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27 de março de 2012

Resumo da Ópera







A admiração começa onde acaba a compreensão.

–– Charles Baudelaire (1821-1867).  





Uma definição célebre de Jean de La Bruyère sobre o espetáculo da ópera, datada de 1691, também poderia servir como uma luva para explicar a magia do cinema, que ainda iria demorar três séculos para chegar às plateias. Segundo La Bruyère, "o que caracteriza esse espetáculo (a ópera) é que ele mantém o espírito, os olhos e os ouvidos em igual encantamento". Foi assim desde as origens: nas encenações dos gregos e outros povos na Antiguidade Clássica, séculos antes de Cristo, passando pela retomada e aperfeiçoamento do gênero na Europa da Renascença, as grandes montagens de ópera perseguem a ambição de renovar a ancestral aliança entre as artes visuais, a palavra e a música.

A definição sucinta e perspicaz do francês La Bruyère (1645-1696) – famoso por uma única obra, “Dos Personagens ou Costumes do Século” (1688) – indica que há séculos as engrenagens e estratégias adotadas em cena aumentam e embelezam a ficção, mantendo o espectador na doce ilusão que é todo o prazer do teatro e da arte, em última instância. As ideias de La Bruyère sobre o que em sua época era um novo gênero são citadas como ponto de partida pelo sábio Jean Starobinski em um livro essencial para quem se interessa pela complexidade da ópera: "As Encantatrizes", editado no Brasil pela Civilização Brasileira.







Resumo da ópera: acima, afrescos e
pinturas no teto do foyer da Ópera
de Paris, França. No alto, detalhe de
aquarela de Erich Lessing reproduzida
como ilustração na capa do livro
As Encantatrizes. Abaixo, uma imagem
da ópera nos trópicos: Teatro Amazonas,
em Manaus, inaugurado em 1896 









Embelezado pelas ilustrações de Karl-Ernst Herrmann e Erich Lessing, a edição em português do estudo do veterano pensador da Universidade de Genebra, Suíça, faz um passeio pelos grandes momentos da história do gênero operístico. O traço analítico de Starobinski encontra as origens do espetáculo e traça o “resumo da ópera”: seus grandes autores e compositores, os libretos que marcaram época e fizeram a glória de maestros, sopranos, tenores e barítonos. 

 

Da tradição às novas linguagens



Rivalizando com o teatro, com o cinema e os espetáculos populares, a ópera, lembra Starobinski, já foi sentenciada como morta e acabada mais de uma vez, no passado recente. Mas sempre retorna, revigorada e surpreendendo plateias, seja em montagens tradicionais, seja na experimentação radical ou no investimento em novas linguagens e artifícios tecnológicos.

Linguista, filósofo, especialista em análises dos clássicos de Montaigne, Diderot e Rousseau, professor de literatura, de semiótica e de história da medicina, crítico literário e de artes plásticas, Starobinski, que nasceu em 1920, é celebrado nos meios acadêmicos como um dos principais pensadores vivos. No novo livro, persegue respostas para o "encantamento" que a ópera vem perpetuando através dos séculos e empreende um vigoroso diálogo com pensadores de diversas épocas.







Resumo da ópera: o lendário tenor
italiano Enrico Caruso (1873-1921),
fotografado como protagonista de
Rigoletto, de Giuseppe Verdi, na
montagem de 1904 do
Metropolitan Opera House de
Nova York. Caruso é apontado por
unanimidade como o maior nome
da ópera em todos os tempos.

Abaixo, o cartaz original da estreia
em 1854 da ópera Rigoletto e uma
pintura em óleo sobre tela também de
1854 que retrata uma vista panorâmica do
Gran Teatro La Fenice (em português,
"a fênix"), teatro tradicional de Veneza


















Sob o crivo intelectual de Starobinski, teatro, poesia, pintura, escultura, dança, música e todas as diversas manifestações híbridas da arte que convergem ao vivo para a realização da montagem operística são reveladas através da estrutura do conto de fadas. O “faz de conta”, ele alerta, é determinante para o encanto da montagem, que por sua vez influenciou outros gêneros através do tempo e está na origem do próprio espetáculo do cinema, com o qual a ópera rivalizou desde a primeira metade do século 20. 

