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27 de agosto de 2012

Biografia de uma canção






Billie Holiday consegue expressar, em apenas um refrão, 
mais emoção do que a maioria das atrizes em três atos. 

––  Jeanne Moreau.    


Poucas vezes uma canção foi tão longe ao denunciar a situação aviltante do preconceito e da violência indiscriminada contra os negros. E o acaso e a sorte fizeram com que esta mesma canção ficasse para sempre identificada com uma personalidade que superou todos os obstáculos imagináveis para permanecer, em primeiro plano, no Olimpo das grandes cantoras de todos os tempos: Billie Holiday (1915–1959).

Billie tinha 23 anos em 1939, quando cantou pela primeira vez “Strange Fruit” com seus versos sofridos que descrevem o horror dos linhamentos de negros no Sul dos Estados Unidos. A trajetória da canção que merece o título de emblemática está descrita em “Strange Fruit – Billie Holiday e a Biografia de uma Canção”, livro que o jornalista norte-americano David Margolick publicou no ano 2001 e que agora chega ao Brasil em edição da Cosac Naify, com tradução de José Rubens Siqueira e apresentação de André Midani, veterano “capo” da indústria do disco no Brasil.

Apaixonado por Lady Day, como é de praxe com todos os amantes do jazz e do blues, Margolick mergulhou fundo na história e no significado de “Strange Fruit”. Seu livro-reportagem esclarece e desfaz equívocos sobre a canção – uma obra alegórica e comovente que o historiador Leonard Feather definiu como "o primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo".










 
Biografia de uma canção: no alto
e acima, Billie Holiday no estúdio,
fotografada em 1958 por Dennis Stock.
Abaixo, Billie no palco, 
no Sugar Hill Nightclub,
em Newark, New Jersey, em abril de 1957,
em fotografia de Bob Parent; e acompanhada
pela orquestra de Teddy Wilson no
Newport Jazz Fest, em 1954, em
fotografia de John Vachon. Também
abaixo, fotografada nas ruas em 1956,
por Moneta Sleet Jr. para uma reportagem
especial da revista Ebony; e em sua
última sessão de gravações no estúdio
em 3 de março de 1959










No mesmo ano em que canta nos palcos “Strange Fruit” pela primeira vez, Billie grava a canção em um disco em 78 rotações pelo selo Commodore. Anos depois, voltaria a gravá-la com outro arranjo pelo mesmo selo e outras quatro vezes para a Verve. Nas últimas décadas, muitos arriscaram novas versões para a canção, lembra Margolick, que destaca a gravação de Nina Simone e cita algumas outras muito além do universo das fronteiras do jazz e do blues, incluindo de Cassandra Wilson a Tori Amos e Siouxie & The Banshees, de Sting e UB-40 a Dee Dee Bridgewater, de Abbey Lincoln a Carmen McRae e Patti Smith, de Diana Ross a Jeff Buckley, Sidney Bechet, John Legend, Marcus Miller, Cocteau Twins, Beth Hart, Rokia Traoré e Björk.

O livro de Margolick, que foi sucesso imediato nos Estados Unidos e na Europa, deu origem a outros relatos “biográficos” escritos por jornalistas sobre discos e canções. Alguns deles também alcançaram a condição de best-sellers, caso de “A Love Supreme” (2002) e “Kind of Blue” (2007), de Steve Khan, publicados no Brasil pela Barracuda, e “Stardust Melodies” (2002), em que Will Friedwald apresenta a trajetória de clássicos do cancioneiro norte-americano, como “Body and Soul”, “Night and Day” e “Saint Louis Blues”. O primeiro exemplar da safra nacional foi anunciado para chegar às livrarias em 2015: o poeta e ensaísta Eucanaã Ferraz está mergulhado na pesquisa para contar a história de um marco da bossa nova, “Garota de Ipanema”, canção criada por Tom Jobim e Vinicius de Moraes. “Garota de Ipanema – A biografia de uma canção” será publicado pela Companhia das Letras.



