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1 de maio de 2012

O trabalho de Lewis Hine





A fotografia não sabe mentir,
mas os mentirosos sabem fotografar.

––  Lewis Wickes Hine (1874-1940).  

      

 O Brasil e outros países comemoram no dia 1° de maio o feriado do Dia do Trabalhador, mas poucos se lembram da origem da data e menos ainda de seu sentido. O registro mais antigo de que se tem notícia sobre o assunto é a Revolta de Haymarket, com manifestações de protestos de trabalhadores nas ruas de Chicago, Estados Unidos, no início do mês de maio de 1886. Os protestos, que reivindicavam a redução da jornada de trabalho de 16 para 8 horas, foram reprimidos pela polícia com violência e resultaram em dezenas de mortos e feridos. A repressão teve um resultado contrário ao esperado pelos patrões: a data e os protestos passaram a ser propagados em sua força simbólica.

Aqueles primeiros relatos sobre as lutas sindicais de Chicago correram o mundo e foram lembrados nos anos e décadas seguintes, com muitas passeatas e protestos por melhores condições de trabalho. O que a princípio parecia um sonho impossível começou a se concretizar anos depois, em 1890, quando a repercussão do massacre em Chicago levou o Congresso norte-americano a decretar a redução da jornada de trabalho: de 16 para 8 horas diárias. Algumas décadas se passaram e, em abril de 1919, o Senado da França também ratificou a jornada de trabalho de 8 horas e proclamou o dia 1° de Maio como feriado nacional em homenagem aos trabalhadores assalariados.

O exemplo da redução da jornada foi seguido em muitos países, menos no Brasil. Por aqui, o processo foi muito mais lento. Da mesma forma como detém o triste recorde de ter sido o último país do mundo ocidental a abolir o trabalho escravo, em 1888, no Brasil a redução da jornada de 16 horas também demorou a se concretizar. O dia 1° de maio virou feriado nacional somente em 1925, por um decreto do presidente Artur Bernardes. A questão da jornada e os direitos do trabalhador, entretanto, só foram legalizados 20 anos depois do feriado, com a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo presidente Getúlio Vargas, não por acaso em 1° de maio de 1943.









Fotografias de Lewis Hine: no alto,
Trabalhador na casa de força (1920);
acima, New Jersey: garoto de oito anos
com cavalo no campo (1910), Garotos
à meia-noite na fábrica de vidros (1908)
e Operário erguendo o mastro (1932), da
série que o fotógrafo dedicou à construção
do Empire State Building em Nova York.

Abaixo, uma imagem das séries que Hine
dedicou às levas de imigrantes e seus filhos
que chegavam à América: mãe e seus três
filhos, vindos da Itália, desembarcam no
porto de Nova York em 1905








Se no plano político as lutas e reivindicações de trabalhadores no mundo inteiro geram batalhas permanentes, coube a um fotógrafo o trabalho pioneiro de transformar em arte as denúncias de situações de trabalho aviltantes. Há pouco mais de 100 anos, o sociólogo norte-americano Lewis Wickes Hine (1874-1940) encontrou na fotografia a sua forma de denunciar as injustiças sociais e as mazelas do trabalho infantil.

No começo do século 20, crianças compunham uma boa parcela da mão de obra na indústria, nas ruas e no campo nos Estados Unidos e em vários países, inclusive no Brasil. Diante do que percebeu como situação de abuso e imoralidade, Hine produziu, a partir de 1903, um dos mais impressionantes acervos sobre condições desumanas de trabalho, questões de saúde pública e discriminação de minorias, com mais de 5 mil fotografias em papel e 300 negativos de vidro.












O trabalho de Lewis Hine: a partir 
do alto e abaixo, retratos heroicos sobre
infância perdida com o trabalho no
campo, em New Jersey, em fotografias
das séries realizadas por Hine em 1910.

