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7 de maio de 2012

Saudades da Amélia





Mas o meu nome ninguém vai jogar na lama
diz o dito popular: morre o homem, fica a fama.

–– Ataulfo Alves, “Na cadência do samba”.
 





Meses antes do centenário, foram anunciados projetos milionários e ambiciosos, com captação de recursos através das leis de incentivo, para a realização de exposições multimídia que viajariam pelas capitais, documentários de longa-metragem, musicais reunindo elenco de estrelas. Mas passou o tempo, quase nada se concretizou e o centenário do cantor e compositor Ataulfo Alves (1909-1969) passou em brancas nuvens.

De concreto houve apenas o lançamento de um CD pela Lua Music, com novas versões de seus grandes sucessos, um programa da TV Globo exibido de madrugada, a biografia escrita pelo jornalista Sérgio Cabral e uma ou outra matéria em jornais e revistas. Na pequena Miraí, na Zona da Mata de Minas Gerais, terra natal de Ataulfo, imortalizada nos versos de “Meus tempos de criança”, a instalação de uma estátua, uma missa e um mausoléu humilde aberto no cemitério foram as homenagens que a cidade prestou a seu filho mais ilustre.

Os tímidos tributos foram muito pouco diante da importância de Ataulfo – personalidade que o compositor e historiador do samba Nei Lopes, autor de “Zé Kéti: O Samba sem Senhor” (Relume Dumará, 2000) e “Partido-Alto, Samba de Bamba” (editora Pallas, 2005), classifica como “um dos pilares sobre os quais se ergueu a música popular brasileira”. Nascido no dia 2 de maio de 1909, Ataulfo escreveu 320 canções e foi gravado pelos grandes da música no Brasil desde a década de 1930.









No alto, Ataulfo Alves e suas pastoras em
foto promocional da década de 1940; acima,
estátua em homenagem ao compositor na praça
central da cidade de Miraí, em Minas Gerais.

Abaixo, Ataulfo em 1944 com Olga, Marilu
e Alda, a primeira formação do grupo
Ataulfo Alves e suas Pastoras, e
fotografado para a revista O Cruzeiro
na década de 1960










Um dos raros contratados pela Rádio Nacional durante 30 anos, até sua morte em 20 de maio de 1969, Ataulfo também foi um dos fundadores e principais expoentes da União Brasileira de Compositores (UBC), forte sociedade de direitos autorais, precursora do famigerado ECAD. Sérgio Cabral, que no final do ano do centenário lançou a biografia intitulada "Ataulfo Alves – Vida e Obra" (Editora Lazuli), destaca que ele foi o primeiro negro a fazer sucesso como cantor no Brasil, com a gravação de “Leva meu samba”, lançada em 1941.

Ataulfo foi um dos maiores colecionadores de sucessos que marcaram época na música brasileira e que sobrevivem até hoje no imaginário popular”, apontou Cabral na entrevista que fiz com ele por telefone, em março de 2010. “Acho importante reconhecer que Ataulfo foi um pioneiro em várias frentes. Basta dizer que, com 'Leva meu samba' e principalmente com 'Amélia', parceria com Mário Lago, ele foi o primeiro negro a fazer sucesso como cantor no Brasil. Conheci bem o Ataulfo, convivi com ele. Era um sujeito consciente do que representava ser negro e fazer sucesso e administrava muito bem o ranço racista que era muito forte”. 

 







O mais elegante



Cabral também lembrou que Ataulfo Alves fazia questão de se destacar pela elegância e prezava a amizade de políticos. “Ele causou frisson quando apareceu pela primeira vez na lista dos mais elegantes da coluna do Ibrahim Sued. E mais ainda quando foi eleito o mais elegante, em 1961. Um destaque merecido. Ataulfo era a elegância em pessoa. Foi difícil chegar onde ele chegou, mas ele enfrentou e venceu. No começo da carreira ele tinha apenas um terno, que sua esposa, Dona Judite, lavava de noite para ele usar novamente no dia seguinte”.

