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2 de fevereiro de 2013

Bodas do 'boom'






Tenho me perguntado muitas vezes: escreveria
ainda se me dissessem, hoje, que amanhã uma
catástrofe cósmica destruirá o universo, de modo
que ninguém poderá ler aquilo que hoje escrevo?
–– Umberto Eco, "Sobre a literatura" (2002).  

 
Foi no início da década de 1960 que leitores do mundo inteiro tiveram as primeiras notícias sobre uma nova safra de grandes escritores de países da América Latina. Surgiam nomes que pelas afinidades ou pelas semelhanças de estilo e temática pareciam formar um grupo organizado, como os argentinos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares; o colombiano Gabriel García Márquez; os peruanos Carlos Castaneda, José María Arguedas e Mario Vargas Llosa; os cubanos José Lezama Lima, Alejo Carpentier e Guillermo Cabrera Infante; os mexicanos Juan Rulfo, Octavio Paz e Carlos Fuentes; os chilenos Pablo Neruda, Violeta Parra e José Donoso; o guatemalteco Miguel Ángel Asturias; os bolivianos Gastón Suárez e Marcelo Quiroga Santa Cruz; os venezuelanos Salvador Garmendia e Miguel Otero Silva; o nicaraguense Ernesto Cardenal; o paraguaio Augusto Roa Bastos; os uruguaios Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti e Eduardo Galeano; ou os brasileiros Guimarães Rosa, Jorge Amado, Clarice Lispector, Murilo Rubião e José J. Veiga, entre outros – alguns deles presentes em todas as listas que se referem ao "boom", outros sem alcançar o lugar de classificação unânime ou só incluídos a partir das décadas seguintes.

A novidade: a literatura que estes autores apresentavam a leitores da Europa, dos Estados Unidos e de outros países era bastante diferente do lugar comum e imprevisível em suas variações de romances, novelas, contos, poemas. Mas, ao mesmo tempo, trazia semelhanças com clássicos da Literatura Universal, com recursos do fantástico e do mundo das fábulas a conduzir narrativas primorosas sobre a vida real nos trópicos, na periferia do capitalismo, nos confins da América Central e da América do Sul. Com seus impasses rurais e urbanos de toda ordem, seus fantasmas e assombrações muito peculiares e suas interfaces de magia, de insólito, de sobrenatural, de crueldade, a nova literatura da América Latina surgia com um inesperado sucesso de crítica e de vendas, surpreendendo até os mais céticos e seduzindo uma multidão de novos leitores pelo mundo afora.

O inumano, a metalinguagem e seres do mundo da imaginação invadiam de forma poética narrativas que muitas vezes fugiam às categorias estanques de gênero ou tornavam relativas estas fronteiras, quase sempre com destaque no viés de crítica aos dramas da realidade social – daí a definição que abarcaria grandes autores e obras da América Latina daquele momento: o “boom” do Realismo Mágico ou Realismo Fantástico ou Realismo Maravilhoso, nomenclatura sujeita a sutilezas de classificação e que também não alcança unanimidade entre críticos e teóricos da literatura ou dos estudos culturais. Sobre todos, há pelo menos um consenso: Borges, que foi um dos patronos e antecessores do grupo. Com seus textos híbridos entre ensaio e ficção, em que o assunto é quase sempre a própria literatura, reunidos em livros como “Ficciones” (1944) e “El Aleph” (1949), Borges é o primeiro nome do “boom” a alcançar o leitor médio e a crítica acadêmica do Primeiro Mundo (veja também "Semióticas: Outros Borges").












Gigantes no "boom" do Realismo Mágico:
no alto e acima, Cortázar em Paris, em 1964,
no quarto de trabalho e às margens do
Rio Sena, fotografado por Pierre Boulat.
Acima, Borges em Buenos Aires. Abaixo,
os amigos se encontram: Julio Cortázar,
Carlos Fuentes e o cineasta Luis Buñuel;
Cortázar com José Lezama Lima em Cuba;
Gabriel García Márquez com Cortázar;
e Ernesto Cardenal e Eduardo Galeano
com Cortázar no México, em 1980.

Também abaixo, Borges em Nova York,
em 1969, fotografado por Diane Arbus;
e a capa de Los Nuestros, livro de 1966
de Luis Harss relançado em 2012, em
espanhol, pela Editora Alfaguara




 
 
 
 
 











Mais de quatro décadas depois das primeiras edições de seus livros em espanhol, Borges finalmente seria publicado em francês, em inglês, em italiano, em português e em outros idiomas pelo mundo afora. Sua literatura, encadeada em textos breves e da maior complexidade, surge para seus compatriotas e para seus leitores estrangeiros com a originalidade de uma “obra aberta”  como definiria com propriedade Umberto Eco, referindo-se a certas possibilidades de cooperação interpretativa nas trilhas da "semiose ilimitada" fundadas pela semiótica de Charles Sanders Peirce.