Autor de “As Palavras sob as Palavras” (1971) e “A Invenção da Liberdade” (1964), entre outros estudos fundamentais lançados no Brasil, em “As Encantatrizes”, que foi publicado e premiado em seu país de origem em 2005, Starobinski abre a discussão sobre o gênero do espetáculo. Com instrumentos tomados de empréstimo dos estudos em história e filosofia, o autor busca o contexto e a estrutura intersemiótica das diversas encenações e retoma o surpreendente verbete "ópera" da primeira "Enciclopédia" organizada por Denis Diderot (1713-1784):










Resumo da ópera: no alto, capa do libreto
da ópera Carmen, de Bizet. Acima,
a diva Maria Callas (1923-1977).
Celebridade da ópera e contraponto
para Caruso, Callas é tida por unanimidade
como maior soprano de todos os tempos.

Na foto acima, Callas em 1953, no
papel-título de Tosca, de Puccini, na
montagem do La Scala de Milão, sob a
regência de Victor De Sabata, que teve
uma gravação de áudio considerada um
padrão internacional de excelência em
ópera. Abaixo, Callas em 1954 no
camarim do La Scala, onde estava em
cartaz com a ópera Norma, de Bellini

  







"É o divino da epopeia em espetáculo. Como os atores são deuses ou heróis semideuses, eles devem se anunciar aos mortais através de uma inflexão de vozes que ultrapasse as leis do verossímil habitual. Suas operações se assemelham a prodígios. É o céu que se abre, o caos, os elementos que se sucedem, uma nuvem luminosa que traz um ser celeste. É um palácio encantado que, ao menor sinal, desaparece e se transforma em deserto", aponta Diderot.



Uma certa sinestesia



Contra o esquematismo do enciclopedista, Starobinski argumenta que "uma ópera sem divindades nem feiticeiros, mas na qual as paixões são grandes e nobres, também pode responder à expectativa do encantamento". A investigação também recorre a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), para quem a ópera se esforça por reunir todos os charmes das belas-artes na ação apaixonada.

"As partes constitutivas da ópera são o poema, a música e a cenografia", determina Rousseau, citado por Starobinski. Nas análises empreendidas pelo sábio do século 18, o autor de “As Encantatrizes” percebe uma atenção ao espetáculo que antecipa uma certa sinestesia de apelo simultâneo aos sentidos: "Pela poesia se fala ao espírito; pela música, ao ouvido; pela pintura, aos olhos, e o todo deve somar-se para comover o coração e levar ao mesmo tempo, através de diversos órgãos, a mesma impressão até ele".








Resumo da ópera: no alto, Maria Callas 
no teatro La Scala de Milão, Itália, onde
interpretou em 1955 a cortesã Violeta na
mais célebre montagem de La Traviata, de
Verdi. Acima, a maior da intérpretes líricas
brasileiras, Bidu Sayão (1902-1999),
grande sucesso internacional das décadas
de 1920 a 1950. Na fotografia, Bidu Sayão
em 1940, na estreia de La Traviata no
Metropolitan Opera House de Nova York.

Abaixo, reprodução da capa do
libreto original da estreia em 1870 de
O Guarani, ópera de Carlos Gomes
baseada no romance homônimo de
José de Alencar. "O Guarani" foi o primeiro
e ainda hoje o maior sucesso internacional
de uma ópera de compositor brasileiro









A partir do século 19, destaca o autor de “As Encantatrizes”, a ópera escolherá seus personagens não somente no repertório da mitologia clássica, mas também na crônica social e mundana – em exemplos patentes como a cigana Carmen, que a partitura de Bizet adaptou da novela romântica de Prosper Merimée, ou a cortesã Violeta de "La Traviata", de Verdi, por sua vez baseada no romance "A Dama das Camélias", de Alexandre Dumas Filho – personagens que também tiveram versões memoráveis no último século no cinema e nos palcos de teatro do mundo inteiro.