Abaixo, três fotografias com denúncias de
Lewis Hine contra o trabalho infantil no campo:
1) os irmãos Campbell, de 5, 6, 7 e oito anos,
que trabalhavam no campo em New Jersey,
em 1911, em troca de uma refeição por dia;
2) Callie Campbell, 11 anos, trabalhava
na colheita de algodão durante 12 horas
por dia no condado de Potawotamie, em
Oklahoma, também em 1911; e 3) a colhedora
de frutas Bertha Marshall, de 9 anos, que
trabalhava diariamente em troca de uma
refeição na fazenda Jenkins, em
Baltimore, Maryland, em 1909  



















Hoje aclamado como um dos mais importantes fotógrafos de todos os tempos e com seu legado estudado por pesquisadores de várias áreas do conhecimento acadêmico, Lewis Hine também é reconhecido como um pioneiro na luta pela criação de leis trabalhistas e de reforma social. Contratado em 1908 como fotógrafo e inspetor do Comitê Nacional do Trabalho Infantil dos EUA, Hine acreditava que o semblante de uma criança poderia mostrar muito mais do que qualquer outro tipo de prova sobre a realidade do trabalho infantil.



Exploração e vertigem



Além de seu trabalho investigativo como funcionário do governo, Lewis Hine também realizou séries de documentação fotográfica humanitária na Europa, a serviço da Cruz Vermelha Internacional, durante a Primeira Guerra, registrando imagens que ainda hoje são sempre reproduzidas para ilustrar reportagens e documentários, tais como “Soldier thrown in the air”, com o soldado lançado ao ar em comemoração das tropas aliadas ao fim do conflito. As fotografias de Lewis Hine registraram os momentos de descontração e até poéticos da tropas militares, mas também os horrores da guerra que, em quatro anos de matança e destruição nunca vistas, resultou em incontáveis milhões de mortos. Somente entre as tropas militares, os números oficiais apontam 11 milhões de soldados mortos e 21 milhões com ferimentos graves ou mutilados, com uma média diária de 6 mil soldados mortos por cada dia de conflito.

De volta aos Estados Unidos, Lewis Hine passaria os anos seguintes e toda a década de 1920 engajado em campanhas pelo estabelecimento de leis que regulamentassem a segurança no trabalho e a saúde do trabalhador. Em 1930, ele registraria outra de suas séries que ganharam o mundo: as panorâmicas de altitude sobre os operários na impressionante e vertiginosa etapa de finalização das obras de construção do Empire State Building, que era até então o prédio mais alto do planeta. Em plena época da chamada “grande depressão”, Lewis Hine documentou o que também se tornou, para muitos, um símbolo de esperança e de progresso naqueles tempos difíceis.













O trabalho de Lewis Hine: operários
sem nenhuma segurança, nas alturas,
durante as obras para a construção
do Empire State Building. As cenas
que, ainda hoje provocam vertigem,
foram reunidas por Lewis Hine no livro
Men at Work (Homens trabalhando),
publicado pela primeira vez em 1932.

Também abaixo, o soldado lançado ao
ar na comemoração das tropas aliadas
pelo fim da Primeira Guerra Mundial,
em 1917, época em que Lewis Hine
trabalhou na Europa como
fotógrafo da Cruz Vermelha















Na fronteira entre a denúncia e a exaltação da coragem, as fotografias de Hine sobre os operários no Empire State são sempre lembradas por muitos como tributo à individualidade e à importância do trabalho. Nas palavras de Hine, cada uma dessas imagens são um lembrete de que "as cidades não são construídos por si só. Elas têm atrás de si o sacrifíco e o suor de muitos homens". Os operários e as cenas de vertigem no alto do Empire State foram reunidas em 1932 em “Men at Work”, o único livro que Hine publicou. 

A dedicação à fotografia teve início quando Lewis Hine comprou sua primeira câmera, em 1903. Desde então, seu mergulho no registro de imagens e seu empenho em denunciar a pobreza e a vida miserável dos imigrantes, os abusos da exploração e das condições degradantes de trabalho, o levaram a deixar o cargo de professor na Ethical Culture School e a viajar durante anos por todo o território dos Estados Unidos, documentando com suas fotografias as condições de trabalho em diversas atividades. 


