Borges e sua literatura cativam os principais expoentes do Estruturalismo e levam Michel Foucault declarar, em 1966, no prefácio de “As Palavras e as Coisas”, publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes: Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”.



Meio século de história



Talvez Borges seja um dos consensos possíveis sobre aquele grupo de autores, mas sempre houve muitas controvérsias sobre as origens e as motivações do “boom”. Sabe-se que o termo, para se referir à literatura latino-americana, foi usado pela primeira vez por um escritor e jornalista chileno, Luis Harss. No mesmo ano em que Foucault publicava na França “As Palavras e as Coisas”, Harss lançava seu livro “Los Nuestros”, em que mistura depoimentos, reportagem e crítica para investigar o fenômeno da repercussão internacional de certas obras e certos autores, algo sem precedentes na literatura da América Latina.

O livro de Harss, relançado em 2012 pela Editora Alfaguara, foi o resultado de uma série de entrevistas do autor com 10 escritores latino-americanos por ele considerados os mais representativos daquele momento: Jorge Luis Borges, Miguel Ángel Astúrias, Guimarães Rosa, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, García Márquez e Vargas Llosa. Houve controvérsias, já que a lista de entrevistados deixou de fora e sequer mencionou nomes que expoentes da crítica em países da Europa já destacavam como protagonistas do renascimento da literatura na América Latina, entre eles Clarice Lispector, José Donoso, Ernesto Sabato, José María Arguedas, Augusto Roa Bastos ou Guillermo Cabrera Infante. Contudo, desde então formou-se um certo consenso entre pesquisadores para o reconhecimento de que Harss exerceu papel pioneiro na criação do cânone e da primeira carta de navegação relevante sobre o "boom".
 












Harss destaca entre os autores do grupo uma nova relação com a linguagem da forma literária, francamente experimental e política, e propõe um marco inaugural: várias foram as publicações que prepararam o terreno, incluindo as primeiras edições de Borges na França, na segunda metade da década de 1950, além de títulos importantes de outros autores nos anos seguintes, mas ele situa em 1963 o primeiro grande momento do “boom” latino-americano, com a publicação simultânea em espanhol, francês e inglês de um livro ímpar: “Rayuela” (no Brasil, “O jogo da amarelinha”), de Cortázar. Pelas coordenadas traçadas por Harss, o “boom” completa, em 2013, 50 anos de história.

Do Terceiro Mundo para o Velho Mundo: a partir de uma reflexão sobre a situação política e social da América Latina, autores em países diferentes, e que sequer se conheciam, transformaram em literatura da melhor qualidade, na mesma época, os absurdos e o insólito da vida cotidiana. Povoada de tradições exóticas e de cenários desconhecidos, repleta de apelos ao sobrenatural, a literatura da América Latina pela primeira vez ganharia projeção internacional, passando a exercer considerável influência sobre a obra de importantes pensadores e ficcionistas até nossos dias, incluindo, entre muitos outros, Italo Calvino, José Saramago, Susan Sontag, Umberto Eco, Homi Bhabha, Salman Rushdie, Roberto Bolaño.










Viagem a Paris: três expoentes do “boom”

e suas esposas, em foto de 1969 – a partir

da direita, Mario Vargas Llosa e Patricia;

José Donoso e Pilar; Mercedes e Gabriel

Garcia Márquez. Também acima, a capa

de junho de 1967 da revista Argentina

Primera Plana, publicação pioneira ao

destacar os autores do boom e o

lançamento de Cem anos de solidão.