A trajetória de Ataulfo ajudou muitos outros a superar muitas barreiras, segundo Cabral. “Mas no fundo ele era um ingênuo, que não tirava proveito das situações e que sempre preferia a conciliação. Ele tinha muito orgulho de ser um artista que prezava da amizade de políticos do primeiro escalão, gente poderosa como Getúlio Vargas e mais tarde Juscelino Kubitschek, entre muitos outros”. Pergunto sobre os motivos da demora do livro, que só foi publicado 40 anos depois da morte do compositor.







Não, não foi uma demora. Na verdade o Ataulfo não precisava de mim”, ironizou Cabral. “Ele foi bem-sucedido, desfilava de Cadillac, teve seu merecido destaque. E eu desde aquela época dei mais importância aos sambistas mais marginalizados, Ismael Silva, Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Keti. Hoje a coisa se inverteu e todos comemoram os sambas de Cartola e Nelson Cavaquinho. O que estas poucas homenagens no centenário do Ataulfo provaram é que ele está injustamente esquecido”, completou.

No livro, Cabral resgata histórias saborosas – entre elas a gênese de “Amélia”: o que se sabe é que Mário Lago (foto abaixo) ficou irritado porque Ataulfo mexeu muito na letra e na estrutura da canção e decidiu que não iria mais assinar a autorização para que ela fosse gravada. Depois da insistência, Lago pediu um adiantamento no pagamento do direito autoral e Ataulfo, para conseguir o dinheiro e a autorização, transferiu os direitos sobre “Amélia” para a gravadora Vitale. Resultado: sua música de maior sucesso foi a que lhe rendeu os menores direitos autorais.







E mais: às vésperas do carnaval de 1942, os três cantores convidados, Cyro Monteiro, Orlando Silva e Moreira da Silva, se recusaram a gravar. Moreira da Silva chegou a declarar que “Amélia” não era um samba, que parecia mais com uma marcha fúnebre. Ataulfo enfrentou o desafio e gravou ele mesmo a canção – que emplacou como o grande sucesso daquele carnaval e permanece até hoje em destaque no cancioneiro da MPB. Tanto que o nome Amélia foi registrado no dicionário “Aurélio” como sinônimo de "mulher que aceita toda sorte de privações e vexames sem reclamar, por amor a seu homem".



Batucada de bamba




Ataulfo morreu em 1969, mas as novas versões para seus antigos sucessos retornam sempre na voz dos mais variados intérpretes, de Beth Carvalho e Martinho da Vila a Maria Bethânia, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor, passando por Novos Baianos e Cássia Eller – sem contar Itamar Assumpção e a banda Isca de Polícia, que fizeram em 1995 um dos mais inspirados tributos a Ataulfo: o CD e a série de shows intitulados “Pra Sempre Agora”. Lançado pela Paradoxx, o CD recriou 20 canções de Ataulfo e conquistou o prêmio de melhor do ano pela APCA.

 
 






Foi ouvindo “Ai, que saudade da Amélia” e outras releituras do repertório do mestre da velha guarda, no carnaval de 2009, que o produtor musical Thiago Marques Luiz tomou a decisão de abraçar um projeto que acabaria por consumir meses de trabalho exaustivo: produzir um disco que reunisse, em gravações inéditas, artistas de diferentes gerações e estilos para novas versões em homenagem a Ataulfo Alves.

O projeto idealizado por Thiago buscava, principalmente, novas abordagens para os sucessos do compositor – clássicos tantas vezes regravados como “Na cadência do samba”, “Pois é”, “Meus tempos de criança”, “Laranja madura”, “Mulata assanhada” e “Você passa, eu acho graça”, entre muitos outros, que marcaram época, desde a década de 1930, na voz de reis e rainhas do rádio e nas releituras mais recentes.