As Encantatrizes” de Starobinski convida o leitor a uma extensa e sofisticada viagem no tempo, em visita a alguns dos principais compositores, suas obras e, claro, as grandes atrizes/cantoras – objeto central do estudo apresentado. As cenas políticas, sociais e estéticas da Europa do século 18 e 19 são desvendadas sob a ótica da ópera enquanto gênero de espetáculo, muitas vezes considerada como a melhor tradução para o espírito da época.













Resumo da ópera: do canto lírico para a
mise-en-scène dos estúdios de Hollywood
e do cinema europeu,  a partir do alto,
Greta Garbo e Robert Taylor em cena de
"Camille" (1936), primeira versão do cinema
falado para o romance "A Dama das Camélias",
de Alexandre Dumas, também adaptado por
Verdi para La Traviata. Acima, duas versões
emblemáticas do cinema para a ópera
Carmen, de Bizet: Rita Hayworth em cena com
Glenn Ford no filme "Os Amores de Carmen",
dirigido em 1948 por Charles Vidor; e
Laura del Sol com Antonio Gades em
"Carmen", filme de 1983 de Carlos Saura. 

Abaixo, Vivien Leigh em
"Anna Karenina", filme de 1948, com direção
do francês Julien Duvivier, baseado no romance
do russo Liév Tólstoi que teve sua primeira
versão para ópera em 1904, pelo compositor
italiano Edoardo Granelli. Também abaixo, uma
diva do cinema italiano, Claudia Cardinale,  no
grandiloquente "O Leopardo", filme de 1963 de
Luchino Visconti, cineasta e também diretor de
suntuosos espetáculos de ópera e de teatro.
Em O Leopardo, baseado no romance de
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Cardinale
contracena com Alain Delon (foto do beijo),
além de Burt Lancaster e grande elenco














Didático, minucioso, poético, Starobinski revela os bastidores da apresentação de espetáculos memoráveis, como as primeiras adaptações musicais dos dramas, tragédias e comédias de William Shakespeare (1564-1616), assim como os sucessos instantâneos e duradouros de obras como “As Bodas de Fígaro” – imortalizada pela montagem em quatro atos, de Wolfgang Amadeus Mozart, que estreou em 1786, em Viena, com libreto em italiano.


Semiótica da recepção


Não por acaso citada por Starobinski entre as óperas mais populares de todos os tempos, “As Bodas de Fígaro” foi uma criação original do francês Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1700), também autor de “O Barbeiro de Sevilha”. Com seu estudo centrado na união das palavras “encantar” e “cantatriz”, em francês “enchanteresses”, como indica o título do livro, Starobinski percorre a trajetória dos grandes clássicos, mas justifica que escolheu retratar em destaque personagens sempre no feminino.

A figura feminina domina a cena e cada partitura que sobreviveu ao tempo, apesar de existirem protagonistas masculinos, também presentes na trajetória que o livro percorre, ainda que em segundo plano. Mais que um esforço de enumeração histórica, ao resgatar dos gêneros da narrativa e do espetáculo às questões de compasso musical e de perspectiva geométrica do campo de visão, “As Encantatrizes” vai muito além dos domínios restritos à ópera.









Contrastes da Ópera Contemporâneaacima,
Phillip Addis, Carla Huhtanen e Patrick Jang em
2010, na montagem de As Bodas de Fígaro,
de Mozartpatrocinada pela companhia
Elgin Theatre de Toronto, Canadá.