Abaixo: 1) um encontro de García Márquez e

Vargas Llosa em fevereiro de 1976, época

em que os dois romperam relações por conta

de ciúmes conjugais e pelas posições políticas

de Vargas Llosa de apoio a políticos de direita

e às ditaduras militares na América Latina;

2) Pablo Neruda e García Márquez brincam

com a pose de uma estátua na Normandia,

em visita à França, em 1969; 3) Pablo Neruda

em visita ao Brasil em 1945, fotografado na

praia de Ipanema, no Rio de Janeiro;

4) Vinicius de Moraes e Pablo Neruda em

visita a Ouro Preto, Minas Gerais, em 1968;

5) García Márquez com Jorge Amado em

Salvador, Bahia, na década de 1970, fotografados

por Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado;

6) García Márquez em Barcelona, em 1970;

7) García Márquez e Carlos Fuentes na

Feira do Livro de Barcelona em 2008;

e 8) García Márquez no Méxicofotografado por

Daniel Mordzinski em 2009, quando declarou

em entrevista ao jornal El País que havia se

aposentado e que não pretendia mais escrever






















 





 
Contudo, do lado de dentro das fronteiras de cada país do continente latino-americano, o contexto político daquele momento histórico era explosivo e dos mais sombrios. A resposta à Revolução Cubana em 1959 foram, nos anos seguintes, os regimes de exceção e as ditaduras militares, instaladas simultaneamente na maior parte dos países da região com apoio dos Estados Unidos. Esta nova realidade, que despertou uma mistura de sentimentos de utopia e desejo de justiça, também gerou alegorias transformadas em obras-primas da Literatura Universal.



Da América Latina à Europa



O estudo publicado em 1966 por Luis Harss já apontava para as semelhanças e diferenças – tanto entre obras e autores incluídos no “boom” do Realismo Mágico, quanto entre este movimento e as vanguardas modernistas nas primeiras décadas do século 20. Se é inquestionável que o “boom” produziu obras-primas que permanecem há mais de meio século como influência e referência, também é certo que ele nunca teve qualquer padrão estético coeso. Em outras palavras, parodiando um célebre aforismo sobre Minas Gerais de Guimarães Rosa, também ele um expoente entre estas referências: no “boom”, são vários.













Em sua grande maioria, os autores do “boom” sempre estiveram comprometidos com apoio aos movimentos populares de resistência à censura e à repressão instaladas pelas ditaduras militares em seus países de origem. Alguns deles foram exilados e outros, como Cortázar, chegaram a empreender jornadas internacionais pela Anistia e pelos Direitos Humanos, mas nenhum deles chegou a apresentar algum manifesto ou programa de ação – prática frequente da militância entre as vanguardas da arte no começo do século 20.

Pelo contrário. Não houve nenhum “alinhamento”, nenhuma “meta programática”. Tanta variedade e liberdade acabou fornecendo fôlego às críticas: os detratores do “boom” existem, ainda que sem grande influência ou ressonância, e costumam se apegar ao argumento de que o grupo não tinha coesão e que tudo não passou de marketing editorial. Mas talvez tal argumento seja mesmo um equívoco: afinal, as obras-primas lançadas naquele período são um contraponto inquestionável.

A diversidade de autores e obras nomeados com o rótulo de Realismo Mágico é evidente. Basta lembrar que um dos destaques incluídos no “boom” foi o cânone maior da literatura do Brasil, Machado de Assis (1839–1908), um mestre do século 19, traduzido e publicado nos Estados Unidos e na Europa na mesma época e no mesmo pacote editorial que reunia, entre outros “estreantes”, Borges, Cortázar, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Vargas Llosa, García Márquez, Guimarães Rosa, Jorge Amado (veja também "Semióticas: O Bruxo e a crítica internacional").






Machado de Assis: cânone brasileiro
do século 19 surge em destaque no
"boom" do Realismo Fantástico









Contracultura, o contexto libertário



Também há controvérsias quanto ao tempo de duração do “boom”, mas com frequência se destaca o período que vai de 1963, com a publicação de “Rayuela”, até, para alguns, a data de 11 de setembro de 1973, com o golpe militar contra o governo de Salvador Allende no Chile, enquanto para outros o período se estende até 1982, ano em que se concede o Prêmio Nobel de Literatura a García Márquez. Não por acaso, é também no ano de 1982 que muitos países da América Latina começam o retorno a regimes democráticos, depois dos tempos sombrios de violência e censura das ditaduras militares. Mas este período historiográfico também não deixa de ser uma demarcação aleatória, sujeita a variáveis – há quem defenda também outros eventos para a demarcação inicial, entre eles o marco em 1962, ano da publicação de “Historias de cronopios y de famas”, de Cortázar, ou em 1959, ano da Revolução Cubana.

As controvérsias e questionamentos fazem todo sentido, ainda mais que os nomes principais do “boom” haviam publicado muito antes de 1963 e continuaram a produzir e publicar até muito depois do ano de 1982. Outras datas com frequência apontadas como marcos de importância para assinalar o fim, ou mesmo para um novo renascimento do “boom”, incluem o ano de 1986, quando morreu Borges, decano do grupo, ou o ano de 2010, quando outro baluarte do movimento que destaca a literatura da América Latina, o peruano Vargas Llosa, também seria condecorado com o Prêmio Nobel de Literatura.







