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12 de outubro de 2016

O poder da flor







Uma companhia de PMs surgiu da direita, correndo
desajeitadamente como fantoches. Estacaram diante da
rampa, reagruparam-se, colocaram os rifles em riste e
avançaram. Os manifestantes, incrédulos, abriram-lhes
passagem, atônitos, defrontando pela primeira vez as
armas dos “nossos rapazes”. Então ocorreu algo
extraordinário. As pessoas começaram a rir. Algumas
lançaram flores amarelas sobre os soldados, que agora
estavam parados, petrificados, com armas apontadas
para moças e rapazes da mesma idade deles.

Norman Mailer, “Os Exércitos da Noite” (1968). 




Há fotografias que conseguem revelar a tradução de toda uma época. Uma delas, por certo, é a moça com a flor em frente à tropa policial em um protesto contra a Guerra do Vietnã – fotografia que o francês Marc Riboud registrou no dia 21 de outubro de 1967, em Washington, Distrito de Colúmbia, capital dos Estados Unidos, durante a manifestação que reuniu uma multidão de estudantes e militantes dos movimentos populares e que ficou conhecida como Marcha sobre o Pentágono. Riboud, que era fotojornalista da Agência Magnum e morreu no último dia 31 de agosto, aos 93, provavelmente não imaginou a força simbólica que sua fotografia iria conquistar com o passar dos anos e, na época, nomeou a fotografia apenas como “La jeune fille a la fleur” (A moça com a flor).

A imagem fotografada por Marc Riboud e o gesto da moça com a flor ganhariam reprodução em jornais e revistas do mundo inteiro, tornando popular a expressão “Flower Power” (Poder da flor) e criando um símbolo marcante tanto para os movimentos pacifistas desde a década de 1960, como para toda a contracultura que prosperava naquele tempo – com reflexos que fizeram história inclusive no Brasil e em Portugal. No Brasil, a fotografia de Riboud foi uma inspiração para Geraldo Vandré criar em 1968 
“Pra não dizer que não falei das flores”, uma canção que marcou época como hino de resistência à censura e à violência da ditadura militar. Em Portugal, em 25 de abril de 1974, teve início a Revolução dos Cravos, quando soldados descumpriram ordens e saíram dos quartéis para exigir o fim da ditadura Salazar, e o povo imediatamente saiu às ruas para distribuir cravos vermelhos para os soldados rebeldes.

A moça com a flor na manifestação em Washington, na cena inusitada que sugere um estranho contraponto aos fuzis dos policiais, era Jan Rose Kasmir, mas Marc Riboud só descobriu o nome da protagonista de sua fotografia mais célebre depois de mais de três décadas, em 2003. Na época uma anônima estudante do ensino médio, de 17 anos, Jan Rose Kasmir havia se juntado à passeata do movimento pacifista quando saía da escola. No desfecho da marcha, o imprevisível aconteceu: a atitude de Jan Rose, oferecendo uma flor de crisântemo diante dos soldados armados, inspirou vários outros manifestantes a repetirem o gesto pacifista desde aquela época e até a atualidade (veja também Semióticas: Desobedeça!).
















Flower Power – O poder da flor: a jovem
Jan Rose Kasmir e seu gesto de grande força
simbólica fotografado por Marc Riboud na
Marcha sobre o Pentágono no dia 21 de outubro
de 1967. No alto, a fotografia em cores que
só recentemente foi revelada por Riboud.

Abaixo, a força simbólica do gesto da moça
com a flor da fotografia de Marc Riboud em
um de seus reflexos pelo mundo afora: uma
fotografia de autor desconhecido registrou a
Revolução dos Cravos nas ruas de Portugal,
em 25 de abril de 1974, quando soldados
descumpriram ordens e saíram dos quartéis
para exigir o fim da ditadura Salazar; o povo
português imediatamente saiu às ruas e
distribuiu cravos vermelhos para os soldados
rebeldes. Também abaixo, o fotógrafo
Marc Riboud em 2009, em Paris, e em
ação durante a manifestação de 1967
















Naquele dia 21 de outubro de 1967, outros fotógrafos também registraram cenas semelhantes no mesmo protesto em Washington – caso de Bernie Boston, que fotografou para o jornal “The Washington Evening Star”, com filme em preto e branco, um outro estudante anônimo colocando uma flor no cano de um fuzil dos policiais que montavam guarda na entrada principal do Pentágono. Entre outras fotografias com manifestantes repetindo o gesto com a flor, naquela mesma manifestação, há também uma imagem em cores registrada por um fotógrafo anônimo do Departamento de Defesa e revelada pelo Instituto Smithsonian em 1997, 30 anos depois do evento em Washington. A foto mostra outra moça anônima, de cabelos longos e de chapéu, também oferecendo uma flor de crisântemo aos policiais durante a marcha.

