Vou responder sua pergunta, José, com frases famosas dos mestres Oiticica e João Gilberto. Oiticica dizia: minha arte é música, a arte que faço é música. E o João Gilberto, quando faziam perguntas difíceis sobre a Bossa Nova, respondia: Bossa Nova não existe, o que existe é samba. Então, agora eu digo a você: minha vida é música, mas o que eu faço é samba”. Só quando concluímos a entrevista é que percebo que falamos durante quase duas horas. Agora, enquanto termino a redação da matéria, penso na sábia definição do artista por ele mesmo e acrescento: sim, é samba. Da melhor qualidade.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O novo Jards. In: Blog Semióticas, 25 de abril de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/04/o-novo-jards_8633.html (acessado em .../.../...).



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