D




Três obras de Borges que foram adaptadas
com sucesso para o cinema: acima, uma cena
de A Estratégia da Aranha, filme de 1970
com direção de Bernardo Bertolucci; e
Borges durante as filmagens de Invasión,
filme de 1969 de Hugo Santiago com roteiro
de Borges e Adolfo Bioy Casares (na foto,
a partir da esquerda, o diretor de fotografia
Ricardo Aronovich, o cineasta Hugo Santiago,
Jorge Luis Borges e o ator Lautaro Murúa);
no alto, cartaz de A Intrusaco-produção
entre Brasil e Argentina, de 1979, com
direção de Carlos Hugo Christensen.
Abaixo, uma cena do filme de 1965
A hora e a vez de Augusto Matraga,
versão do cineasta Roberto Santos
para o conto que encerra "Sagarana",
livro de João Guimarães Rosa.

Também abaixo, o fotógrafo no estúdio
em Blow Upversão de 1967 de
Michelangelo Antonioni para o
Cortázar de Las Babas del Diablo;
Week-End à Francesa, versão também
de 1967 de Jean-Luc Godard para a
narrativa A auto-estrada do sulde
Cortázar; e uma cena de Erêndira,
filme de 1983 de Ruy Guerra com
roteiro de García Márquez baseado
em sua novela La increíble triste
historia de la cândida Erêndira
y de su abuela desalmada







A descoberta da literatura da América Latina por leitores do Primeiro Mundo vem no contexto libertário da Contracultura – tempos da Guerra Fria, da novidade da TV e da dominação cultural norte-americana avançando pelos cinco continentes. É também a época em que ganham força protestos da juventude, o recém-criado rock'n'roll, o movimento estudantil, mobilizações pelos direitos civis, as passeatas pacifistas, as rupturas lançadas pelo comportamento inconformista e pela literatura libertária da geração beat – por sua vez mentores e avatares da experiência em sociedades alternativas, em viagens esotéricas de autoconhecimento, em religiões orientais, em rituais de shamanismo e de alucinógenos.

Neste cenário, o “boom” da literatura latino-americana encontra terreno fértil. Rapidamente assimilado, desatou a imaginação de leitores e de outros autores, convocou o humor e a ironia em situações das mais alegóricas e criou novas formas narrativas que foram absorvidas pela Literatura Universal. Não é um legado pequeno, ainda que seja possível estabelecer toda uma rede de filiações dos escritores do “boom” a certas obras e autores como James Joyce, William Faulkner, Franz Kafka – com reflexos que transparecem como influência ou referência direta em “Rayuela”, em “Pedro Páramo”, em “Cien Años de Soledad” e em boa parte do que o Realismo Mágico produziu.






Week End (1967)

.



 

As narrativas do trio Faulkner-Joyce-Kafka são fundamentais à literatura do “boom”, mas há outras obras que prevalecem como referência direta, entre elas "As Vinhas da Ira" ("The Grapes of Wrath"), romance de 1939 de John Steinbeck. Virginia Woolf também ganha destaque como forte influência para alguns, caso de García Márquez, Cortázar e Clarice Lispector, assim são referências importantes para vários autores do “boom” os escritos experimentais lançados por Guillaume Apollinaire e todo o Modernismo dos surrealistas franceses. Porém, nem tudo é século 20.

Pairando sobre todos, inevitável, no “boom”, está a sombra de Edgar Allan Poe, além das clássicas novelas de ficção científica, enquanto Borges, Cortázar, Guimarães Rosa e outros também rendem tributo a Machado de Assis, mestre nas artimanhas do fantástico e nas alegorias construídas no jogo narrativo, não por acaso também leitor devotado e tradutor de Poe. Na lista de mentores e precursores em evidência ainda há Goethe, Byron, Baudelaire, Rimbaud, Flaubert, Swift, Shakespeare, Rabelais, o romance medieval de Cervantes, os contos árabes de Sherazade, a mitologia pagã da Antiguidade, a Torá e os evangelhos da Bíblia Sagrada, entre outros títulos enumerados nas estantes da Biblioteca. Sobre esta rede quase infinita de influências e de precursores, Borges, o visionário, guardou um comentário definitivo: os livros sempre falam entre si e isso não depende de os autores terem se conhecido.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bodas do “boom”. In: Blog Semióticas, 2 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/bodas-do-boom.html (acessado em .../.../…).



