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16 de dezembro de 2021

Imagens de fogo e revolta

 



O tempo é um rio que me leva, mas eu sou o rio;

é um tigre que me devora, mas eu sou o tigre;

é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo.

–– Jorge Luis Borges.    







O Prix Pictet, um dos principais prêmios internacionais de fotografia da atualidade, anunciou sua premiação de 2021: a fotógrafa norte-americana Sally Mann é a vencedora com um ensaio fotográfico intitulado “Blackwater, 2008-2012” (Águas negras), uma série de imagens de impacto que traçam paralelos entre incêndios florestas e a história das revoltas raciais nos Estados Unidos. Os 12 ensaios selecionados como finalistas foram anunciados nos últimos meses – todos eles tendo como foco o tema do “fogo”, escolhido previamente pelos organizadores da premiação, criada para promover a discussão sobre questões relacionadas ao meio ambiente e à sustentabilidade. Na etapa final, Sally Mann concorreu com os fotógrafos Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (Líbano), Rinko Kawauchi (Japão), Christian Marclay (EUA / Suíça), Fabrice Monteiro (Bélgica / Benin), Lisa Oppenheim (EUA), Mak Remissa (Camboja), Carla Rippey (México), Mark Ruwedel (EUA), Brent Stirton (África do Sul), David Uzochukwu (Áustria / Nigéria) e Daisuke Yokota (Japão).

Sally Mann, que nasceu em Lexington, na Virgínia (EUA), e começou a estudar fotografia no final da década de 1960, registra no ensaio premiado os incêndios que devastaram as reservas naturais do sudeste da Virgínia no período entre 2008 a 2012. O título, “Blackwater, 2008-2012”, é uma referência aos incêndios florestais e também à região do Great Dismal Swamp (Grande pântano sombrio), às margens do Oceano Atlântico, onde atracaram os primeiros navios que traziam negros capturados na África e transformados em escravos para trabalhar nas lavouras da América do Norte, principalmente no cultivo de tabaco, a partir de 1610. Desde então, e nos séculos seguintes, o pântano densamente arborizado foi usado por escravos como um refúgio para se esconderem quando tentavam fugir de seus proprietários. As fotografias de Sally Mann resgatam a história e traçam um paralelo entre os incêndios e os conflitos raciais, já que na mesma região da Virgínia também aconteceram as primeiras grandes revoltas de escravos da história dos Estados Unidos.











Imagens de fogo e revolta: no alto, um retrato de
Sally Mann por Annie Leibovitz em 2015. Acima e
abaixo, um extrato de Blackwater, 2008-2012, o ensaio
de Sally Mann sobre a devastação provocada pelos
incêndios florestais no estado da Virgínia, nos EUA,
que venceu o Prix Pictet 2021. Acima, Blackwater 13 e
Blackwater 32; abaixo, Blackwater 3, Blackwater 1
Blackwater 30 e Blackwater 15

 
























Racismo e incêndios florestais


No informe divulgado pelos organizadores do Prix Pictet, Sally Mann escreve um breve depoimento que destaca algumas questões de seu recorte temático sobre o tema “fogo” e sua relação com a história das revoltas raciais que remontam ao século 17. “Os incêndios nas reservas florestais e nos pântanos da Virgínia pareciam resumir o grande incêndio da luta racial na América, incluindo antigas batalhas da Guerra Civil, a Guerra da Independência e o Movimento pelos Direitos Civis na segunda metade do século 20, no qual minha família esteve envolvida. A agitação racial do final dos anos 1960 tem uma relação direta com os protestos em defesa das vidas negras no verão de 2020. Algo sobre o personagem norte-americano que falhou parece abraçar o apocalíptico como solução”, explica a fotógrafa em um trecho do depoimento.