Com ajuda do também produtor e pesquisador Marcelo Fróes, que cedeu a maior parte da extensa discografia de Ataulfo, incluindo uma coleção de antigos LPs, Thiago mergulhou na pesquisa sobre a trajetória das cerca de 320 composições do criador de “Ai, que saudades da Amélia”. Em seguida, iniciou uma investida por e-mail para pedir sugestões a jornalistas e críticos de música sobre o repertório e os artistas que pudessem gravar as novas versões.

"Deu muito trabalho, mas acredito que estas novas gravações conseguem dimensionar um panorama representativo do Ataulfo, tão importante e sempre esquecido quando se fala dos maiores da música popular no Brasil", aponta Thiago. O resultado do empenho do produtor e dos demais técnicos e artistas envolvidos no projeto chegou às lojas no apagar das luzes do ano do centenário: "Ataulfo Alves – 100 Anos", lançado pela Lua Music em box com dois CDs.








O projeto coordenado por Thiago reúne gravações inéditas e inspiradas de nomes tradicionais – Elza Soares, Alaíde Costa, Germano Mathias, Ângela Ro Ro, Zezé Motta, Maria Alcina, Luiz Melodia, Luiz Ayrão... – e expoentes da nova geração da MPB, incluindo as participações especiais de dois filhos do compositor, Ataulpho Alves Jr. e Adeílton Alves. Todos tiveram total liberdade para recriar as canções, garante o produtor, lembrando que interferiu o mínimo possível para preservar a interpretação de cada um.
 


Uma música atemporal



"Alguns convidados trouxeram sua própria banda", destaca Thiago, sem poupar elogios aos 140 músicos e artistas envolvidos na produção das 34 canções selecionadas. Desde o lançamento dos CDs, o produtor conseguiu reunir a maior parte dos artistas em alguns shows que aconteceram em São Paulo. "O público conhece de cor todas as músicas, mas sabe pouco sobre Ataulfo. A música dele é atemporal e ouso dizer que fica bem em qualquer versão", reconhece o produtor.








"Daqui a 100 anos não estaremos vivos, mas aposto que haverá novas e novas redescobertas e releituras destas canções tão especiais que emocionam todo mundo". Thiago concorda que as comemorações do centenário do compositor ficaram muito aquém do merecido. "Aconteceram os shows, lançamos os CDs, o Sérgio Cabral publicou a biografia. Mas é pouco para a importância do Ataulfo e para o valor que ele representa na música e na cultura do Brasil".

O produtor também lamenta não ter conseguido concretizar o sonho de levar a Miraí o show com os artistas reunidos nos CDs do projeto "100 Anos". Mas ele diz que ainda não descartou a possibilidade. "Levar os artistas do projeto para tocar na cidade de Miraí foi um sonho acalentado desde o começo. Seria o lugar perfeito para a homenagem, mas não conseguimos confirmar nada por enquanto. Está marcado para o futuro".







Entre as gravações reunidas em "Ataulfo 100 Anos", Thiago diz que não tem uma preferida. "Todas as canções do Ataulfo são muito interessantes, todas têm uma personalidade difícil de comparar. Todas mesmo. Talvez por ser filho de um sanfoneiro lá do interior de Minas, ele trouxe para o samba aquele tom de toada sertaneja, melancólico, indolente”, avalia. Ele também faz questão de destacar que o compositor de "Amélia" é fundamental para a música no Brasil.

Ataulfo tem o mesmo naipe de Noel, Cartola, Ary Barroso ou Tom Jobim. Ele é sensacional. Nos shows, o que mais me impressiona é que as plateias cantam todas as canções, do primeiro ao último verso. As canções do Ataulfo têm uma força que ultrapassa o tempo e comove todo mundo. O público conhece de cor todas as músicas, mas sabe pouco sobre o cantor e compositor Ataulfo", reconhece Thiago, lamentando que, na conclusão de seu projeto, uma canção tenha sido esquecida e ficado de fora dos dois CDs: "O bonde de São Januário".