A fotografia, encontrada nos arquivos do Instituto Smithsonian, era o único registro em cores da manifestação de 1967, mas recentemente o próprio Marc Riboud surpreendeu a todos quando apresentou uma versão colorida da célebre “La jeune fille a la fleur”. A novidade foi descoberta quando Riboud organizava seus arquivos para uma exposição em Paris, promovida pela Agência Magnum, com a retrospectiva de suas fotografias mais conhecidas em mais de 50 anos dedicados à profissão de fotojornalista.







Flower Power – O poder da flor: três fotografias
na sincronicidade da mesma época, em 1967.
Acima, o estudante que Bernie Boston fotografou
durante a Marcha sobre o Pentágono para o
jornal The Washington Evening Star. Abaixo,
uma outra manifestante anônima repete o gesto
simbólico da flor, também na Marcha sobre o
Pentágono, em imagem que foi registrada por
um fotógrafo anônimo do Departamento de
Defesa dos EUA; e a multidão no Hyde Park,
em Londres, também em 1967, em marcha pela
legalização da maconha, em fotografia de
Stanley Sherman para o jornal Daily Express

















O pintor da Torre Eifell



Segundo relato de Riboud, em entrevista concedida à Associated Press na abertura da exposição, em 2009, no Musée de la Vie Romantique, em Paris, ele usou todos os rolos de filme em preto e branco que carregava registrando a passeata, durante horas, naquele dia 21 de outubro de 1967. No final da tarde, quando percebeu a moça que avançava sozinha, com a flor de crisântemo, na linha de frente da marcha, em direção à tropa de policiais, viu que restavam poucas poses do seu último filme.

Foi então que Marc Riboud lembrou da outra câmera, com filme positivo, em cores, que ele havia usado pela manhã para fotografar paisagens para uma série de slides sob encomenda. Ele sacou esta outra câmera e clicou a cena três ou quatro vezes, mas depois, por descuido e também por pressa, acabou esquecendo do filme positivo que estava na câmera e divulgou apenas as fotos em preto e branco. Por acaso, só voltou a localizar as imagens na véspera da exposição em Paris, 42 anos depois do flagrante sobre aquela cena que marcou época.






Flower Power – O poder da flor: dois
flagrantes de Paris registrados em
fotografias de Marc Riboud. Acima,
“Zazou, le peintre de la Tour Eiffel”
(Zazou, pintor da Torre Eiffel), fotografia
de 1953. Abaixo, os estudantes nas ruas
nos protestos de maio de 1968








Marc Riboud foi um dos grandes fotógrafos que participaram das duas frentes: esteve presente nos campos de batalha, fazendo cobertura jornalística sobre a guerra do Vietnã, e também atuou como fotojornalista registrando os protestos contra a guerra, principalmente nos Estados Unidos, tendo suas fotografias publicadas pelas revistas “Look”, “Life”, “Stern”, “National Geographic” e “Paris Match”, entre outras. Por uma incrível coincidência, foi através de um convite de Robert Capa, o mais célebre dos fotógrafos de guerras, que Riboud começou na profissão de fotojornalista.



A força simbólica do gesto



Em 1953, exatamente 14 anos antes da fotografia de Jan Rose Kasmir e sua flor de crisântemo contra a tropa policial, Riboud ainda era um fotógrafo amador quando registrou uma outra imagem surpreendente – “Zazou, le peintre de la Tour Eiffel” (Zazou, pintor da Torre Eiffel). Na fotografia, o operário surgia como se estivesse executando um passo de balé nas alturas do monumento de Paris. Por um lance de sorte, a imagem foi selecionada para uma exposição coletiva em Paris e terminou publicada pela revista “Life”, chamando a atenção do mestre Robert Capa, que havia criado, em 1947, a Agência Magnum, junto com Henri Cartier-Bresson e David “Chim” Seymour (veja também Semióticas: Robert Capa em cores).