Relato em polifonia



Primeiro destaque do novo gênero que apresenta biografias de discos e canções, o livro de Margolick aposta no que o russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895–1975), um dos pioneiros dos estudos em Semiótica, batizou de “polifonia”: aquela estratégia narrativa em que fontes e versões distintas, apresentadas simultaneamente, contribuem para o melhor entendimento da história. Ao leitor, Margolick confessa que demorou a entender que os “estranhos frutos” em questão não eram cerejas ou maçãs, e sim negros enforcados e dependurados em árvores nos estados ao Sul de seu país.  














A origem da canção e todas as gravações de “Strange Fruit” feitas por Billie são investigadas por Margolick, desde aquela primeira noite no salão do Café Society, um bar construído no porão da Sheridan Square, no Greenwich Village de Nova York, um território frequentado por artistas e intelectuais em que a intolerância e o preconceito racial não eram admitidos. Uma das fontes para o relato incomum de Margolick é a autobiografia “Lady Sings the Blues”, publicada por Billie Holiday pouco antes de sua morte, em 17 de julho de 1959, em um quarto do Hospital Metropolitano de Nova York, pouco tempo depois de ter o quarto invadido por policiais. O atestado de óbito registrou que a morte ocorreu em decorrência de edema pulmonar, cirrose hepática e insuficiência cardíaca.

Não houve nem mesmo uma tentativa de aplauso quando terminei”, escreveu Billie em sua autobiografia. “Então uma pessoa começou a aplaudir nervosamente e, de repente, todo mundo estava aplaudindo”. Naquela noite, Billie deixou o palco em silêncio, sem retornar para o bis habitual, porque ela estava mesmo com medo de interpretar uma canção que atacava de frente o ódio racial – recorda Barney Josephson, que era dono do Café Society em 1939 e foi entrevistado por Margolick em 1998.








Biografia de uma canção: abaixo,
Billie Holiday fotografada por Carl
Van Vechten para a a capa da
revista Down Beat, em fevereiro
de 1947. Acima, em 1949, também
fotografada por Van Vechten










A entrevista com Barney Josephson, publicada pela revista “Vanity Fair” em 1998, foi ampliada e deu origem ao livro, que abarca a trajetória de Billie Holiday e o avanço nas lutas contra a conivência da sociedade norte-americana com o preconceito e os linchamentos de negros. Através de outras entrevistas e de pesquisas em jornais e revistas, Margolick repercute aquela primeira apresentação da canção por Billie e o destaque que “Strange Fruit” foi ganhando nas apresentações das noites seguintes no mesmo clube e em outros palcos, numa época em que ainda nem se sonhava com a música de protesto. 

 

Branco, judeu, comunista



O jornalista também investiga as relações de “Strange Fruit” com o movimento pelos direitos civis, que só eclodiria 16 anos depois, após a prisão de Rosa Parks, ativista que se negou a ceder seu lugar no ônibus para um branco na cidade de Atlanta, na Geórgia. Os números garimpados por Margolick impressionam: de acordo apenas com os registros oficiais, entre 1889 e 1940 mais de 2.700 negros foram linchados e assassinados no Sul dos EUA.
 







David Margolick, autor do livro
“Strange Fruit Billie Holiday e
a Biografia de uma Canção”.
Abaixo, Billie na capa da revista
Ebony Magazine em julho de 1949;
e a gravação original de "Strange Fruit"
feita em 1939 por Billie Holiday
pelo selo Commodore Records









.


Daquela noite no Café Society até sua morte em 1959, aos 44 anos, Billie Holiday causava comoção todas as vezes que entoava “Strange Fruit”, tanto que tomou para si a autoria da canção. Margolick comenta o passo a passo de sua investigação a partir do momento em que entendeu o significado dos versos entoados por Billie. E confessa que seu interesse pelo assunto cresceu quando ele descobriu que o autor da canção era Abel Meeropol, um homem branco, judeu, membro do partido comunista e considerado por seus amigos um grande idealista, tanto que adotou os filhos do casal Julius e Ethel Rosenberg, executados nos Estados Unidos em 1953 sob a acusação de serem espiões a serviço da extinta União Soviética.