Clássicos do Realismo Fantástico nas livrarias:















No alto, "Música de banda" (1960),
fotografia de Juan Rulfo. Acima,
ilustração na capa da primeira edição
de “Cien años de soledad”, de
Gabriel García Márquez, publicada
em 1967 por Editorial Sudamericana.
Abaixo, fotografia de um antigo catálogo
de roteiro turístico da Colômbia indicando
a aldeia fictícia de Macondo criada pela
literatura de García Márquez










10 de abril de 2012

Outros Borges








Sempre imaginei que o paraíso
será uma espécie de biblioteca.

–– Jorge Luis Borges (1899-1986).




Se eu tivesse vivido no século 19, seria um mínimo, um anônimo latino-americano. No nosso século carente de referências importantes, terminei como objeto de leitura e desperto muita curiosidade nas pessoas”, disse Jorge Luis Borges em sua última entrevista, gravada em Buenos Aires pelo jornalista Roberto D’Ávila e o cineasta Walter Salles em outubro de 1985 e exibida no programa “Conexão Internacional”, na extinta TV Manchete. Poucos dias depois da entrevista, concedida à equipe brasileira na casa em que morou durante décadas, Borges embarcou para a Europa com sua secretária Maria Kodama e morreu em Genebra, Suíça, em 14 de junho de 1986, aos 86 anos.

O mais célebre escritor da América espanhola, o mesmo e sempre um outro, para muitos uma das referências mais citadas por outros escritores, pelos acadêmicos e pelos cientistas, Borges também declarou naquela última entrevista, com sua ironia que não raro desconcertava seus interlocutores, que seu maior sonho era ser um dia esquecido pelos leitores. O sonho de Borges, traduzido e publicado em numerosos idiomas, não foi cumprido: ele, definitivamente, não foi esquecido. Muito pelo contrário.

Mais de três décadas depois de morto, o prestígio internacional e a presença mítica de Borges e sua literatura permanecem em franca ascensão. O estilo conciso e erudito tornado imortal em seus contos e seus breves relatos sobre a vida e a arte, a cada ano que passa, retorna com apelo sempre renovado para novos e antigos leitores. O que não falta nas livrarias são lançamentos e relançamentos de livros de Borges e sobre Borges.












Entre os lançamentos recentes estão as edições de entrevistas concedidas na década de 1980 pelo escritor, no auge da capacidade criativa e filosófica, na biblioteca de sua casa, ao amigo e jornalista Osvaldo Ferrari. Os 90 encontros produzidos para irem ao ar pela Rádio Municipal de Buenos Aires, que também foram publicados no jornal “Tiempo Argentino”, saem no Brasil em versão integral, em três livros da editora Hedra: “Sobre os Sonhos e Outros Diálogos”, “Sobre a Filosofia e Outros Diálogos” e “Sobre a Amizade e Outros Diálogos”, todos organizados e traduzidos por John O’Kuinghttons.



Prelúdio para o diálogo



Tento esquecer todos os muitos preconceitos que tenho e aprendi aquele admirável hábito de supor que o interlocutor tem razão. Podemos estar errados, o interlocutor pode estar tão errado quanto nós, mas, de qualquer forma, o fato de supor que o interlocutor tem razão é um bom prelúdio para o diálogo”, defende Borges com sua ironia característica em “Sobre a Filosofia”. 









Outros Borges: no alto da página, acima
e abaixo, Jorge Luis Borges 
em 1968,
fotografado por Sara Facio na época em que
Borges era diretor da Biblioteca Nacional
em Buenos Aires, Argentina.

Também abaixo, Borges e seus gatos:
Beppo
o gato branco com o qual o escritor
conviveu 
durante 15 anos e que foi batizado
com o nome do personagem criado por Byron,
Odin
o gato birmanês com o nome do
deus mais importante da mitologia nórdica,
que foi sua 
companhia em Buenos Aires nos
últimos anos de vida, 
em fotografias de
1980 de
Paola Agosti. Borges também
teve outros gatos, dois deles registrados
em fotos muito conhecidas: Freyja,
a gata da Abissínia que foi batizada em
homenagem à deusa do amor e da beleza
na mitologia nórdica (na fotografia em preto
e branco de 1982 de Amanda Ortega) e
um misterioso gato preto que está nas
fotografias da capa da primeira edição
de Uma antologia pessoal (1968) e
na primeira edição em inglês de
A personal anthology, de 1994









Outra série de entrevistas concedidas pelo escritor que chegou às livrarias é “Ensaio Autobiográfico”, relançamento da Companhia das Letras, em tradução de Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz. A edição reúne a transcrição saborosas das conversas mantidas por Borges com um de seus tradutores, o jornalista norte-americano Norman Thomas di Giovanni.