         



Acima, fotografias de Sally Mann reunidas
no livro A Thousand Crossings. Abaixo,
"Oak Hill Baptiste", fotografia de 2016;
e duas imagens da série Deep South,
"Fontainebleau" (1998) e "On the Maury",
fotografia de 1992 

















Sally Mann também faz referência a registros históricos que têm os pântanos da Virgínia como local de fuga e esconderijo para comunidades de refugiados e escravos fugitivos que viveram na região. Muitos terminaram mortos ou foram capturados, mas também há histórias de fugitivos que formaram famílias e comunidades inteiras vivendo por anos nos pântanos sem serem detectados. Apesar das condições inóspitas dos pântanos, as pessoas que fugiam do cativeiro preferiam viver naquela região selvagem e com todos os perigos do que suportar o inferno da escravidão. “Mais do que cobras venenosas, insetos que transmitiam doenças, panteras, ursos e crocodilos sempre à espreita, os pântanos muitas vezes também tinham o perigo iminente e brutal dos caçadores de escravos e seus cães que seguiam a lei do ‘vivo ou morto’. Os caçadores cercavam os fugitivos e colocavam fogo em tudo, queimando suas presas vivas. Para os escravos em fuga, enfrentar este perigo e até encontrar a morte era preferível a serem devolvidos para seus donos”, completa. 

O trabalho de pesquisa e produção visual mais recente de Sally Mann, do qual o ensaio “Blackwater, 2008-2012” é uma amostragem, gerou uma exposição e um livro de fotografias com o título “A Thousand Crossings” (Mil travessias). Nas imagens, quase sempre em matizes de preto e branco, a fotógrafa aborda questões relacionadas à identidade e aos grupos sociais do sul dos Estados Unidos, refletindo suas próprias memórias e sua relação com seu lugar de origem. No entanto, pelo que se vê nas fotografias do ensaio premiado, não são registros nostálgicos semelhantes a cartões-postais sobre sua terra natal: as imagens de Sally Mann provocam impacto e revolta pela destruição que restou e levantam questões abrangentes sobre a vida social e cotidiana, sobre o meio ambiente, sobre história, sobre raça e sobre religião, seja em enquadramentos de caráter documental e de fotojornalísmo, seja nas cenas mais metafóricas e de sentido poético, apesar de seu tom muitas vezes sombrio, melancólico, pessimista.


Mil travessias


Desde sua primeira exposição individual realizada na Corcoran Gallery of Art, Washington, DC, em 1977, as fotografias de Sally Mann já apareceram em muitas reportagens de jornais e revistas e também como ilustração para capas e encartes de álbuns de músicos do Jazz e do Blues, já que suas imagens abordam com frequência cenários e moradores do sul dos Estados Unidos, especialmente os estados do Alabama, Mississippi e Louisiana. Ela trabalha usando antigas técnicas artesanais e equipamentos antigos de fotografia, o que faz os cenários rurais do sul dos Estados Unidos e seus personagens característicos parecerem saídos de outros tempos. É o caso das imagens da série "Blackwater", que foram produzidas no processo de Tintypes, também chamado de ferrotipia ou ferrótipo, uma das mais antigas formas do registro fotográfico, com criação de uma imagem positiva sem negativo diretamente sobre uma chapa fina de ferro, revestida com verniz ou esmalte escuro, que é utilizada como suporte para a emusão fotográfica.

As fotografias de Sally Mann também estão reunidas em séries temáticas que foram publicadas em fotolivros, a maioria deles alcançando a condição de best-sellers e atualmente fora de catálogo. Entre seus fotolivros estão "A Place not Forgotten: Landscapes of the South" (1999), “Last Measures” (2000) e "What Remais" (2003), sobre panorâmicas de grandes paisagens da natureza, sobre o que restou de antigas construções em ruínas e sobre os campos de batalha da Guerra Civil do final do século 19; “Deep South” (2005), também sobre os estados do sul do país; "Immediate Family", de 2005, com fotos que registram a infância de seus filhos nas décadas de 1980 e 1990; "Proud Flesh", de 2009, uma série cronológica de retratos de impacto sobre os efeitos da distrofia muscular em seu marido, Larry; "The Flash and the Spirit", de 2010, que reúne o lirismo de sua fotos de família e uma retrospectiva de suas experiências com imagens ousadas sobre os corpos humanos; "Remembered Light: Cy Twombly in Lexington", de 2016, sobre a convivência de anos que teve com o artista Cy Twombly (1928-2011), seu conterrâneo, no ateliê em sua cidade-natal; e o recente “A Thousand Crossings”, com o acervo apresentado na exposição de mesmo nome.





