Robert Capa, impressionado com o retrato do operário Zazou na Torre Eiffel, convidou Marc Riboud para trabalhar na Agência Magnum. A partir daí, Riboud iria se consagrar como um dos grandes fotojornalistas do século 20 – registrando personagens anônimas e cenas poéticas ou prosaicas em cenários incomuns e tão diversos como a China nos primeiros tempos da Revolução de Mao Tsé-Tung, as guerras pela independência da Argélia e outros países da África, a turbulência e o exotismo do Afeganistão e da Revolução dos Aiatolás no Irã ou em Cuba, no começo da década de 1960, pouco depois da tomada do poder por Che Guevara e Fidel Castro, as barricadas dos estudantes nas ruas de Paris, em maio de 1968, e os protestos recentes contra a Guerra do Iraque e pela causa dos refugiados dos países árabes. Foi durante um protesto contra a invasão do Iraque pelos EUA, em 2003, nas ruas de Londres, que Riboud encontrou Jan Rose Kasmir pela primeira vez depois da Marcha sobre o Pentágono de 1967. 







Flower Power – O poder da flor: as provas
de contato do filme usado por Marc Riboud
em 1967, incluindo o gesto simbólico de
Jan Rose Kasmir e o trajeto dos
manifestantes até o Pentágono (abaixo).
Também abaixo, fotografia feita para um
anúncio publicitário de 2012 da grife Ray-Ban,
chamada "The Kiss" e com o slogan "Never Hide",
reconstitui uma cena dos protestos em Washington





 










 
Entre todas as fotografias da trajetória de Marc Riboud, muitas delas premiadas, a imagem mais célebre e a mais lembrada nas últimas décadas continua sendo “La jeune fille a la fleur” – a mais completa tradução de uma época e de uma marcha que deu origem a muitas e muitas outras manifestações de protesto por causas diversas, em seu contraponto simbólico de mais de 100 mil pessoas, na sua maioria estudantes, hippies e militantes pacifistas de movimentos sociais de um lado, tendo do outro lado a tropa de 2.500 soldados fortemente armados em frente ao Pentágono.

A força simbólica do gesto de Jan Rose Kasmir, registrada naquela foto de Marc Riboud, e a surpreendente multidão reunida na manifestação, entretanto, não foram suficientes para interromper a Guerra do Vietnã – e terminaram resultando, no final daquele dia 21 de outubro de 1967, em uma resposta violenta e desproporcional da tropa de soldados, que avançou contra os manifestantes com cassetetes, tiros e bombas de gás lacrimogêneo, provocando pânico e deixando centenas de feridos.






Flower Power – O poder da flor: acima,
o destaque da Marcha sobre o Pentágono na
capa da revista Time na última semana de
outubro de 1967. Abaixo, três flagrantes dos
protestos em registros feitos por fotógrafos a
serviço do Departamento de Defesa dos EUA




















Exércitos da noite



Naquele dia 21 de outubro de 1967, cerca de 700 manifestantes foram presos – mas a repressão e a violência policial, ao contrário de amedrontar a militância do movimento pacifista, acabou gerando muitos outros protestos nos meses e anos seguintes. O escritor Norman Mailer (1923-2007) estava entre os manifestantes que foram presos e transformou a experiência em um livro antológico que registra, em detalhes, a passeata e o confronto final. O livro, que passaria a ser considerado um marco do chamado “New Journalism” com sua renovação das técnicas narrativas nas décadas de 1960 e 1970 – recebeu o título “Os Exércitos da Noite” (Armies of the Night) e foi publicado no Brasil pela Editora Record.

Importante expoente da contracultura e um dos fundadores do influente jornal alternativo “The Village Voice”, Norman Mailer situa seu relato entre os dias 19 e 22 de outubro de 1967, às vésperas e no dia seguinte à marcha pacifista. Permeando sua mistura visionária de literatura e jornalismo com o explosivo contexto da vida norte-americana do período, Mailer apresenta, como autor-personagem-testemunha, em duas partes simétricas (a primeira, intitulada “A História como Romance”; a segunda, “O Romance como História”), uma reflexão inovadora sobre a força da contracultura e o surgimento da cultura hippie, a emergência dos movimentos sociais e os antecedentes das lutas libertárias que ficariam conhecidas como “protestos pelos direitos civis”.