Abaixo, Parsifal, de Wagner, na montagem
experimental de 2005, realizada em Los Angeles,
sob o comando de Bob Wilson; e as experiências
em 3D de Pina, documentário de 2011 de
Wim Wenders que reúne dança com ópera
e novas tecnologias em homenagem a
Pina Bausch, coreógrafa, dançarina,
pedagoga da dança e diretora da
Tanztheater Wuppertal, companhia
de balé da Alemanha. Pina morreu em
2009, aos 68 anos, após o término
das filmagens com Wenders










Erudito ao extremo e narrador hábil, Starobinski alcança conceitos e teorias mais recentes sobre a Semiótica da Recepção, terreno que o italiano Umberto Eco e o francês Roland Barthes estenderam de forma pioneira às artes em geral e aos processos midiáticos e técnicos que proliferaram nas últimas décadas. Eco e Barthes também são lembrados e citados no mergulho em profundidade que Starobinski faz no mundo da ópera, assim como Erich Auerbach, René Wellek, George Steiner, Harold Bloom...

Na investigação esquadrinhada por Starobinski, poesia e teoria direcionam o entendimento acerca do fenômeno que o espetáculo há séculos perpetua: “Nas mais belas representações operísticas percebe-se a dupla energia de uma memória que persevera e de uma imaginação que inventa. No momento do espetáculo, e desde que a encenação não o prejudique, se produz o único encantamento no qual, nós, retardatários, somos admitidos”. 


 








Resumo da ópera: três nomes da ópera italiana
que marcaram o século 20 –– a partir do alto,
1) Renata Tebaldi (1922-1974), que rivalizou
com Maria Callas no posto de maior soprano,
paramentada como Tosca, na montagem de 1951 do
La Scala; 2) o tenor Luciano Pavarotti (1935-2007),
que popularizou a ópera e disputou recordes de
venda de CDs e DVDs com estrelas do rock
e da música pop; e 3) o mestre das montagens
líricas e também um grande nome do cinema,
Luchino Visconti (1906-1976), em 1963 (acima),
durante as filmagens de O Leopardo, e com
Maria Callas e Leonard Bernstein (abaixo),
em Milão, em 1955, nos bastidores da montagem
da ópera La Sonnambula, de Vicenzo Bellini.

Também abaixo, três fotografias de Cecil Beaton:
Maria Callas no célebre retrato de 1955 em estúdio,
nas versões em preto e branco e em cores; e uma cena
de flagrante dos bastidores do editorial fotografado
por Beaton em junho de 1948 para a revista "Vogue"



















Ao final do percurso investigativo e analítico que Starobinski empreende em "As Encantatrizes", como nas melhores montagens dos clássicos presenciados ao vivo pelas plateias, resta ao leitor um sentimento que para alguns talvez possa ser definido como fascinação. Para outros, uma impressão difusa pela recompensa de ter encontrado nas teses do pesquisador de Genebra algumas respostas sobre a complexidade do estranhamento que o espetáculo operístico proporciona. 

Na conclusão que o autor alcança, depois das teorias e muitas trajetórias alinhavadas em pouco mais de 300 páginas, a fascinação dos sentidos e o encanto declarado pela complexidade se equivalem. Não por acaso, encanto e fascinação são os mesmos sentimentos que fazem a ópera transcender o passado e ainda assombrar o presente.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Resumo da ópera. In: Blog Semióticas, 27 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/resumo-da-opera.html (acessado em .../.../...).



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Resumo da ópera: acima, dois momentos
distintos e históricos do canto lírico, com
a diva Maria Callas em “Habanera”, ária
da ópera Carmen, que a partitura do
francês Georges Bizet adaptou do
romance de Prosper Merimée; e
Luciano Pavarotti com Grace Jones
interpretando ao vivo, em 2002, em
Angola, África, uma ária da ópera
Werther, do francês Jules Massenet,
baseada no romance do alemão
Johann Wolfgang von Goethe










24 de setembro de 2011

Mahler em Veneza





Pegli occhi fere un spirito sottile,
che fa’n la mente spirito destare,
dal qual si move spirito d’amare,
ch’ogn’altro spiritel(lo) fa gentile.

Pelos olhos traz um espírito sutil,
que faz na mente o espírito despertar,
do qual se move o espírito de amar,
que todo outro espírito faz gentil.