Parceria do compositor com Wilson Batista, "O bonde de São Januário" foi um dos primeiros sucessos e um dos poucos problemas que Ataulfo teve com a censura feroz da Era Vargas. Afinal, ele se dizia getulista e chegou a compor sambas em homenagem ao presidente. Na canção em questão, a censura obrigou Ataulfo a mudar a letra: de "o bonde de São Januário/ leva mais um otário..." para "leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar". A versão alterada seria o grande sucesso do carnaval em 1941.
 


Menino em Miraí



Um dos sete filhos do Capitão Severino, sanfoneiro, violeiro e repentista da zona rural de Miraí, desde os 8 anos de idade Ataulfo já improvisava versos e melodias. Aos 10 anos, perdeu o pai e teve que trocar a música pelo trabalho pesado. Foi leiteiro, condutor de bois e lavrador de café e milho. Até que a mãe e os irmãos foram morar em Miraí, onde Ataulfo trocou o trabalho na roça por outros ofícios: foi carregador de malas e engraxate na estação de trens e depois aprendiz de marceneiro.









Carmen Miranda, a primeira rainha do rádio,
em fotografia autografada de 1930 e em 1933
com dois dos futuros parceiros de Ataulfo: os
compositores Brenno Ferreira e Josué de Barros.

Abaixo, uma seleção de bambas em foto de 1943:
Cascata, Donga, Ataulfo, Pixinguinha, João da Baiana,
Ismael Silva e Alfredinho do Flautim; de pé, a
primeira formação das pastoras de Ataulfo









Aos 17 anos, deixou Miraí para tentar a sorte no Rio de Janeiro, acompanhando o médico Afrânio Moreira Resende. No Rio, não demorou a conseguir emprego numa farmácia e conheceu Carmen Miranda, que estava estreando como cantora no rádio e o apresentaria às rodas de samba nos morros cariocas. Em 1933, Carmen gravaria a primeira canção de Ataulfo, "Tempo perdido". Foi também com apoio de Carmen que ele conseguiu emplacar seus primeiros sucessos populares, que vieram em 1936 com "Saudade dela", lançada por Sílvio Caldas, e "Quanta tristeza", gravada por Carlos Galhardo.

Desde aquela época, Ataulfo compôs em parcerias com Bide, Marçal, Josué de Barros, Roberto Martins, Assis Valente e Claudionor Cruz, entre outros. Dois de seus maiores sucessos foram parcerias com Mário Lago: "Ai, que saudade da Amélia" e "Atire a primeira pedra". Na estreia como intérprete, com “Leva Meu Samba”, em 1941, passaria a apresentar-se como Ataulfo Alves e suas Pastoras, trocando o Ataulpho da grafia que recebeu por batismo pela forma mais simplicada: Ataulfo.


















No alto, Ataulfo Alves fotografado em 1957 com
o presidente Juscelino Kubitschek e o mestre do
jazz Louis Armstrong. Acima, uma das suas
últimas apresentações em programas de TV, no
final dos anos 1960, ao lado de Roberto Carlos,
com Caçulinha ao fundo; e Ataulfo com
a estreante Clara Nunes.

Abaixo, Ataulfo em 1961, na época em que
foi eleito pela coluna social de Ibrahim Sued,
do jornal O Globo, com o título de
"o homem mais elegante do Brasil".
Também abaixo, Ataulfo em foto de
David Drew Zingg para reportagem
da revista Realidade em 1965 em
um bar no centro do Rio de Janeiro










Compositor de "Pois é", "Mulata assanhada", "Laranja madura", "Meus tempos de criança", "Na cadência do samba" (Quero morrer numa batucada de bamba / Na cadência bonita do samba...), "Saudades da Amélia" e tantos clássicos do cancioneiro do Brasil que permanecem no imaginário coletivo, falando do preconceito de cor, fazendo o elogio da mulher amada e submissa e do sofrimento pelo engano amoroso, Ataulfo Alves começou a perder espaço com o surgimento da Bossa Nova. Para os jovens compositores e intérpretes do movimento, Ataulfo e suas canções eram por demais identificados com a velha guarda. Avesso às polêmicas, Ataulfo foi aos poucos saindo de cena.