Imagens de Sally Mann: acima e abaixo,
retratos de seus filhos reunidos nos livros
Immediate Family, de 2005 (acima) e em
The Flesh and the Spirit, de 2010 (abaixo)


 









A trajetória do trabalho de Sally Mann também tem uma série de premiações, incluindo prêmios concedidos pela Fundação Guggenheim e a eleição como “Melhor fotógrafo da América” pela revista Time no ano de 2001. A trajetória da fotógrafa já foi tema de dois filmes: “Blood Ties” (Laços de sangue), dirigido em 1994 por Steven Cantor e Peter Spirer, indicado ao Oscar de documentário em curta-metragem; e “What Remains” (O que resta), dirigido em 2006 também por Steven Cantor, indicado ao Emmy de melhor documentário de longa-metragem. Sally Mann também publicou um livro ilustrado com questões autobiográficas, memórias de família e reflexões sobre seu trabalho com fotografia, “Hold Still: A Memoir with Photographs” (Retrato imóvel: um livro de memórias com fotografias), que foi finalista do National Book Awards 2015 e vencedor do Prêmio Andrew Carnegie de Excelência em Não-ficção.

As imagens de “Blackwater, 2008-2012”, o ensaio com as fotografias de Sally Mann que venceu o Prix Pictet 2021, junto com uma amostragem do trabalho dos demais finalistasserão apresentadas em exposições presenciais e virtuais no Victoria and Albert Museum (V&A), em Londres, e no Top Museum, em Tóquio, a partir de hoje e até 9 de janeiro de 2022, seguindo depois um roteiro itinerante em instituições de diversos países (veja o link para visitas virtuais no final deste artigo). O Prix Pictet foi fundado em 2008 pelo Grupo Pictet, com sede em Genebra, na Suíça, e ganhou reconhecimento como um dos principais prêmios internacionais de fotografia. Cada ciclo da premiação tem exposições e eventos paralelos com palestras, debates e mostras audiovisuais em mais de uma dúzia de países, levando o tema e o trabalho dos fotógrafos selecionados para um amplo público internacional.







 




Imagens de Sally Mann: acima, fotografias de
Remembered Light: Cy Twombly in Lexington,
livro de 2016. Abaixo, Proud Flesh, de 2009: retratos
sobre os efeitos terríveis da distrofia muscular
em Larry, marido da fotógrafa. No final da página,
uma imagem da exposição A Thousand Crossings
e Sally Mann em ação, fotografada por Kim Rushing





      








A premiação pelo Prix Pictet é acompanhada por uma exposição itinerante e pela publicação de um fotolivro em cores, cobrindo em detalhes o trabalho do premiado e dos fotógrafos finalistas, juntamente com imagens de um grupo mais amplo de indicados e ensaios sobre o tema do prêmio produzidos por pensadores, escritores e jornalistas convidados. O prêmio, que concede ao vencedor 100 mil francos suíços (cerca de 82 mil euros ou 109 mil dólares), recebe nomeações sobre um novo tema a cada 18 meses. Os vencedores nas edições anteriores do Prix Pictet são Benoit Aquin, do Canadá (tema: Água); Nadav Kander, de Israel, radicado na África do Sul (tema: Terra); Mitch Epstein, dos Estados Unidos (tema: Crescimento); Luc Delahaye, da França (tema: Energia), Michael Schmidt, da Alemanha (tema: Consumo); Valérie Belin, da França (tema: Desordem); Richard Mosse, da Irlanda (tema: Espaço); e Joana Choumali, da Costa do Marfim (tema: Esperança).

Ao retratar suas origens em imagens que são fragmentos de paisagens, de cenas com crianças, de sua terra natal, sua família e sua intimidade mais pessoal e cotidiana, Sally Mann demonstra e revela, pela arte da fotografia, formas incomuns, polêmicas e também poéticas de nos relacionarmos com as imagens e com os afetos. Nas imagens que a fotógrafa nos dá a ver, o sentido da vida surge em questionamentos por vezes sutis, por vezes tão prosaicos que poderiam fazer parte das fotografias de um álbum de família tradicional, não fossem um ou outro detalhe que traduzem a complexidade dos tempos atuais, suas urgências e suas asperezas que, com muita frequência, são digeridas pela indústria cultural e tomadas como mercadorias.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Imagens de fogo e revolta. In: Blog Semióticas, 16 de dezembro de 2021. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2021/12/imagens-de-fogo-e-revolta.html  (acessado em .../.../…).


Para visitar a exposição do V&A Museum Prix Pictet 2021: Fire,  clique aqui.


Para comprar o livro Hold Still: A Memoir with Photographs,  clique aqui.