Admirado por lendários compositores como Kurt Weill e Ira Gershwin, Abel Meeropol tinha pouco mais de 30 anos e era professor no bairro negro do Bronx, em Nova York, quando viu pela primeira vez uma fotografia feita por Lawrence Beitler. A foto, publicada na revista “New York Teacher”, estampava o linchamento e o enforcamento de dois negros em 1930, em Indiana. O impacto da imagem levou Meeropol a escrever um poema, “Bitter Fruit”, mais tarde transformado na bela e alegórica letra da canção.








      
   


Biografia de uma canção: Billie
com Louis Armstrong, seu amigo
de várias parcerias em estúdios e
também em turnês. Acima, Louis
e Billie com Barney Bigard em
1947, em cena de New Orleans,
filme de Arthur Lubin. Abaixo, Billie
no palco, em 1951, acompanhada pela
orquestra de Count Basie









.

              






Polêmica demais para o jazz



O próprio Abel Meeropol levou “Strange Fruit” para Billie Holiday. Em 1939, ele assistiu Lady Day se apresentando no Café Society. Impressionado com a performance da cantora, apresentou a ela sua composição. Billie, no entanto, não teve interesse imediato e demorou a apresentar a canção no palco pela primeira vez, em arranjo para voz e piano. Mas desde a primeira vez que Billie cantou “Strange Fruit” foi uma comoção na plateia.

A gravação, entretanto, teve que superar um impasse: a gravadora Columbia Records, com a qual Billie tinha um contrato de exclusividade, não autorizou e recusou-se a gravar a canção, temendo protestos. Billie recorreu ao principal produtor da Columbia, John Hammond, e mesmo assim não teve autorização. Billie continuou apresentando “Strange Fruit” nos shows, algumas vezes cantando a cappella, sem acompanhamento dos músicos, e sempre comovendo a plateia, até que Milt Gabler, executivo da Commodore Records, assistiu a uma dessas apresentações e ficou tão impressionado que procurou os escritórios da Columbia, conseguindo um contrato especial para que Billie fizesse a gravação.

Margolick justifica o estranhamento e a comoção das plateias que assistiam às apresentações ao vivo e também o sucesso quando a gravação começou a ser vendida em discos e passou a ser tocada com frequência nas estações de rádio. Ele esclarece que “Strange Fruit” era muito diferente de tudo o que Billie interpretara até então: não lembrava as baladas de amor que ela havia gravado na década anterior e tampouco se alinhava à tradição do blues ou às inovações estilísticas no cenário do jazz. A interpretação personalíssima de Billie, sua agonia pessoal, acentuava o tema angustiante da canção – um grito contra o racismo – que também representava os obstáculos que alguém como Billie, uma cantora negra numa sociedade dividida entre brancos no poder e negros subalternos, teria de superar. 





















Billie Holiday e outras lendas no
Bop City Nighclub, em Nova York:
no alto, em duas fotografias feitas por
Elliot Erwitt em 1958. Acima, com
o escritor William Falkner em 1956,
em fotografia de Moneta Sleet;
em 1950, no Bop City Nighclub com
Louis Armstrongcom Duke Ellington
e com Ella Fitzgerald em fotografias
de Joseph Schwartz.

Abaixo, Billie em Parisem 1958, no aeroporto
e em dois momentos no palco do lendário
Le Mars Club na noite de 20 de novembro,
em fotografias de Jean-Pierre Leloir.