Trabalho Infantil na América: imagens
comoventes de crianças de 6 a 12 anos
em jornadas e condições abusivas nas
fábricas e minas de carvão foram
registradas por Lewis Hine em 1910
em South Pittston, Pennsylvania





















As fotografias de denúncia de Lewis Hine, que ainda hoje impressionam pela crueldade a que crianças e trabalhadores em geral eram submetidos, provocaram escândalo desde as primeiras publicações em jornais e revistas de Nova York, há mais de 100 anos, e foram o motor para a criação da legislação para o controle e regulamentação do trabalho primeiro nos Estados Unidos e depois em outros países. Nas fotografias de Hine, à exceção das séries de operários no Empire State, são poucos adultos: na maioria são crianças substituindo a tração animal em grandes plantações ou exploradas nas ruas das grandes cidades, em minas de carvão, nas usinas e na indústria têxtil.



Apelo estranho e comovente



No decorrer no último século, as imagens de denúncia produzidas por Hine foram reproduzidas com frequência em reportagens, em panfletos sindicais, em livros de história e nos manuais sobre fotografia, além de lugares mais improváveis, de montagens de arte underground a capas de discos de punk-rock. Cada uma delas mantém seu apelo estranho e comovente, ao mesmo tempo real e abstrato – como destaca Roland Barthes em seu célebre estudo sobre a arte e a técnica da fotografia intitulado “A Câmara Clara”.












O trabalho de Lewis Hine: o fotógrafo
em autorretrato no final da década de 1930
e três garotos registrados por ele em
seus locais de trabalho na cidade de
Brown, West Virginia, em 1909.
Abaixo, as três irmãs Josie (seis anos),
Bertha (seis anos) e Sophie (dez anos),
que trabalhavam como descascadoras de
ostras em 1911 na Maggioni Canning Co.,
em Port Royal, Carolina do Sul, em
troca de uma refeição por dia









Entre a invenção de uma “teoria do olhar” e a análise sobre imagens de Nadar, Kertész, Niépce, Stieglitz, Avedon, Mapplethorpe e William Klein, entre outros grandes fotógrafos citados por Barthes, Hine é quem tem o maior número de fotografias reproduzidas na edição original de “A Câmara Clara”, publicada em 1980. Barthes destaca em Hine um certo “punctum”, o sentido da arte e não apenas a exposição da dor, do sofrimento, da exploração e da miséria: “o punctum de uma foto é esse acaso que nela me punge (mas também me mortifica, me fere)”. 

No breve texto de apresentação a “Men at Work”, Hine chegou a relatar algumas das inúmeras dificuldades e perigos que enfrentou em suas “investigações”. Os donos das fábricas não permitiam que ele fotografasse e não raro contratavam capangas para ameaçá-lo e tentar tomar seus equipamentos. Hine tinha por método esconder a câmera e se apresentar como um inspetor de incêndio. Assim, capturava as fotos mais reveladoras.












Os pequenos jornaleiros chegam às
ruas de madrugada em Washington,
em 1910. Acima, dois flagrantes sobre
o trabalho do pequeno Francis Lance,
de apenas 5 anos de idade, fotografado
por Lewis Hine na cidade de
St. Louis, Missouri, em 1912.

Abaixo, Lewis Hine em ação, em 1913,
registrando a família Sherrica em que os
quatro irmãos (de 11, 10, 7 e 3 anos)
trabalhavam em uma fábrica em Bluffton,
na Carolina do Sul, limpando peixes e
frutos do mar, durante 12 horas por dia;
e a imagem célebre que registra
Anormais em uma instituição,
fotografia de 1924 de Lewis Hine
destacada por Roland Barthes
no livro A Câmara Clara










Em uma das muitas vezes em que foi preso, acusado de invadir uma propriedade particular para fazer suas fotografias de denúncia sobre exploração do trabalho infantil, Hine declarou em uma audiência diante das autoridades policiais e da justiça: “Talvez vocês estejam cansados de tantas fotos que fazem denúncias sobre o trabalho infantil. Preciso dizer que eu também estou, mas quero fazer vocês e o resto do país ficarem tão enjoados destas cenas a ponto de obrigar isso a ter fim. Tenho esperança de que haverá um dia em que o trabalho infantil será apenas um registro esquecido em fotografias do passado.”