21 de maio de 2021

Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado



 




Em Gaia, não existe poluição nem desequilíbrio. As regras  

do jogo determinam: qualquer espécie que produza algo  

nocivo ou que afete o meio ambiente está condenada.  

––  James Lovelock em “Gaia: Um novo olhar  

sobre a vida na Terra” (1979).  


Faz escuro mas eu canto  

porque a manhã vai chegar.  

––  Thiago de Mello em “Madrugada camponesa” (1965).  


   



O fotógrafo brasileiro aclamado como mestre do preto e branco continua seu metódico e sublime trabalho sobre as incomensuráveis belezas da natureza e as terríveis violências que os homens infligem a ela. Sebastião Salgado é, sempre, sinônimo de imagens de impacto: pode ser o formigueiro humano em Serra Pelada, na floresta amazônica do Brasil, ou os campos de petróleo no Kuwait que parecem saídos da ficção científica, os trabalhadores sem terra do Brasil em assembleias nos acampamentos do MST, as manadas de elefantes selvagens lutando contra a extinção nas savanas da África, milhares de pinguins amontoados nas paisagens de gelo da Antártida ou famílias nômades que sobrevivem isoladas em confins remotos da Ásia. Em todos os cenários, os enquadramentos poéticos e melancólicos de Sebastião Salgado impressionam.

Seu último grande projeto foi “Gênesis”, uma expedição que viajou durante anos pelos últimos recantos da natureza mais remotos e ainda preservados no planeta. O projeto gerou em 2013 um fotolivro que bateu recordes de vendas, mesmo sendo uma edição de luxo em capa dura, e uma exposição de fotografias que levou multidões aos grandes museus e aos principais espaços de cultura no Brasil e em vários países. “Amazônia”, a nova investida de Sebastião Salgado, parece tão colossal como foi “Gênesis”. O novo projeto surgiu como resultado de sete anos de expedições fotográficas pelo interior da maior floresta tropical do mundo, com Salgado e sua equipe indo ao encontro dos povos indígenas e do território que abriga aquele ecossistema extraordinário da imensidão verde com exuberante vegetação nativa.













Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado: no alto,
o fotógrafo registrado na abertura da exposição
na Philharmonie de Paris por Patricia Moribe;
acima, também na abertura da exposição
em fotografias de Joel Saget. Abaixo, um
flagrante feito pelo próprio Sebastião Salgado
durante a montagem da exposição; o fotógrafo
em ação na floresta amazônica, em fotografia
de seu filho, Juliano Salgado; e a fotografia
escolhida para o cartaz da mostra, com uma vista
das margens do rio Jaú, no Estado do Amazonas.
Todas as imagens desta página, exceto os três
retratos acima identificados, fazem parte do catálogo
da mostra "Amazônia" de Sebastião Salgado
















.Em “Amazônia”, as mais de 200 fotografias selecionadas mostram retratos da diversidade grandiosa das paisagens com rios e montanhas, incluindo imagens áreas tiradas de aviões e helicópteros durante missões do Exército que o fotógrafo acompanhou, e cenas da vida cotidiana dos diferentes povos da floresta. O que Salgado registra tem uma beleza comovente, ainda mais quando se sabe que a grandiosidade da floresta está cada vez mais sob ataques implacáveis e criminosos, com recordes de desmatamento que vêm sendo sucessivamente batidos desde 2018, quando chegou a poder no Brasil a máfia liderada por Jair Bolsonaro, o presidente da República de posições ultradireitistas, assumidamente fascistas, de ódio e destruição, inimigo do meio ambiente, da justiça e da democracia, um político retrógrado que a maioria da imprensa estrangeira nomeia com os adjetivos “pária” e “genocida”.


Luz e sombras


Trabalhadas em variações de luz e sombras, as fotografias de “Amazônia”, assim como aconteceu com o projeto “Gênesis”, deram origem a um fotolivro em formato pôster de mais de 500 páginas, publicado pela editora Taschen, e ontem foram apresentadas, pela primeira vez, em uma grande exposição que reabriu para o público, depois de um ano de fechamento pela pandemia de covid-19, as luxuosas galerias do Parc de la Villette da Philharmonie de Paris (veja o link para uma visita virtual no final deste artigo). De acordo com o extenso dossiê sobre o projeto distribuído à imprensa, as imagens de “Amazônia” nasceram de uma intenção política de Sebastião Salgado, que procura celebrar o que ainda resta da imensa floresta tropical para conseguir protegê-la.