Também abaixo: 1) Billie no ensaio fotográfico
de Phil Stern em agosto de 1955, durante as
gravações do álbum Music for Touching;
2) Billie em fotografia de 1949 no estúdio de
Carl Van Vechten; 3) Billie no palco do New York
Jazz Festival, em agosto de 1957, em fotografia
de Jerry Dantzic4) Billie em uma clássica
sequência de fotos em cores feita por
Carl Van Vechten em 1949; e 5) uma cena
de horror: o linchamento de dois homens
negros na Virginia, EUA, sem nenhum
julgamento. A prática do linchamento contra
negros tem sua origem na década de 1780
nos Estados Unidos, atribuída a dois militares
e latifundiários: Charles Lynch e William Lynch
(daí a palavra "linchamento), da Virgínia, que
instituíram a "lei de Lynch" para designar o
ódio racial contra negros e índígenas




















 
Strange Fruit”, descaca David Margolick, escapa a qualquer categorização musical e não lembra em nada “Lover Man”, “My Man”, “God Bless the Child”, “Glummy Sunday” ou “Blue Moon”, entre outros sucessos que Billie já havia emplacado naquela época. “É uma canção artística demais para ser música folk, politicamente explícita e polêmica demais para ser jazz", reconhece. Os versos alegóricos de Meeropol, que marcaram profundamente a carreira de Lady Day e foram definitivos para mudar os rumos da história no século 20, ganharam uma versão do poeta Carlos Rennó:


Árvores do Sul dão uma fruta estranha
Folha ou raiz em sangue se banha
Corpo negro balançando, lento
Fruta pendendo de um galho ao vento

Cena pastoril do Sul celebrado
A boca torta e o olho inchado
Cheiro de magnólia chega e passa
De repente o odor de carne em brasa

Eis uma fruta para que o vento sugue,
Pra que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue,
Pra que o sol resseque, pra que o chão degluta,
Eis uma estranha e amarga fruta









Do Café Society para outros palcos e daí aos discos, aos programas de rádio e aos ouvintes do mundo inteiro, o peso da canção lançada por Billie Holiday rendeu a ela muitos desafetos e agressões as mais diversas, inclusive físicas. Margolick reconstitui os capítulos do drama e lembra que Billie declarou em 1947 à revista “Downbeat”: “Fiz uma porção de inimigos, sim. Cantar aquilo não me ajudou em nada”. Puro engano. A mais mítica dos intérpretes do jazz e do blues, batizada como Eleanora Fagan Gough pelos pais adolescentes, prostituída aos 12 anos e drogada daí em diante, Lady Day a cantar com sua voz sublime e levemente rouca “Strange Fruit” forçou toda uma nação a enfrentar alguns dos seus mais sombrios impulsos.



por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Biografia de uma canção. In: Blog Semióticas, 27 de agosto de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/08/biografia-de-uma-cancao.html (acessado em .../.../…).














11 de julho de 2011

Louis entre os cronópios







Não há absolutamente nada no trompete que não venha

de Louis Armstrong. Na verdade, você pode dizer que

não há nada no jazz que não venha de Louis Armstrong.

Miles Davis (1926-1991).  



Há um conto de Cortázar, publicado em “Valise de Cronópio”, editado em 1993 pela Perspectiva, em que o narrador está em um concerto de Pops em Paris, em 1952. Tudo é normalidade e expectativas, mas quando o artista surge no palco, o fabuloso se instala, multiplicado em risos, pausas, canções, gestos mirabolantes.

A história de Pops é a história do blues e do jazz desde o começo do século 20. Nascido no primeiro ano do século, em Nova Orleans, ele é um daqueles artistas que superaram a infância miserável e uma condenação penal como menor infrator para ganhar o mundo como incontestável e incontestado porta-bandeira do gênero que ajudou a criar e do qual permanece como maior protagonista.