No final da década de 1960, ainda teria destaque em 1967, quando “Amélia” ganhou a versão de Roberto Carlos, ídolo da Jovem Guarda, e em 1968, quando o samba “Você passa, eu acho graça”, parceria de Ataulfo e Carlos Imperial, lançou ao sucesso uma jovem cantora estreante de Minas Gerais chamada Clara Nunes. Nas duas ocasiões, o sambista veterano recebeu homenagens nos programas de TV e seria festejado por Chacrinha, o Velho Guerreiro. Foi uma despedida. Em 20 de abril de 1969, depois da cirurgia motivada pelo agravamento de uma úlcera, Ataulfo morreu. Faltavam poucos dias para que ele completasse 60 anos.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Saudades da Amélia. In: Blog Semióticas, 7 de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/saudades-da-amelia.html (acessado em .../.../...).





















9 de outubro de 2011

Vida de Artista







O mal é feito sem esforço, naturalmente, é um
trabalho do destino. O bem é produto da Arte.
---- — Charles Baudelaire (1821-1867).   



  A arte de pintar mensagens e imagens em muros e paredes é um gesto político que remonta às culturas da Antiguidade. No século 20, a atitude política de pintar mensagens nas paredes das cidades ganhou fôlego como prática da contracultura e com os protestos da década de 1960, identificados no Brasil com movimentos de resistência à censura e à violência da ditadura militar. Nas últimas décadas, contudo, o gesto de grafitar nas cidades deixou de ser algo improvisado às escondidas, registrado de forma clandestina em muros e fachadas, para ganhar cada vez mais prestígio não só nas ruas, também em grandes galerias e museus. Às vezes confundida pelos leigos com vandalismo, a arte do grafite não tem nenhuma relação com poluição, sujeira e agressão. Muito pelo contrário.

O valor da grafitagem e dos murais no espaço urbano teve um grande defensor e incentivador no artista plástico Rui Santana, morto em 2008, aos 48 anos, vítima de câncer. Ele dedicou anos de esforço à arte do grafite e costumava dizer que o grafite não vai mudar o mundo.
Não vai mudar o mundo, mas pode mudar as pessoas, a atitude que elas têm diante da vida e do mundo ao redor”, dizia, com as palavras que foram repetidas muitas vezes em conversas com amigos, nas aulas e em várias entrevistas. Artista plástico, fotógrafo, designer, professor e agitador cultural, Rui Santana deixou sua marca de inconformismo e de educação pela arte em todos aqueles que conviveram com ele – em Juiz de Fora, sua terra natal, mas também em Belo Horizonte, cidade que ele escolheu para viver e trabalhar, e em outras tantas cidades do Brasil e do mundo que ele visitou a trabalho ou pelo simples prazer da descoberta.











Vida de artista: acima e abaixo,
Rui Santana fotografado no ateliê
em Belo Horizonte por Tibério França,
em 2008. Na imagem do alto, um mural
de Walter Nomura, também conhecido
pelo apelido Tinhouma das obras
produzidas na Serraria Souza Pinto
durante a Bienal Internacional do
Grafite realizada em Belo Horizonte
em setembro de 2008










A empolgação de Rui no trato da arte impressionava – como destacam alguns dos depoimentos dos que conheceram seu trabalho intenso e inquieto em pintura, fotografia, desenho, colagens e grafite. "As pessoas costumam cobrar uma fidelidade a essa ou aquela escola, um respeito a determinada técnica. E o que eu quero é buscar uma linguagem própria, criando a minha visão de mundo. Procuro uma comunicação com o mundo e comigo mesmo", declarou o próprio Rui Santana em uma entrevista reproduzida no livro-tributo que foi lançado em sua homenagem, com sua fé inabalável nas qualidades da intuição.



O livro-tributo



Uma amostra das ideias, textos e obras realizadas pelo artista está agora reunida em uma publicação de qualidade – transcritos no livro-tributo “Rui Santana”, 47° volume da coleção Circuito Atelier, produzida pela Editora C/Arte e coordenada por Fernando Pedro e Marília Andrés. A edição e o lançamento do livro em homenagem a Rui Santana contou com apoio da família e dos amigos do artista.