Depois da temporada em Paris, onde permanecerá até 31 de outubro, a exposição já tem um roteiro itinerante programado até o final de 2022 para outros espaços nos cinco continentes, começando por Londres, depois Roma, incluindo também São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidadesAs primeiras reportagens com destaque na imprensa estrangeira apontam que “Amazônia” surge como o trabalho mais pessoal e mais reivindicativo de Sebastião Salgado, atualmente com 77 anos. O fotógrafo chegou a anunciar que convidaria, para a abertura da exposição em Paris, lideranças indígenas do Brasil, para fazer ouvir suas vozes contra a destruição da floresta e suas mensagens de alerta sobre as consequências que isso traz para o planeta. Por causa da pandemia, os convites foram descartados, mas a presença e as mensagens dos povos indígenas ressoam na exposição em fotografias magníficas e também em gravações de vídeo e no áudio de canções de seus rituais.
















Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
no alto, o fotógrafo e visitantes anônimos na
abertura da exposição em Paris, em fotografias
de Mario Garcia Sanchez. Acima, o catálogo da
exposição em formato pôster com 528 páginas
e capa dura, em edição de luxo da 
Taschen.

Abaixo, três jovens do povo Zuruahã,
no Estado do Amazonas, e uma amostra
dos registros selecionados de "Amazônia"




















Na cenografia da exposição “Amazônia” apresentada nas galerias da Philharmonie de Paris, o visitante é convidado a penetrar na penumbra e nas sombras para observar as imagens capturadas e ampliadas pelo fotógrafo. A viagem do visitante pelas galerias, seguindo os enquadramentos registrados por Sebastião Salgado, também é acompanhada por temas musicais criados para a exposição pelo francês Jean-Michel Jarre, um dos pioneiros da música eletrônica, que utilizou, para a criação e as mixagens de suas composições, os arquivos de sons da Amazônia que integram o acervo do Museu Etnográfico de Genebra, na Suíça.

Há, também, duas salas especiais anexadas à exposição que apresentam projeções em alta definição de mais de uma centena de fotos, com acompanhamento de gravações sinfônicas para “O Mito da Criação do Rio Amazonas”, composição de Heitor Villa-Lobos, e de melodias de acordes incidentais criados pelo músico Rodolfo Stroeter. Nas galerias e nas salas especiais, a natureza exuberante da imensidão verde surge em variações de preto e branco, nas grandes panorâmicas e nos detalhes do ecossistema que ocupa quase um terço do continente sul-americano, envolvendo o Brasil e mais oito países. “A Amazônia é a pré-história da Humanidade, o paraíso na Terra”, destaca Sebastião Salgado no breve texto sobre a mostra distribuído à imprensa.






Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado: acima,
a preparação para um ritual do povo Yawanawá.

Abaixo, imagem da aldeia Yawanawá no
território do Vale do Javari, a segunda maior
reserva indígena do Brasil; o arquipélago fluvial
de Mariuá, localizado no rio Negro; e uma
panorâmica do rio Ituí, no Vale do Javari









Agronegócio criminoso


A abertura da exposição em Paris acontece em um momento de urgência de ações políticas em defesa da região amazônica e do meio ambiente no Brasil. O Congresso Nacional está discutindo e votando um projeto de lei polêmico que altera de forma significativa o controle ambiental e dispensa licenciamento de diversos setores, entre eles as atividades agropecuárias ou obras de infraestrutura e de saneamento básico. Há também inúmeras ações irregulares do governo federal sob o comando das milícias de Bolsonaro, que têm cada vez mais posicionamento explícito pelo desmatamento da Amazônia, do Pantanal de Mato Grosso e de outras áreas de conservação, atuando para reduzir a fiscalização, para burlar as normas e para dar todo estímulo a atividades ilegais de exploração dos recursos naturais. Sebastião Salgado declarou que a ofensiva do desmonte das instituições ambientais é provisório e acabará com o fim do governo Bolsonaro, mas até as próximas eleições, em novembro de 1922, a destruição avança em larga escala.