A experiência proporcionada por uma das imagens de Lewis Hine, conforme destaca Roland Barthes em “A Câmara Clara”, é exemplar sobre o que o fenômeno da fotografia pode provocar de mais intenso e revelador. Ao observar o registro feito por Lewis Hine, em 1924, de duas crianças anormais em uma instituição de New Jersey, Barthes localiza um conceito que se tornaria célebre em análises sobre fotografia: o “punctum”.







O que vejo é o detalhe descentrado, a imensa gola Danton do garoto, o curativo no dedo da menina. Sou um selvagem, uma criança – ou um maníaco; mando embora todo o saber, toda cultura, abstenho-me de herdar de um outro olhar”, confessa Barthes. É a  subjetividade do leitor que vai perpassar o enquadramento do objeto retratado, pondo-o em movimento, dando-lhe tanto a continuidade como a descontinuidade narrativas.

A reflexão a respeito da trama situacional, que fez a fotografia emergir, se impõe através da atenção do receptor que observa e pode, por fim, enveredar por um percurso que articula razão e emoção. Cabe ao observador encadear o que o fotógrafo quis que ele visse e fundir a maior parte dos elementos que fazem convergir fotografia e memória, essa “estocagem” cultural que vem alinhavar cada uma das experiências vividas.



Horror cotidiano



Com a autenticidade da grande arte, o trabalho de Lewis Hine emociona, como destaca Barthes em "A Câmara Clara". E emociona exatamente porque não estava à procura de piedade ou de sentimentalismos, nem mesmo de caridade. Como nos épicos monumentais da literatura universal ou nos afrescos góticos das grandes catedrais da Idade Média, Hine produziu registros sobre cenas cotidianas que reservam algo de mitológico exatamente porque conseguem recriar o que na época era muito comum e hoje provocam estranhamento, provocando no observador emoções contraditórias e levando ao entendimento sobre alguns dos horrores que se repetiam nos primórdios da sociedade industrial.







O trabalho de Lewis Hine: acima,
garoto de 8 anos de idade durante a
madrugada, no trabalho em uma
estação ferroviária em Boston,
Massachusetts (EUA), em 1909.

Abaixo, crianças operam máquinas
na fábrica de tecidos de algodão
Whitnel, em North Carolina, 1908.
Lewis Hine registrou que, ao perguntar
para a garota (última foto) quantos anos
tinha e qual era seu nome, ela fez uma
longa pausa e finalmente respondeu:
"Não me lembro..."









Numa época em que a escravidão humana ainda era uma experiência muito recente, quando era tão comum haver tanta injustiça social e com a maioria das pessoas estando tão acostumadas com esses problemas, Lewis Hine ousou se manifestar em defesa dos mais explorados e das vítimas mais contumazes da ordem vigente. Quando o jornalismo e os repórteres investigativos ainda não tinham saído a campo e quando quase todos acreditavam que o trabalho mais aviltante de crianças e de adultos era algo inevitável, e até mesmo os próprios operários pareciam estar conformados e resignados em tal situação, o fotógrafo enfrentou a tudo e a todos na intenção de fazer suas denúncias contra o que o senso comum ainda considerava natural ou inevitável.
 
Por ironia do destino, o reconhecimento da importância do trabalho de Lewis Hine tanto na imprensa como por parte de críticos e historiadores da arte foi muito tardio e não garantiram a ele nem fama nem fortuna. Em seus últimos anos de vida, talvez por força da resistência dos interesses corporativos que ele enfrentou e contrariou durante décadas, Lewis Hine não conseguiu mais nem emprego e nem espaço nos jornais e revistas para publicar suas fotografias.

Sem dinheiro e com poucos amigos, acabou hipotecando e perdendo a casa em que morava e tornou-se vítima da pobreza que sempre fez questão de retratar. Morreria esquecido e na miséria, em 1940. Entretanto, sua herança de realismo e de percepção pioneira sobre o papel fundamental da fotografia como documento, a força das situações de trabalho aviltantes e dos rostos comoventes das crianças e dos adultos que registrou, assim como suas denúncias contundentes contra as formas criminosas de injustiça social, continuam como um alerta a questionar, a impressionar e a assombrar a experiência humana.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O trabalho de Lewis Hine. In: _____. Blog Semióticas, 1° de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/o-trabalho-de-lewis-hine.html (acessado em .../.../...).



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