–– Guido Cavalcanti (1255-1300).


Morto aos 51 anos, em 1911, o compositor e regente de orquestra austríaco Gustav Mahler é sempre lembrado por quem gosta de cinema por conta de sequências quase abstratas na abertura, no encerramento e em várias passagens de “Morte em Veneza” (1971), do cineasta italiano Luchino Visconti, por sua vez uma adaptação do romance homônimo do alemão Thomas Mann (1875-1955). Difícil esquecer o filme de Visconti e os acordes de cortar o coração do Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler, movimento lento e calmo, melancólico, nostálgico. No filme de Visconti a presença de Mahler se dá de forma indireta, na caracterização do ator Dirk Bogarde, nas cenas de flash-back e na música que pontua a trilha sonora, mas quatro anos depois da estreia de “Morte em Veneza” um outro filme, escrito e dirigido por Ken Russell, iria contar detalhes sobre a biografia do compositor e traçar paralelos entre sua vida e sua música.

Em “Mahler”, que chegou aos cinemas em 1974, Ken Russel apresenta Robert Powell como Gustav Mahler e Georgina Hale no papel de sua esposa Alma, os dois enfrentando um casamento fracassado em uma narrativa em nada linear e conduzida por pesadelos e memórias em tom surrealista. A trama condensa a infância de Mahler e sua trajetória dramática, passando pelo suicídio do irmão, sua conversão do judaísmo para o catolicismo, seus problemas profissionais e conjugais e a morte de sua filha. O problemas conjugais do compositor também fornecem o pano de fundo para um filme recente, “Mahler no Divã” (Mahler auf der Coach), escrito e dirigido em 2010 em parceria de pai e filho pelos alemães Percy Adlon e Felix Adlon.

Para além da complexidade nas referências dos filmes muito diferentes entre si de Luchino Visconti, de Ken Russell e de Percy e Felix Adlon, o compositor Gustav Mahler se mantém como um dos grandes nomes do panteão da música erudita e teve seu prestígio em trajetória crescente no decorrer do último século. Consagradas no repertório de referência de grandes orquestras e instrumentistas por seu intenso lirismo, as 10 sinfonias do compositor, com surpreendentes efeitos de harmonia e andamento, são executadas e usadas por muitos com intenções diversas, de clássicos do cinema a anúncios publicitários de automóveis na TV. Para os amantes da música de Mahler, que seu amigo e confidente Sigmund Freud definiu como uma das manifestações mais importantes e autênticas da complexidade do humano, uma boa notícia: a edição nacional de um estudo biográfico que mereceu elogios dos críticos mais exigentes da imprensa internacional, “Gustav Mahler – Um Coração Angustiado” (Autêntica Editora), em capa dura e ilustrado.







Gustav Mahler  fotografado em 1888.
No alto, foto de Mario Tursi nas filmagens
de Morte em Veneza (1971), uma das
obras-primas de Luchino Visconti.

Abaixo, Mahler em fotografias de 1907
e fotografado nos arredores de Viena
ao lado da esposa, Alma Mahler












Um subtítulo destacado na capa do livro, entretanto, pode levar a um pequeno engano. “Uma biografia em quatro movimentos”, anuncia a edição nacional, traduzida por Cristina Antunes do original “Gustav Mahler o El Corazón Abrumado”. A ressalva é um alerta sobre uma sutileza que a maioria dos leitores talvez nem sequer perceba: não se trata de uma biografia no sentido tradicional, e sim de uma pesquisa minuciosa sobre a obra do compositor e a história de sua época. Nomear o livro como estudo historiográfico sobre a obra de Mahler seria a melhor definição. Escrito por um argentino, o poeta, ensaísta, crítico musical e psicanalista Arnoldo Liberman, que atualmente reside na Espanha, o livro reúne quatro estudos – os quatro movimentos do subtítulo – o primeiro deles publicado em 1983.