 


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Organizado pelo jornalista Mateus Santana, filho de Rui, em parceria com o poeta Luiz Edmundo Alves, a edição traz em 96 páginas uma seleção de depoimentos, entrevistas, breves comentários sobre a trajetória do artista, reproduções coloridas de uma seleção de suas obras mais importantes e fotografias inéditas. "Rui foi um artista plural e antenado com seu tempo. Por sorte, também acompanhou o planejamento do livro", aponta Mateus Santana.

O lançamento do livro, numa manhã de sábado, na Alameda dos Jacarandás, Condomínio Canto das Águas, em Rio Acima, onde o artista mantinha seu ateliê – contou com uma programação para emocionar: música ao vivo, muitos artistas convidados e exibição de um vídeo sobre Rui, produzido com imagens de arquivo, sob a coordenação da jornalista e apresentadora da Rede Minas de Televisão, Mariana Tavares. 


 







Para homenagear a arte de Rui Santana, o diretor do vídeo, Paulo Henrique Rocha, reuniu às imagens de arquivo uma série de entrevistas com os amigos e familiares para traçar um breve perfil do artista e educador, alegre e descontraído. Também houve uma grande mostra dos trabalhos de Rui no próprio atelier, a maior reunião já organizada de suas obras, e a inauguração de exposição virtual no site da Editora C/Arte (clique aqui para acessar). 



Grafite e responsabilidade social
 


"Fui educado pela Imaginação/ Viajei pela mão dela sempre/ Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso/ E todos os dias têm essa janela por diante/ E todas as horas parecem minhas dessa maneira" – aponta a epígrafe de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, o poeta de referência para o artista, que abre o livro-tributo sobre Rui Santana.







Tributo a Rui Santana como artista
e arte-educador nas ruas de BH: grafite
assinado por Gnomo Sabão. Abaixo,
imagem que registra um dos debates
durante a primeira e única BIG, Bienal 
Internacional do Grafite de Belo Horizonte,
com presença da artista plástica e arte-educadora
Júlia Pontesde Rui Santana, do rapper de
Belo Horizonte e ativista social Renegado
e do professor da UFMG Juarez Dayrell,
que apresentaram ao público o tema
Grafite como identidade nos séculos 20 e 21.
Também abaixo, Guga Baygon, um dos artistas
convidados para participar da BIG BH









"Sempre atento, Rui observou a arte com o olhar de um pássaro, conhecendo um universo amplo que o levou a reconhecer e a incluir o outro, como nos projetos coordenados com os grafiteiros, que tiveram a oportunidade de ter recuperado sua autoestima através do trabalho artístico. Essa preocupação social sempre esteve presente nas ações de Rui Santana”, destaca Fernando Pedro.

O mentor da editora C/Arte lembra que o artista Rui Santana fez valer sua responsabilidade social promovendo e orientando o trabalho dos grafiteiros e organizando eventos importantes como a BIG-BH, Bienal Internacional do Grafite em Belo Horizonte. A bienal, primeira e única, aconteceu entre os dias 30 de Agosto e 7 de Setembro de 2008, na Serraria Souza Pinto.

 




       
Coordenada por Rui Santana, a bienal foi o primeiro evento do gênero no mundo, e trouxe a BH uma extensa e bem-sucedida programação que incluiu seminários, oficinas de formação, exposições, lançamento de livros e revistas e intervenções urbanas em espaços públicos da cidade. Com atrações vindas dos quatro cantos do mundo, que incluíam países como Inglaterra, Holanda, Japão, Alemanha, Chile, Porto Rico e Estados Unidos, a Bienal Internacional do Grafite mostrou o que vem sendo produzido nos cenários nacional e mundial da arte das ruas, dos muros e das fachadas de prédios e casas. 