Flower Power – O poder da flor: acima,
o jornalista e escritor Norman Mailer, autor
de Os Exércitos da Noite, fotografado
em 1968, em Nova York, por Inge Morath.
Abaixo, a capa da primeira edição do livro
lançado no Brasil pela Editora Record







No painel traçado por Norman Mailer, o “poder do amor e da flor” surge como antídoto e repúdio aos ideais burgueses e contra toda forma de violência, discriminação, repressão, consumismo e massificação. Povoado por militantes que se multiplicavam em roupas não convencionais, com cabelos compridos e desalinhados, pés descalços ou de chinelos e sandálias de couro, jeans desbotados, batas em estilo indiano e palavras de ordem de contestação e protesto contra o sistema, o livro de Norman Mailer fez História e venceu as principais premiações da literatura e do jornalismo dos EUA em 1968, incluindo o Pulitzer, o National Book Award e os prêmios honorários concedidos pela Universidade de Long Island e outras instituições.



Caminhando e cantando



Os ecos provocados por acontecimentos culturais como a Marcha sobre o Pentágono nos EUA, a força do gesto simbólico da moça com a flor na fotografia de Marc Riboud e o relato confessional publicado por Norman Mailer em “Os Exércitos da Noite”, entre outros, encontraram terreno fértil e repercussão em outras partes do mundo – inclusive no Brasil. Também aqui, a segunda metade da década de 1960 trouxe um cenário de rebeldia, de rompimento com a ordem imposta e com os valores da tradição conservadora, agravado pela censura e pela repressão decorrentes da ditadura militar instaurada com o golpe de 1964.







Flower Power – O poder da flor: acima,
capa do LP Tropicália ou Panis et Circences,
de 1968, que reúne, a partir do alto, em sentido
horário, Arnaldo Baptista, Caetano Veloso (com
a foto de Nara Leão), Rita Lee, Sérgio Dias,
Tom Zé, Torquato Neto, Gal Costa, Gilberto Gil
(com a foto de Capinam) e Rogério Duprat.
A capa foi criada por Rubens Gershman
a partir da fotografia de Olivier Perroy.

Abaixo, dois momentos do marco inicial da
Tropicália: Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e
Rita Lee, Os Mutantes, chegam com Gilberto Gil
ao Teatro da TV Record, em São Paulo, para
participar da 3ª edição do Festival da Música
Popular Brasileira, em outubro de 1967;
e no palco, naquela noite, durante a
apresentação de Domingo no Parque










O final do ano de 1967 tem, no Brasil, a marca dos grandes festivais de música e do nascimento do movimento tropicalista, tendo à frente as canções “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso, e “Domingo no Parque”, parceria de Gilberto Gil com Os Mutantes, apresentadas na terceira edição do Festival de Música Popular Brasileira. Promovido pela TV Record, a mesma edição do festival teve outras canções que também fizeram história, entre elas "Roda Viva", de Chico Buarque, e a canção vencedora do evento, "Ponteio", de Edu Lobo e Capinam, interpretada por Marília Medalha. Abandonando qualquer princípio de xenofobia e o estilo didático dos movimentos da esquerda tradicionais, os tropicalistas vão misturando referências diversas à cultura brasileira, quebrando preconceitos, embaralhando as cartas da música e da arte popular e atualizando o Manifesto Antropófago de 1928 de Oswald de Andrade em seus pressupostos: devorar a influência estrangeira para recriá-la em bases nacionais, tipicamente brasileiras.

Este procedimento “antropofágico” alcança a Marcha Pacifista de Washington de 1967, a fotografia “La jeune fille a la fleur” de Marc Riboud e o relato romanceado de Norman Mailer especialmente através da canção lançada em 1968 pelo cantor e compositor Geraldo Vandré – “Pra não dizer que não falei das flores”, que disputou o 3° Festival Internacional da Canção, realizado em setembro de 1968 no ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, e ficou classificada em segundo lugar no julgamento final, mesmo sendo a favorita do público. Ao final do festival, alguns dos jurados, entre eles a cantora Bibi Ferreira e o cartunista Ziraldo, se declararam muito surpresos e decepcionados com o resultado, porque deram nota máxima à canção de Vandré.