Em sua maior parte ditados em inglês por Borges a seu interlocutor nos primeiros meses de 1970, os textos do livro tiveram sua primeira publicação na revistaThe New Yorker”, contribuindo para popularizar a literatura e a personalidade do escritor entre o público de língua inglesa. Até então, a fama e o prestígio de Borges estavam restritos, fora da Argentina, aos leitores mais eruditos dos países da Europa e ao público universitário, graças a cursos e palestras que o escritor apresentou nos Estados Unidos durante a década de 1960.
























No “Ensaio Autobiográfico”, Borges comenta sobre seus ancestrais paternos e maternos, sobre sua infância quase isolada do mundo, suas experiências ruins na escola e aquilo a que ele sempre nomeia como "evento principal" de sua vida: a grande biblioteca de seu pai, da qual ele acreditava "nunca ter saído". A partir dessas primeiras leituras, quase todas em inglês, ele traça a autobiografia literária e intelectual que compõe o cerne do livro.

Muitas outras referências das mais preciosas para compreender a formação e a carreira de um dos escritores mais singulares do último século também surgem no “Ensaio Autobiográfico”. No relato de Borges sobre si mesmo não faltam confissões discretas e pitadas controvertidas de política, entre elas os comentários que deixam transparecer seu ódio por Perón ("em 1946 subiu ao poder um presidente cujo nome não quero lembrar"). A aversão vem do fato de ter sido durante o governo de Perón que um memorando levou Borges a ser "promovido" do cargo de bibliotecário a inspetor de aves e coelhos nos mercados municipais de Buenos Aires. 















Jorge Luis Borges: acima, em três de seus
mais emblemáticos retratos, registrados em
1984 pelo italiano Ferdinando Scianna.

Abaixo, Borges em seu apartamento em
Buenos Aires, em novembro de 1981,
fotografado por Eduardo Di Baia; e Borges
na antiga sede da Biblioteca Nacional,
também em Buenos Aires, em 1955, na época
em que foi nomeado diretor da instituição










            















Um dos mais longos textos de um autor conhecido pela concisão exemplar, "Ensaio Autobiográfico" foi pensado inicialmente para ser uma breve introdução à edição norte-americana de The Aleph and other stories”, mas acabou ganhando outras dimensões. Além de apresentar e discutir as referências de seu imaginário, Borges faz generosas menções a grandes amigos, como Macedonio Fernández e seu parceiro em algumas obras, Adolfo Bioy Casares. Mas não cita as mulheres ou sua vida amorosa. Ao leitor atento, Borges reserva lições surpreendentes, como a confissão pessoal que encerra o relato:

"Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto ao fracasso e à fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam. Agora o que procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado". Estava com 71 anos. 












Borges entre amigos em Buenos Aires:
no alto, à direita, em Mar del Plata, com
Victoria Ocampo Adolfo Bioy Casares.
Acima, com Estela Canto em 1945; e com
amigos em Mar del Plata em 1964 (a partir
da esquerda, Borges, Maria Esther Vásquez,
Silvina Ocampo, Cecília Boldarin, Bioy Casares
e Martha Bioy). Abaixo, Borges com Bioy
Casares em Buenos Aires, na década de
1950; e em Barcelonaem 1985,
fotografados por Julio Giustozza.

Também abaixo, Jorge Luis Borges
com alguns de seus interlocutores e
também escritores: com o argentino
Ernesto Sabato (na década de 1970),
compartilhando um café e passeando
pela Plaza Dorrego, em Buenos Aires;
com o italiano Italo Calvino (na década
de 1980); com o mexicano Octavio Paz
durante visita ao México em 1981;
Borges aos 3 anos, em 1904; o escritor
com sua mãe, Leonor Acevedo; em 1983,
fotografado na biblioteca de seu apartamento
em Buenos Aires por Christopher Pillitz; e em
mais quatro retratos: nos dois primeiros,
fotografado por Alicia D'Amico, e nos dois
seguintes fotografado por Sylvia Plachy











Visão de mundo



Entre os lançamentos recentes também está “O Olhar de Borges – Uma Biografia Sentimental” (Editora Autêntica), de Solange Ordóñez, filha Carlos Fernández Ordóñez, advogado de Borges que herdou seus célebres cadernos de rascunhos e morreu três meses após o escritor. No relato de Solange, a aproximação familiar desde a infância com o escritor permite o viés “sentimental” nos estudos e descrições sobre os rascunhos Borges. Nos cadernos, preenchidos dos anos 1920 até os anos 1950, quando perdeu a visão, Borges anotou aforismos, aulas e as primeiras versões de algumas conferências que ministrou.