Biografia pouco convencional



Não ser exatamente uma biografia no sentido convencional do termo, porque destaca os percalços da obra e não somente a história de vida do biografado, é menos um problema que uma qualidade. O próprio Arnoldo Liberman – que define Mahler como “um homem corajoso e frágil, pleno de perplexidades, de ambivalências inevitáveis, de encontros sempre adiados, de um sim é não que procurava o absoluto no tempo religiosamente fugaz de um acorde" – declara não ter intenção de rivalizar com a obra (inédita no Brasil) de Henry-Louis de La Grange tida como biografia monumental, “Gustav Mahler”, apontada por Liberman como estudo definitivo sobre o compositor.







Admirador que se confessa apaixonado pelas melodias do compositor tomado como protagonista do relato, Liberman, nos quatro estudos seguidos por um posfácio tão breve quanto esclarecedor, lança as coordenadas sobre os percalços históricos que coincidem com a trajetória das composições de Mahler. Em busca da história por um caminho não exatamente preocupado com a ordem cronológica ou com uma detalhada enumeração de dados biográficos, Liberman vai sutil e sistematicamente levando o leitor, seja ele conhecedor ou não de música clássica ou da obra de Mahler, a aprofundar-se no entendimento de uma personalidade fascinante.

Não pretendi esgotar o tema Mahler. Sinto até certo pudor em esclarecê-lo. Mahler é – como os fantasmas queridos que povoam nosso mundo interior – um prolongado discurso. Momentos desse discurso penetram nestas páginas”, confessa o autor, que constrói um mosaico instigante sobre o homem, o músico, seu modo de ver o mundo, seus constantes questionamentos e dúvidas, suas paixões e explosões de humor, seu processo criativo, suas sinfonias, sua vida familiar, as posições políticas que adotou e seu percurso até chegar a diretor da Ópera de Viena, na cidade onde viveu boa parte de sua vida – “e lugar onde parece ter nascido todo o século XX”, aponta Liberman. 







Nomeado “Kappellmeister” da Ópera da Corte de Viena aos 37 anos, foi quando teve início a parte mais prestigiosa e mais importante da carreira de Mahler. Durante 10 anos, o compositor e regente de orquestra permaneceu em Viena e passou a ser considerado um grande perfeccionista. Os conflitos, tanto com seus chefes como com seus subalternos, surgiam da busca frenética pelos acordes perfeitos e harmoniosos. E durante os ensaios, mesmo quando os músicos tinham desempenhos brilhantes, ele exigia mais e mais, o que muitas vezes gerava discussões acaloradas e tensão entre os integrantes da orquestra. 



Tradição é desordem



Liberman destaca que Mahler costumava dizer: “Tradição é desordem… No plano humano faço todas as concessões; no plano artístico, nenhuma. Não posso suportar os que se desleixam, só os que exageram me interessam”. Tanto perfeccionismo fez que com com que o maestro ganhasse alguns admiradores, mas também muitos inimigos. Um capítulo da maior importância na sua trajetória aconteceria em 1901, quando Mahler conheceu a filha do pintor Emil Schindler, Alma Schindler, com raro talento como pianista e compositora e cerca de 20 anos mais nova que ele, além de ser uma jovem notável por sua beleza e muito mais alta que Mahler, que era um homem de estatura física abaixo da média de seus conterrâneos e contemporâneos.

Mahler e Alma casaram-se em 1902 e tiveram duas filhas, Anna (1904-1988), que depois se tornou escultora, e Maria Anna (1902-1907), que morreu em 1907. Neste mesmo ano, a confirmação de uma doença cardíaca e uma intensa campanha anti-semita fez com que Mahler perdesse o emprego na Ópera. Como se não bastasse, também descobriu pouco tempo depois uma relação amorosa que se desenvolvia entre sua esposa e um amigo, o estudante de arquitetura Walter Gropius, que anos depois ganharia reconhecimento como um dos principais nomes da arquitetura do século 20 e como fundador da Escola Bauhaus. Em 1915, quatro anos depois da morte de Mahler, Alma e Walter Gropius se casariam. 