Hino contra a ditadura militar



Anos depois, em 1991, Walter Clark, que em 1968 era diretor geral da Rede Globo de Televisão, organizadora e transmissora exclusiva do festival, fez uma revelação explosiva em sua autobiografia, "O Campeão de Audiência", escrita em parceria com o jornalista Gabriel Priolli e relançada recentemente pela Editora Summus. Segundo Walter Clark, a Rede Globo, porta-voz e aliada incondicional da ditadura militar, teria recebido orientação do Exército para que a canção de Vandré, considerada um manifesto mobilizador do público contra a censura e contra a ditadura militar, fosse sumariamente desclassificada. A vencedora do festival, sob intensas vaias da plateia, foi a canção “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim.










Flower Power – O poder da flor: acima
e abaixo, Geraldo Vandré, compositor de
Pra não dizer que não falei das flores,
no palco do ginásio do Maracanãzinho,
em setembro de 1968, durante o Festival
Internacional da Canção transmitido
pela TV Globo. Também abaixo:

1) retratos da ditadura militar em fotografias
de 1968 de Evandro Teixeira que registram
a movimentação de manifestantes e
um estudante de medicina atacado por
militares durante um protesto na Cinelândia,
no Rio de Janeiro; 2) fotos dos mortos e
desaparecidos extraídas dos arquivos
da Comissão Nacional da Verdade, que 
funcionou entre 2012 e 2014; e 3) imagem
da célebre Passeata dos Cem Mil contra a
Censura e Contra a Ditadura Militar, que
foi organizada pelo movimento estudantil
e contou com a participação de muitos
intelectuais e artistas, em 26 de julho de
1968. A fotografia é de Evandro Teixeira
com intervenções em cores e textos feitos
mão por Marcelo Brodsky em 2015
















Pra não dizer que não falei das flores”, que também ficaria conhecida pelo público como “Caminhando”, alcançou imediato e imenso sucesso popular. Vandré compôs sua melodia em acordes simples e com ritmo repetido no mesmo tom que, juntos, lembram um hino. Sua letra, também aparentemente simples, mas com versos que alcançam complexidade ao citar a luta armada, criticam, ao mesmo tempo, tanto a imobilidade das pessoas diante do regime autoritário como os movimentos que pregavam “paz e amor”.


Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões

Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão

Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição:
De morrer pela pátria
E viver sem razão

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Somos todos soldados
Armados ou não

Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão

Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer



A letra da canção cita as flores em três passagens: “ainda fazem da flor / seu mais forte refrão”, “e acreditam nas flores / vencendo o canhão” e “os amores na mente / as flores no chão / a certeza na frente / a história na mão”. A mensagem de convocação pela resistência contra o golpe militar era evidente: não adiantava falar de flores diante dos que atacavam com armas. Logo após o desfecho do Festival Internacional da Canção, “Pra não dizer que não falei das flores” foi proibida oficialmente em todo o território nacional.




 
 



No final de 1968, a ditadura militar decretou o Ato Institucional N° 5 (AI-5) que fechou o Congresso Nacional, cassou direitos políticos, suspendeu as garantias constitucionais e reforçou a censura. Assim como centenas de políticos, cientistas, intelectuais e artistas, Geraldo Vandré também foi obrigado a deixar o Brasil e partir para o exílio – primeiro no Chile, de onde seguiria para a Argélia, Alemanha, Grécia, Áustria, Bulgária e França. Mas nem todos conseguiram escapar da perseguição política.

Recentemente, quase 30 anos depois do fim da ditadura militar, começaram a surgir os números de vítimas assassinadas no período de 1964 a 1985. Depois de dois anos e sete meses de trabalho, realizado entre 2012 e 2014, o relatório final apresentado pela Comissão Nacional da Verdade registrou, além de milhares de filmes, livros, canções, programas de rádio e TV, espetáculos de teatro e de música censurados e proibidos, milhares de pessoas presas, mais de sete mil exiladas, mais de 20 mil torturadas e mutiladas e 434 mortes e desaparecimentos políticos oficialmente vítimas dos militares que tomaram o poder no Brasil. Destas 434 mortes, 191 pessoas foram assassinadas, 210 foram registradas como desaparecidas e 33 foram listadas como desaparecidas, mas depois seus corpos foram encontrados. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, a lista completa de vítimas da ditadura militar pode ser ainda muito maior, já que as Forças Armadas pouco colaboraram com as apurações.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O poder da flor. In: Blog Semióticas, 12 de outubro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/10/flower-power-o-poder-da-flor.html (acessado em .../.../...).



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