Pops, o apelido, veio dos amigos. Para os fãs, ele era Satchmo (em inglês, forma reduzida de “satchelmouth”, boca de saco), por conta de sua expressão facial nos solos prolongados de voz e trompete. Quatro décadas depois de sua morte, o trompetista, cantor, compositor, ator e chefe de orquestra Louis Armstrong (1901-1971) encontrou no jornalista Terry Teachout um biógrafo que não se opõe à mitologia criada em torno do artista. Tampouco a repete.













No alto, Louis Daniel Armstrong em 1970,
fotografado durante seu último show, na
Sala Imperial do Waldorf Astoria, Nova York.
Acima, Louis aos 17 anos, em março de
1918, quando se casou com Daisy Parker.
Louis trabalhava carregando carvão em
uma fábrica em Nova Orleans e, à noite,
frequentava os bares de Storyville, na zona
da prostituição da cidade, para ouvir os
músicos e, com atenção, aprender as canções
e aprender a tocar os instrumentos. Em 1922,
com o fechamento de Storyville, decidiu
tentar a sorte como tocador de trompete em
Chicago, a convite de Joe "King" Oliver,
que na época era um músico de sucesso.
Em pouco tempo, Louis também se tornaria
referência no  mundo do jazz e do blues.


Também acima, Louis ensinando garotos
a tocar trompete na vizinhança da casa onde
morou com a esposa Lucille Wilson em Nova York,
de 1943 até sua morte em 1971; e um flagrante
do escritor Julio Cortázar diante do Olympia de
Paris, em fotografia de Antonio Gálvez em
abril de 1962, antes de um dos lendários
concertos de Satchmo. Abaixo, o músico
em casa, no seu quarto de ensaios, em
fotografia de 1958 de Charles Graham;
dois retratos de Louis na célebre sessão
de fotos de 1966 por Philippe Halsman;
Louis fotografado por William P. Gottlieb;
Louis no estúdio da NBC em 1967, fotografado
por David RedfernLouis em 1956, em
cenas do documentário Satchmo the Great, com
narração e direção de Edward R. Murrow, que
foi lançado nos cinemas brasileiros com o título
O Embaixador do Jazz. Também abaixo, em
visita ao Vale das Pirâmidesno Egito, em 1961,
Louis toca trompete em homenagem a Lucille,
que foi sua quarta esposa, com quem ficou
casado de 1942 até sua morte em 1971











Em “Pops: A Vida de Louis Armstrong”, lançamento Larousse do Brasil, o biógrafo vai além do lugar-comum. Repórter de cultura do “Wall Street Journal” antes de seu livro virar best-seller internacional, Teachout é conhecido do público de jazz como produtor e autor dos textos de encartes de CDs de nomes de prestígio como Karrin Allyson, Diana Krall e a brasileira Luciana Souza, entre outros.

Em 2009, Teachout recebeu prêmios e seu livro "Pops" entrou nas listas de melhores do ano do “Washington Post”, “The New York Times” e “The Economist”. Louis Armstrong era um homem muito consciente da importância que tinha na história da arte americana”, registra Teachout, que não poupa o leitor de revelações surpreendentes, além de enumerar dos primeiros tempos do artista tocando corneta e trompete à trajetória do sucesso, destacando o poder de Louis como protagonista maior do jazz clássico.






















Munido de um arsenal de entrevistas, publicações de época, fotos inéditas e registros audiovisuais, o biógrafo reconstitui o entorno no qual a presença calorosa do mito, seu “swing”, sua voz grave e rouca, suas improvisações geniais confrontavam a tradicional submissão do negro na cena cultural e política dos Estados Unidos – e do mundo inteiro, por extensão.

Em “Pops”, Louis surge introspectivo, contraditório, quase sempre muito amável. Durante mais de meio século inventou canções que se tornariam standards, tocou inúmeros solos com inúmeras bandas, fez parcerias antológicas com outros gigantes do jazz como Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Duke Ellington, participou de filmes, programas de rádio e TV e enfrentou críticas de ativistas negros por não militar no movimento dos direitos civis. “Ele trabalhou muito e morreu feliz, dormindo em casa, em Nova York”, destaca Teachout.