No dia 19 de maio, véspera da abertura da exposição em Paris, enquanto Sebastião Salgado e sua esposa Lélia Wanick, parceira de todos os projetos, participavam de entrevistas coletivas na França, chegava do Brasil mais uma notícia grave sobre o desmonte premeditado das políticas de proteção ambiental e o envolvimento da gestão Bolsonaro em ações criminosas: uma grande operação foi deflagrada pela Polícia Federal, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), visando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, servidores como o presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, e empresários do setor madeireiro, todos envolvidos com esquemas fraudulentos de exportação ilegal de madeira e contrabando de produtos florestais.








Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, o Monte Roraima, em formato de
mesa, localizado na tríplice fronteira entre
Brasil, Venezuela e Guiana. Abaixo, os xamãs
yanomami preparam o ritual para a subida do
Pico da Neblina (visto ao fundo), no norte do
Estado do Amazonas, fronteira com a Venezuela,
o ponto mais alto do Brasil, com 2.995 metros
de altitude, constantemente encoberto pelas
nuvens. Também abaixo, imagem aérea da
chuva que desaba sobre a Serra do Divisor,
extensa área no Estado do Acre
 

















As entidades e uma parte do aparato de fiscalização e proteção do meio ambiente no Brasil estão temporariamente paralisadas trabalhando para o lado mau da nação”, denunciou Sebastião Salgado, que também se diz confiante de que, em breve, as entidades e o aparato de proteção ambiental voltarão a ser o que sempre foram, cumprindo suas funções dentro da lei e não atuando em cumplicidade com ações criminosas. “Vejam por exemplo a Funai, Fundação Nacional do Índio, que sempre foi uma instituição de proteção à população indígena e era dirigida por antropólogos e sociólogos da maior seriedade. Hoje a Funai protege o agronegócio destruidor e é comandada por um policial sem nenhuma qualificação para o cargo”, alertou Salgado, acrescentando que o mesmo ocorre com o Ibama, uma entidade que sempre teve um papel fundamental nas questões ambientais e que no cenário catastrófico provocado pelo atual governo “não tem mais nenhuma capacidade de pressão e controle”.


Governo predador


Questionado pelos jornalistas, Sebastião Salgado classificou o atual governo brasileiro como “predador”. “O governo Bolsonaro é mau. As propostas dele são todas ruins, seja contra negros, mulheres, indígenas ou ainda a proposta absurda de armar o povo brasileiro. São todas propostas profundamente violentas. Espero que esse mal seja curado nas próximas eleições”, ressaltou o fotógrafo, alertando que a destruição das florestas brasileiras acontece por causa dos hábitos da sociedade de consumo. Segundo Salgado, grande parte da destruição da Amazônia acontece para produzir carne para o mercado externo e também para o cultivo da soja, que é exportada por grandes empresários do agronegócio para alimentar vacas e porcos “franceses, chineses e russos”. “Nós precisamos do apoio do planeta, da pressão política de todos os países, da pressão econômica sobre o governo Bolsonaro para proteger a Amazônia”, completou, convocando as autoridades internacionais a se posicionarem contra a gestão criminosa do governo Bolsonaro.










Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, imagem das instalações na exposição
na Philharmonie de Paris e Sebastião Salgado
em entrevista coletiva durante a exposição
fotografado por Shun Kambe.

Abaixo, Manda Yawanawá, menina da
da aldeia de Escondido, no território de
Rio Gregório, Estado do Acre; e uma família
do povo Korubo, que habita a região oeste do
Estado do Amazonas; e uma família do povo
Ashaninka, que vive no Estado do Acre





.

Sebastião Salgado, que iniciou em 2013 suas expedições para o projeto “Amazônia”, também reconheceu que a mostra atual pode ser considerada uma continuidade do trabalho que ele desenvolveu e apresentou em “Gênesis”, que também mostrava áreas do planeta ainda não afetadas pela civilização e que já incluía imagens da floresta amazônica e dos povos indígenas. Sob o olhar estético personalíssimo de Salgado, o visitante da nova exposição é conduzido pelas belezas do ecossistema tropical que permanece, em grande parte, em sua forma original. Os primeiros painéis que o visitante encontra, nas galerias da Philharmonie de Paris, trazem mapas em grande escala e imagens de satélites que destacam as áreas de reservas indígenas, as terras da União, as unidades de conservação e as zonas atualmente desmatadas e degradadas, que já representam cerca de 20% do território total que recebe o nome de Amazônia.