Também merece destaque nas livrarias “O Século de Borges”, da professora da UFMG Eneida Maria de Souza, relançado depois de dez anos. Editado pela Autêntica, o livro reúne 11 ensaios nos quais Eneida recria o universo de Borges com base em determinadas situações vividas pelo escritor. Temas como o exílio, as guerras, a cegueira e a morte, os grandes dilemas do homem contemporâneo, são avaliados em leitura atenta às particularidades “borgianas” e aos passos de sua biografia.









.










Minha terra tem palmeiras”, primeiro ensaio do livro de Eneida Maria de Souza, aborda certas questões sobre Borges e a identidade nacional – destacando que “para o escritor argentino, a pátria, se existe como identidade, ocupa um espaço imaginário, cujas fronteiras não coincidem com as da nação”. O mesmo tema é retomado nos ensaios seguintes, principalmente em “Genebra, 14 de junho de 1986”, que discute a escolha de Borges por morrer na cidade suíça, que ele conheceu teria conhecido na juventude.

Segundo o relato de Borges registrado no programa “Conexão Internacional”, na passagem pelo Brasil, durante aquela viagem em sua juventude, ele teria ouvido um serviçal cantar uma canção inspirada no poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Na entrevista, Borges cantarola os versos em português, dos quais ele nunca mais esqueceu:


Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá
As aves, que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá...















Em exercício de maestria em literatura comparada, o ensaio de Eneida cita os mesmos versos para recorrer ao tema do duplo, muito presente na obra de Borges, em sua relação com Stevenson, Freud e Oscar Wilde, entre outros. E lembra que, diferente do romântico brasileiro Gonçalves Dias (1823-1864), que sonhava morrer em solo pátrio, como símbolo de um novo nascimento, Borges preferiu morrer no lugar que simboliza o nascimento, não do corpo, mas do intelectual para o conhecimento e a literatura.

Outro lançamento sobre o autor de “História Universal da Infâmia” (1935) vem da Editora UFMG: “Borges e Outros Rabinos”, de Lyslei Nascimento, que aborda a apaixonada leitura de Borges sobre elementos da cultura judaica. Na trilha das referências e citações da Bíblia e dos símbolos do judaísmo na obra do escritor, o livro é uma versão da tese de doutorado da autora, que é professora da da UFMG.

 





Os grandes escritores não envelhecem nunca. Muito pelo contrário, estão sempre atuais. Veja Shakespeare, Cervantes ou Machado de Assis”, aponta Lyslei Nascimento. “No caso de Borges, trata-se de uma obra que se confunde com o próprio conceito de literatura. Ou melhor, é uma literatura produzida à moda dos rabinos, na qual a verdade está sempre sendo escrita, sendo construída como um comentário ou uma interpretação, nunca é completa”. Para a professora, que também coordena o Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, Borges encontra na Bíblia uma das razões de sua revolucionária arte de narrar, construída de citações e comentários sobre os autores da biblioteca universal.



O cadáver ilustre



Assim como no modo judaico de escrita e interpretação da escrita, Borges reescreve a verdade”, alerta a professora. “Sua literatura abole os conceitos de originalidade e de autoria, no papel de traduzir a tradição da cultura. É uma literatura que prova que a verdade depende sempre do ponto de vista. Meu objetivo foi ler nos textos de Borges símbolos como o Aleph, o Golem, a narrativa policial e os contos sobre a Shoah”, conclui.  













Situando-se às margens das preocupações sociais comuns à maior parte dos escritores latino-americanos, Borges permanece aberto à pesquisa e ao diálogo. Como destaca ele próprio, em “Sobre a Filosofia”: “O diálogo é um dos melhores hábitos do homem, inventado, como quase todas as coisas, pelos gregos. Os gregos começaram a conversar e continuamos desde então”.

Herdeiro de uma cegueira hereditária, Borges, gradativamente, vai ficando cego a partir dos 45 anos. Por ironia do destino, o avanço da cegueira coincide com o melhor da literatura que ele iria produzir, incluindo a publicação de seus livros mais famosos, “Ficções” (1944) e “O Aleph” (1949), ambos coletâneas de histórias curtas interligadas por temas como os sonhos, espelhos, labirintos, bibliotecas, Deus e as religiões.