Fruto da miséria social, mas também de um fervilhante caldeirão musical, a saga do genial Louis Armstrong se espraia em detalhes minuciosos em “Pops”, biografia assinada por Terry Teachout. Infância miserável, adolescência difícil como cantor de rua, depois trompetista de cabaré. Com o fechamento do “bairro de tolerância” Storyville, em 1917, Louis fica sem emprego e segue à deriva para Chicago com outros negros adeptos da novidade do jazz. Acaba fazendo história.

Lançado por King Oliver em 1922, Louis foi contratado por Fletcher Henderson em 1924. Em 1925 funda seu próprio conjunto, o Hot Five, passa a gravar discos e, a partir daí, sua fama não parou de crescer. Na biografia, Teachout destaca que Louis Armstrong cresceu e chegou à juventude ao mesmo tempo em que o jazz começava a ganhar forma.









Armstrong não inventou o jazz, não foi sua primeira figura importante, e não é correto afirmar que foi o primeiro grande solista do gênero”, decreta no prólogo o autor, sem ignorar que Louis foi o mais popular e influente dos primeiros solistas de jazz. As inovações rítmicas e melódicas, a voz granulada e repleta de modulações, assim como o expressivo sorriso e o impagável senso de humor também têm destaque no livro.

Teachout lembra que, no auge da forma, em 1950, as performances de Louis tomam a forma do virtuosismo dos músicos eruditos, mas transformadas por largos vibratos de complexas passagens de conjunto, mudanças súbitas de tempo, alterações harmônicas inesperadas, um senso de ritmo irresistível.




























Louis Armstrong e suas célebres parcerias
com outros gigantes do jazz: acima,
ao lado das duas maiores cantoras do jazz,
com Billie Holiday e com Ella Fitzgerald;
com Duke Ellington em Paris, em 1960,
e no estúdio, em 1961, quando gravaram
dois álbuns e seguiram juntos em uma
turnê internacional; e em 1970, fotografado
por Jack Bradley no estúdio com Miles Davis.

Abaixo, no camarim em Nova York, em
1958, fotografado pelo amigo Dennis Stock;
e Louis nos estúdios da NBC, em Nova York,
em 1967, em fotografias de David Redfern











Os dotes literários do músico também são destacados: na sala de casa ou nos camarins, ele batucou em sua máquina de escrever dois livros de memórias, vários manuscritos biográficos, artigos para revistas e jornais e extensas cartas, além de 650 fitas com seus próprios depoimentos — gravações a que Teachout teve acesso e usadas pela primeira vez por um biógrafo.

Pops” também revela casos hilariantes e outros dramáticos – quiproquós decorrentes do apreço de Louis por marijuana, os impedimentos do preconceito racial, empresários metidos com a máfia negociando seus contratos, represálias de gângsteres, embates públicos com jazzistas como Dizzie Gillespie e Miles Davis e com autoridades como o então presidente dos EUA Dwight Eisenhower, num caso que marcou época e mostrou um Louis Armstrong corajoso, libertário e consciente de seus direitos. 

Teachout investiga os motivos de cada atitude arriscada de Louis – que fez da música sua tábua de salvação, capaz de tirá-lo da sarjeta onde nasceu, em Nova Orleans, e fazer dele uma celebridade mundial que na última década de vida bateu todos os recordes de vendagem de discos e viajou pelos cinco continentes em shows que arrastavam multidões e eram celebrados pelos críticos mais renitentes.







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Armstrong preferiu a arte à política


Diversas biografias de Louis Armstrong já foram escritas, motivo pelo qual o esforço de Teachout correria o risco de cair em redundância. Correria, não fosse o pulo do gato: jornalista dos bons e músico treinado, ele dedicou anos às pesquisas sobre o mestre do jazz e cita passagens sobre Louis em uma centena de livros e de entrevistas. Diz que ouviu e ouviu de novo todas as 650 fitas gravadas pelo próprio músico, nas quais Louis se revela por inteiro.