Alma Schindler Mahler em 1902, na época
de seu casamento com Mahler, e com as duas
filhas do casal, Maria Anna e Anna. Abaixo,
Robert Powell e Georgina Hale em cenas de
"Mahler", filme de 1974 de Ken Russell;
Dirk Bogarde em Morte em Veneza”; 
e o casal Gustav Mahler e Alma fotografado
em Roma e Veneza, Itália, em 1907.
Também abaixo, Mahler em duas
fotografias datadas de 1907









No livro, Arnoldo Liberman relata as controvérsias e aponta que a demissão de Mahler foi em parte provocada pela reação da imprensa anti-semita e por seus muitos inimigos, os declarados e os não declarados, que nunca respeitaram sua música. Muitas das obras que escreveu não chegaram sequer a ser executadas em público enquanto ele esteve vivo. Depois da demissão, Mahler aceitou um convite para dirigir em Nova York a Metropolitan Opera. A estreia nos Estados Unidos aconteceu em 1908, com a regência de “Tristão e Isolda”. Mas apesar da boa recepção que teve em Nova York, em pouco tempo terminou sendo trocado por Arturo Toscanini. 

Há controvérsias também sobre esta segunda demissão, mas Liberman concorda que por certo o perfeccionismo de Mahler tenha sido o maior impedimento para sua carreira de sucesso na América. Se como maestro Mahler angariava inimigos, por conta de seu perfeccionismo radical, sua obra como compositor demorou mais ainda a ser plenamente aceita e reconhecida. “Os estudiosos da música ainda hoje são unânimes em reconhecer que sua obra é de difícil execução e uma das mais complicadas dentro do repertório erudito”, destaca Liberman. 











Há ainda o depoimento de Carlo Maria Giulini (1914-2005), um dos grandes nomes da regência do século 20. "Não se pode tocar Mahler como se toca Brahms. É uma questão, em primeiro lugar, de saber colocar notas e dedos no devido lugar e, depois, de tentar entender a concepção. Mahler exige um som especial, além de percepção especial do temperamento e da estrutura. A orquestra deve entender isso para que, na hora da apresentação, a música faça parte do corpo. Mahler exige atenção especial". 



"Meu tempo há de chegar"



Herdeiro da tradição dos músicos alemães – de Johann Sebastian Bach e da “Escola de Viena” de Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, além de Schumann, Mendelssohn e, especialmente, Richard Wagner, de quem foi contemporâneo – Mahler costumava confidenciar a sua esposa Alma e aos amigos mais próximos: “Meu tempo há de chegar” 

E de fato, seu tempo chegou, ressalta Liberman na biografia, mas foi uma glória que floresceu muito tempo após sua morte. Depois da Segunda Guerra Mundial, pelas mãos de uma geração de regentes e admiradores que o conheceram, como o norte-americano Leonard Bernstein, em pouco tempo ciclos completos das sinfonias de Mahler foram gravados e suas obras incorporadas pelas mais importantes orquestras.












Questões filosóficas, psicológicas, comportamentais, sociais e políticas do nascimento do século XX sinalizam a trajetória de vida do compositor, nas palavras de Liberman “um homenzinho de pequena estatura e vasta cabeleira negra, castigado pelo destino e duramente perseguido pelos críticos da época, em especial pelo fato de ser judeu”. Não é a toa, destaca o relato de Liberman, que Mahler chegou a declarar e indagar um dia:

Fui três vezes exilado: boêmio para os austríacos, austríaco para os alemães e judeu para todo o mundo. Em todos os lugares, um intruso”. Sigmund Freud é presença constante no livro e na vida de Mahler, mas não a única personalidade marcante nas suas relações cotidianas. Lá estão, entre outras personalidades de destaque, grandes nomes do mundo da música (Brahms, Anton Bruckner, Arnold Schönberg, Alban Berg, Bruno Walter), das artes plásticas (Gustav Klimt, Kolo Moser, Carll Moll, Egon Schiele, Oskar Kokoschka), da filosofia e da linguística (Mach, Schlick, Carnap, Wittgenstein), da literatura (Franz Kafka, Richard Dehmel, Peter Altemberg, Rainer Maria Rilke, Karl Kraus...).