A cena do grafite
 


Nossa ideia é transformar este espaço da bienal em uma grande galeria, com desenhos, pinturas, estêncils e stickers”, declarou Rui Santana na abertura da BIG-BH, ressaltando também o papel histórico de Belo Horizonte como uma cidade que sempre foi uma grande geradora de talentos. "Nas artes plásticas temos uma grande tradição que vem de longa data, e a cena do grafite – que é recente, mas que tem se mostrado fortíssima na capital – cresce em ética e estética com diversos projetos, grande parte deles beneficiado comunidades da periferia”, explicou.














                     



Vida de artista: no alto, dois grafites
do alemão Klaus Klinger em fachadas de
prédios em Düsseldorf, Alemanha. Também
acima, grafites dos irmãos Otávio e Gustavo
Pandolfo (foto abaixo), conhecidos como
OsGêmeos, com participação de Nunca e
Nina Pandolfo (esposa de Otávio), pintados
no Castelo de Kelburnna Escócia, em
projeto concluído em junho de 2007.
Também abaixo, grafite do artista peruano
Henry Chram fotografado por Rui Santana
na província de Huaraz, no Peru




                     


     

Com sua vida de artista, Rui Santana foi idealizador e coordenador de vários projetos de sucesso, tanto por sua iniciativa pessoal ou comunitária como pelo patrocínio de ações do poder público ou de empresas. Além da produção e coordenação geral da Bienal Internacional de Grafite, ele foi o mentor de projetos que fizeram história, entre eles o “Muros do Jardim Teresópolis”, em Betim, vinculado o programa “Árvore da Vida”, da Fiat; e diversas ações relacionadas à arte-educação, como o “Arena da Cultura”, da Fundação Municipal de Cultura, de Belo Horizonte, que buscava a democratização dos acessos à produção e apreciação artísticas.

Faço questão de manter uma produção artística, porque sou um apaixonado pela pintura e também porque, como educador, tenho que estar sempre dinamizando a arte”, diz Rui Santana em um dos textos selecionados para a publicação da C/Arte. Para seu filho, Mateus Santana, a obra de Rui aponta para o futuro e para a importância da democratização do acesso à arte e à cultura. Segundo Mateus, há ainda um acervo de trabalhos inéditos de Rui Santana que serão apresentados ao público em eventos futuros.

 




Vida de artista: acima, Rui Santana
homenageado no grafite de Gabriel Dias.
Abaixo, amostras da arte de Rui Santana
em pinturas que combinam técnicas em
tinta acrílica, óleo sobre tela e aquarelas





















"Vamos planejar exposições para apresentar as últimas obras inéditas de Rui, incluindo seus três últimos quadros em grandes formatos", explica Mateus. Ele também destaca a disposição que Rui Santana sempre teve para os novos projetos e para os enfrentamentos cotidianos da vida de artista. "Rui participava de tudo e acompanhava tudo. O livro é uma homenagem merecida por tudo aquilo que ele fez", completa. 



Um epitáfio do artista

 

Para concluir este breve artigo, lembro da canção "Vida de Artista", de Itamar Assumpção, canção e artista preferidos de Rui Santana. Também lembro que "existir é ser possível haver ser" – poderia ser o epitáfio do artista, parodiando Fernando Pessoa e seus heterônimos. Ou, como registrou no poema "Passagem das horas" Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa, outro dos seus preferidos:


Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles, Se empequena!
Não, não se empequena... se transforma em outra coisa —
Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino
— Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas
(...)

Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Vida de artista. In: Blog Semióticas, 9 de outubro de 2011. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2011/10/vida-de-artista.html (acessado em .../.../...).
















 Itamar Assumpção (1949-2003), cantor, compositor,

maior expoente da chamada Vanguarda Paulistana.

Na foto acima, Itamar no palco, em 1983, com sua

banda Isca de Polícia, que teve na formação original

Virginia Rosa e Suzana Salles (vocais), Paulo Lepetit

(baixo), Gigante Brasil (bateria) e Luiz Rondó (guitarra).

Abaixo, uma canção de Itamar, "Vida de Artista" 









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