Louis gravou todas estas fitas justamente para salvar para a posteridade tudo o que podia de si”, destaca Teachout, que fez uma decupagem inspirada da enorme quantidade de material que dispunha para escrever o que seria recebido como um dos melhores livros de 2009 na lista do jornal The New York TimesO biógrafo também aponta o orgulho que o músico sentia por ter visitado todos os continentes e chega a listar algumas das performances memoráveis ou inusitadas que ele realizou em palcos célebres e quadras de esportes pelos quatro cantos do planeta. Mas não menciona o Brasil entre os roteiros de shows de Louis.











Louis Armstrong em terras brasileiras em 1957:
acima, ao lado do mestre do choro Pixinguinha.
Abaixo, com Dorival Caymmi; no encontro com
o presidente Juscelino Kubitschek (fotografado
para a revista O Cruzeiro) e, entre outros
convidados e músicos, com Dorival Caymmi,
Herivelto Martins, Fernando LoboLamartine Babo,
Pixinguinha, Benedito LacerdaAtaulfo Alves.

Também abaixo, nos encontros com Elizeth Cardoso
e com Ângela Maria, coroada "rainha do rádio" no
ano de 1957; com Grande Otelo, Juscelino,
Pixinguinha e outros convidados; cantando
acompanhado por Sivucadurante o almoço
oferecido pelo presidente JK no Palácio das
Laranjeiras, no Rio de Janeiro; e durante uma
apresentação para convidados na Embaixada
dos Estados Unidos, também no Rio de Janeiro































Em sua viagem em 1957 às terras brasileiras, ele fez questão de encontrar alguns dos nossos mais importantes cantores, compositores e artistas tradicionais, e posou para fotos ao lado de nomes como Pixinguinha, Grande Otelo, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, Elizeth Cardoso, Ângela Maria (que tinha acabado de ser eleita “rainha do rádio”) e até do presidente Juscelino Kubitschek. No Brasil, Louis se apresentou em uma série de shows com sua banda All Stars. Sua apresentação em São Paulo, que reuniu uma multidão no ginásio do Ibirapuera, fez história: foi um dos primeiros shows transmitidos ao vivo pela TV Record.

Seguindo a trajetória de sucessos do artista, o livro de Terry Teachout consegue colocar o leitor no cotidiano de Louis – percebendo e comentando, de forma sutil, por que o músico negro, embora tenha em certo momento levantado a voz para o presidente Eisenhower pelo descaso em implementar medidas antirracistas, preferiu sempre, em sua longa trajetória, a expressão artística à expressão na política.













Sua maneira de cantar era uma extensão da maneira de tocar: o fraseado é o mesmo e semelhantes são o balanço e o sentido de tempo”, conclui Teachout. O final de “Pops” é poético, feliz, com o autor recordando sua própria emoção com a notícia da morte do artista. Faz lembrar o final de “Louis, Enormíssimo Cronópio”, o conto de Cortázar, quando o narrador na plateia em Paris percebe que o concerto acabou mas a sala continua cheia – com todos perdidos no seu sonho.

O fantástico show de Satchmo, descrito e comentado de forma poética nas palavras iluminadas de Cortázar: “Montões de cronópios que procuram lentamente e sem vontade a saída, cada um com seu sonho que continua, e no centro do sonho de cada um Louis pequenininho soprando e cantando”. Louis morreu no dia 6 de julho de 1971, em Nova York.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Louis entre os cronópios. In: Blog Semióticas, 11 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/ha-um-conto-de-cortazar-publicado-em.html (acessado em .../.../…).










Louis entre os cronópios: no alto,
Satchmo e sua Big Band com Billie Holiday
em uma sequência de New Orleans, filme
de 1947. Acima, o artista homenageado em
pintura fauvista do russo Leonid Afremov




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