No mapeamento das reservas dos povos indígenas, Sebastião Salgado apresenta os dez grupos com os quais conviveu durante sua jornada de sete anos, além de outras viagens pontuais que fez à região, a última em fevereiro deste ano. Durante as temporadas com cada tribo, incluindo yanonamis, marúbos, yawanawás, o fotógrafo aguardou autorização para cada contato e repetiu um mesmo ritual entre as árvores: pendurava um lençol branco e abria um largo tapete de plástico no chão, pronto para ser enrolado quando chegasse a chuva que cai quase diariamente em toda a região amazônica. Os povos indígenas com os quais Salgado conviveu durante as expedições, incluindo suas principais lideranças, estão registrados nas imagens em exposição, em fotografias para as quais se prepararam pintando o corpo e enfeitando-se com o cocar das cerimônias.







Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, Tananeloanpikit Vakwë e sua companheira
Tsamavo, da tribo que vive na região do rio Itaquaí,
acima da foz do rio Branco, e tiveram seu primeiro
contato com alguém de fora da tribo em 2015.
Abaixo, crianças do grupo de Vakwë 








Hipótese de Gaia


Amazônia”, a exposição, tem sido classificada como uma experiência mística pela imprensa estrangeira e pelos visitantes. Observando as imagens, a impressão que se tem é que Sebastião Salgado realmente conseguiu registrar e traduzir a beleza e os mistérios da última grande floresta tropical do planeta Terra. A experiência transcendental que emana de suas fotografias tem implicações filosóficas e até teológicas, mas trata-se de um acervo documental de importância política e estética em uma magnitude que ainda não havia sido realizada sobre a imensidão do ecossistema amazônico. E talvez seja, também, um dos melhores exemplos da ecologia profunda – aquele conceito que surgiu desde a década de 1970, a partir da teoria científica conhecida como “hipótese de Gaia”, proposta pelo ambientalista britânico James Lovelock e nomeada em referência ao ser da mitologia grega, Gaia, uma divindade que personificava a Mãe-Terra em suas potencialidades primordiais.






Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, Tupa e Tumi Muxavo, filhos de um
casal da tribo que teve seu primeiro contato com
não indígenas em 1996. Abaixo, Kulutxia, que
teve seu primeiro contato fora da tribo em 2015
e Sebastião Salgado em frente à ampliação de
sua fotografia Xamãs do Xingu, fotografado
por Ueslei Marcelino (Agência Reuters) 









Lovelock, que desde a década de 1960 trabalhava nos comitês científicos da NASA que analisam os parâmetros e possibilidades de vida fora do nosso planeta, passou a desenvolver e defender a teoria segundo a qual a Terra, sua biosfera e seus componentes físicos (atmosfera, criosfera, hidrosfera, litosfera), fazem parte de um complexo e monumental organismo vivo, integrado, planetário e interagente, que mantém as condições climáticas e biogeoquímicas para garantir de forma cooperativa a sobrevivência de todos os seres, incluindo todo o reino vegetal, todo o reino animal e nossa espécie humana. Segundo Lovelock, essa “entidade viva” que é a Terra, que o senso comum também chama de “natureza”, representa nosso mundo físico como uma metáfora para todos os processos biológicos atuantes no planeta.

A teoria de Lovelock foi descrita por ele em suas célebres conferências, em diversos artigos científicos e no livro “Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra”, publicado em 1979 e, desde então, considerado um dos marcos principais do movimento ecológico que surgia naquela época. Segundo os estudos de Lovelock e de seus colaboradores, todos especialistas em diversas áreas do conhecimento, também os componentes inorgânicos do nosso planeta Terra, como as águas e a atmosfera, devem ser considerados parte da biosfera porque são fundamentais e definitivamente integrados, atuando em equilíbrio e tornando possíveis os processos evolutivos que nos habituamos a chamar de “vida”. A conclusão, como alerta Sebastião Salgado, com urgência e gravidade, é inevitável: a destruição de um ecossistema da magnitude da Amazônia, em última instância, provocará o rompimento desse equilíbrio cooperativo que garante a sobrevivência de todos os seres que habitam nosso planeta. Inclusive dos seres humanos.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado. In: Blog Semióticas, 20 de maio de 2021. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2021/05/gaia-amazonia-por-sebastiao-salgado.html (acessado em .../.../…).



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