Nas palavras de Borges, "os poetas, como os cegos, podem ver no escuro". É como se o escritor começasse a usar a imaginação para “enxergar” e criar sua poética a partir da memória visual de imagens e de leituras armazenadas antes da perda da visão real. A expressão “ver com os olhos da imaginação” o próprio Borges retirou de um verso da “Divina Comédia” de Dante Alighieri (1265–1321): “Poi piovve dentro a l’alta fantasia”.









A chuva, ao produzir imagens de pouca nitidez, forma uma espécie de cortina que chega a embaçar a visão: daí a estratégia narrativa de Borges de assumir máscaras de outros Borges e outros escritores, reais ou fictícios, assumindo o papel de um ator na ação imaginária para produzir uma obra literária feita de ecos e espelhos, calcada na fantasia. Através da invenção literária, Borges passaria a “enxergar” o que um homem de visão pensa que vê e o que o cego não parece poder enxergar: a vida inventada passaria então a fazer parte da existência real, cotidiana.

Os desdobramentos da literatura de Borges também nos levam até “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, conto publicado pela primeira vez em 1940 e incluído em “Ficções”, que relata a criação concretizada por meio da linguagem. Na história, um artigo enciclopédico sobre um enigmático país chamado Uqbar é a primeira indicação sobre Orbis Tertius, gigantesca conspiração de intelectuais para imaginar (e possivelmente criar) um novo mundo: Tlön.

 









Últimas fotos: Borges e Maria Kodama
em junho de 1986 passeiam por Genebra
(acima e abaixo). Também abaixo, o escritor
homenageado em uma caricatura de autor
anônimo e seu túmulo em Genebra, Suíça,
com a lápide que apresenta uma imagem de
guerreiros talhados na pedra e uma inscrição
abaixo do nome de Borges com a citação
de um poema anglo-saxão do século 10,
A batalha de Maldon, traduzido por
Borges, que evoca uma batalha heroica
contra invasores vikings. A inscrição diz
"And ne forhtedon na" e pode ser
traduzida por Não tenha medo.
No final da página, uma homenagem
ao escritor nas ruas de Buenos Aires








A realidade de Tlön, recriada, se afirma como imagem inversa do mundo real, imagem em um espelho imaginário, em que as coisas se duplicam. Borges, que por capricho do destino traz no próprio sobrenome a forma plural, segue e refaz, sutilmente, as leis não escritas do espaço e do infinito em jogos de espelho que refletem, duplicam, atualizam os grandes clássicos da literatura fantástica.

No universo que a escrita de Borges circunscreve, a criação pelas letras e pelos reflexos de outros livros, outros autores, passa a ser compreendida como um processo de transfiguração. Este processo está representado em alguns de seus contos mais celebrados, que fornecem autênticas pedras angulares sobre o próprio Borges e sobre seus duplos, como se vê em “Pierre Menard, autor do Quixote” ou em “Funes, o Memorioso”, entre tantos outros. Sua herança, contudo, ainda gera polêmicas no mundo real.







A Fundação Borges, fundada por sua viúva, Maria Kodama, em 1995, segue mal vista pelo público e por setores da intelectualidade dentro e fora da Argentina. Muitos consideram Kodama uma “aproveitadora” porque ela se casou com o escritor apenas dois meses antes dele morrer, em 14 de junho de 1986. Quase tudo ficou com a viúva – incluindo os bens da herança e os direitos autorais. Ela diz que conheceu Borges aos 12 anos, quando foi levada pelo pai a uma conferência do escritor em Buenos Aires. 

Depois de acompanhar a participação de Borges em eventos públicos e de se matricular em alguns cursos com o escritor, Kodama passou a trabalhar como sua secretária a partir de 1975. Desde a morte do autor de "Ficções", Kodama tem se dedicado “full time” à fundação, primeiro na criação da entidade e depois na manutenção do acervo. A Fundação Borges, com sede em Buenos Aires, organiza exposições e eventos na Argentina e no exterior. Também gerencia o espólio e detém os direitos sobre traduções e edições das obras completas de Borges.

O corpo do escritor, que repousa no cemitério de Plainpalais em Genebra, também tem gerado mais de uma controvérsia nas últimas décadas. Recentemente, políticos argentinos chegaram a fazer uma campanha para tentar trazer de volta os restos mortais às terras portenhas – mas a iniciativa fracassou. As autoridades suíças não abriram mão dos direitos sobre o cadáver ilustre.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Outros Borges. In: Blog Semióticas, 10 de abril de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/04/outros-borges.html (acessado em .../.../…).




















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