No alto e acima, Mahler em fotografias
de autor desconhecido, datadas de 1892
e de 1908, durante uma temporada de
férias em Dobbiaco, norte da Itália.

Abaixo, dois registros do diretor Luchino Visconti
com Dirk Bogarde nas filmagens de Morte em Veneza.

Também abaixo: 1) o cartaz do filme Mahler no Divã,
de Percy Adlon e Felix Adlon, com Johannes
Silberschneider como Mahler e Karl Markovics
no papel de Freud; 2) Dirk Bogarde com
Björn Andrésen em cenas de Morte em Veneza
e na antológica sequência final do filme;
3) Mahler com as duas filhas em 1905;
4) a referência biográfica a Mahler em
uma breve sequência do filme de Visconti;
5) o compositor homenageado
em seu centenário de morte com o
selo postal da Áustria













Mahler no divã


Permeiam o relato biográfico e apaixonado do livro a citação de inúmeros trechos de cartas trocadas entre Gustav Mahler e seus amigos, seus mestres e, principalmente, as cartas para Alma Mahler, sua esposa e seu único e grande amor. Além do livro de Liberman, a trajetória dramática de Mahler e sua obra, seus “lieder” com orquestra e suas sinfonias, também chegaram aos cinemas com a estreia recente de “Mahler no Divã”, um caso curioso de filme realizado em parceria por pai e filho diretores e roteiristas, Percy Adlon e Felix Adlon.

Percy Adlon é conhecido no Brasil por dois filmes que alcançaram a condição de “cult movies”, ambos realizados em parcerias com sua esposa, a também cineasta e roteirista Eleanor Adlon: “Bagdad Café”, de 1987, e “Rosalie vai às compras”, de 1989, os dois tendo como protagonista a atriz alemã Marianne Sägebrecht. “Mahler no Divã”, lançado na Alemanha no final de 2010 para homenagear os 150 anos de nascimento do compositor, foi elogiado por unanimidade entre público e crítica. Assim como em um dos “movimentos” destacados no livro de Liberman, no filme de Percy Adlon e Felix Adlon entra em cena uma passagem biográfica muito específica: um lendário encontro que Gustav Mahler teve com Sigmund Freud, em Leiden, Holanda, numa sexta-feira, dia 26 de agosto de 1910.






 

O encontro com Freud é dramático, tanto no livro de Liberman como no filme “Mahler no Divã”. Sujeito atormentado com as questões de seu tempo, com os impasses da arte da música e com ciúmes obsessivos, Mahler estabeleceu para seu casamento a exigência de que Alma desistisse de atuar como compositora para se dedicar a uma vida tradicional como esposa e mãe. A crise insolúvel vem quando ele descobre que Alma o traía com o jovem arquiteto Walter Gropius. Torturado pelas dúvidas e amargurado, o maestro recorre a uma consulta com o médico mais famoso de sua época, que naquele momento estabelecia as bases da psicanálise.

A única sessão psicanalítica que Mahler e Freud protagonizaram durou mais de quatro horas e transcorreu enquanto eles caminhavam pelas ruas da cidade. Mais importante que isso: tanto Mahler quanto Freud foram extremamente econômicos nos relatos sobre aquele dia e sobre os assuntos que abordaram. Um ano depois, morando em Nova York, Mahler teve uma faringite grave e, apesar da febre alta, dirigiu até o fim um concerto de forma impecável e intensa, diante de uma grande plateia. Em seguida, sofreu um colapso. Desde aquele momento, não mais trabalhou nem se recuperou. Regressou a Viena, para se tratar, mas morreu poucas semanas depois, em 18 de maio de 1911.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Mahler em Veneza. In: Blog Semióticas, 24 de setembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/09/mahler-em-veneza.html (acessado em .../.../…).




 






























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