Mostrando postagens com marcador guimarães rosa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador guimarães rosa. Mostrar todas as postagens

11 de outubro de 2020

Guimarães Rosa encontra Aracy

 




O sertão é do tamanho do mundo.   

 – João Guimarães Rosa (1908-1967).   

.........................................................

A história de amor de João Guimarães Rosa e Aracy Moebius de Carvalho até parece uma história imaginada pela ficção – tanto que foi adaptada como roteiro para uma série de TV baseada nos fatos reais. Aracy e o escritor se conheceram às vésperas da Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, quando começaram a trabalhar juntos no consulado brasileiro em Hamburgo, e viveram juntos até a morte do escritor em 1967. Depois daquele encontro, Guimarães Rosa, com apoio de Aracy, publicaria livros de ficção que se tornariam um cânone da literatura brasileira. Ela, por sua vez, teria notável importância como funcionária do setor de vistos do consulado brasileiro, salvando muitas vidas ao ajudar judeus que fugiam da perseguição nazista a imigrarem para o Brasil e para outros países, driblando o regime nazista e as regras do governo de Getúlio Vargas que proibia a concessão a “semitas e outros indesejáveis”.

Conhecida no Brasil e no exterior com reverência pela designação “Anjo de Hamburgo”, depois do fim da guerra Aracy seria homenageada pelo Museu do Holocausto de Washington, nos EUA, e também receberia a honraria de ter seu nome destacado no Jardim dos Justos entre as Nações no Yad Vashem, o Memorial do Holocausto no Estado de Israel – um título reservado a um pequeno número de não judeus que se arriscaram para salvar judeus da perseguição nazista e que inclui apenas mais um brasileiro, o diplomata Luiz Martins de Souza Dantas, que atuava na França durante a Segunda Guerra. Filha de pai português e mãe alemã, Aracy viveu em São Paulo desde a infância, mas nasceu em Rio Negro, pequena cidade do Paraná onde sua família estava de passagem, em 1908, mesmo ano em que nasceu Guimarães Rosa em Minas Gerais.







Guimarães Rosa encontra Aracy: no alto e acima,
o casal em viagem à Itália, em 1950. Abaixo,
Aracy (à direita) e Guimarães Rosa (à esquerda)
com diplomatas na sede do consulado do Brasil
em Hamburgo, Alemanha. Também abaixo,
fotografias de Aracy no consulado de Hamburgo
e a capa da biografia de Aracy, publicada em 2011
e escrita por Mônica Raisa Schpun, e a capa e
contracapa de Ave, Palavra, livro com uma
miscelânea de textos que Guimarães Rosa
escreveu na época em que foi cônsul-adjunto
em Hamburgo, na Alemanha, durante a
Segunda Guerra Mundial





















Em 1930, aos 22 anos, Aracy Moebius de Carvalho se casou com o alemão Johann Eduard Ludwig Tess e teve um filho, Eduardo Carvalho Tess. O casamento enfrentou dificuldades e teve curta duração, chegando ao fim em menos de cinco anos. Em seguida, Aracy partiu para viver na Alemanha com o filho, a mãe e uma irmã, com a intenção de evitar o assédio e o preconceito que as mulheres separadas do marido sofriam no Brasil. Por sua fluência em português, inglês, francês e alemão, em pouco tempo ela conseguiu uma nomeação para trabalhar no consulado brasileiro em Hamburgo, onde atuava na chefia da seção de passaportes.



Temporada na Alemanha



Aracy também não foi a primeira esposa de Guimarães Rosa. Nascido em 1908 na pequena cidade mineira de Cordisburgo, ainda na infância Rosa foi morar com os avós em Belo Horizonte para continuar os estudos e mais tarde formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais. Em 1930, seis meses antes da formatura, casou-se no dia em que completou 22 anos com uma vizinha que conhecia desde os tempos de infância, Lygia Cabral Penna, na época com apenas 16 anos. Depois de formado, Rosa perambulou a trabalho, como médico, com a esposa pelo interior de Minas Gerais. O casal teve duas filhas, das quais o próprio Rosa fez o parto: Vilma, que nasceu em 1931 em Itaguara; e Agnes, que nasceu em 1933 em Barbacena.



          






Guimarães Rosa encontra Aracy: acima,
o escritor fotografado por Eugênio Silva
para a revista O Cruzeiro durante a
viagem pelo sertão de Minas Gerais,
em maio de 1952, acompanhando um
grupo de vaqueiros que guiava cerca
de 300 bois e vacas por um percurso de 10
fazendas em 240 quilômetros, seguindo de
Três Marias a Araçaí (veja outras fotografias
das viagens de Guimarães Rosa pelo sertão em
Semióticas - Das Minas Gerais).


As anotações de Rosa durante a travessia pelo
sertão com os vaqueiros seriam fundamentais
para a literatura que ele produziu nos anos
seguintes, incluindo Grande Sertão: Veredas
e Corpo de Baile, livros publicados em 1956,
e Tutaméia, publicado em 1967. Abaixo,
capa e contracapa do livro biográfico
Relembramentos, que a filha do escritor,
Vilma Guimarães Rosa, publicou
em 1986. Na capa, uma fotografia da autora
no colo de seu pai; na contracapa, Rosa e
a primeira esposa, Lygia, mãe de suas filhas
Vilma e Agnes, fotografados em 1930
durante a viagem de lua de mel







Em 1934, desiludido com a profissão, Guimarães Rosa seguiria com a família para o Rio de Janeiro, onde prestou concurso para o Itamaraty. Aprovado em segundo lugar, foi designado para sua primeira função no exterior no cargo de cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo, na Alemanha, mas viajou para a Europa sem a mulher e as filhas. Em 1938, em Hamburgo, o jovem diplomata conheceria e iria se apaixonar por Aracy, que seria sua segunda esposa. Rosa e Aracy permaneceram na Alemanha até 1942, quando o governo Vargas rompeu relações com Hitler e passou a apoiar as Forças Aliadas sob a liderança de Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética na guerra contra as Potências do Eixo representadas por Alemanha, Itália e Japão. O desfecho da temporada na Alemanha, durante a Segunda Guerra, foi dramático: o casal ficou por cem dias sob custódia do governo alemão, até ser libertado em troca de diplomatas da Alemanha que estavam presos no Brasil sob acusação de espionagem. 



Anjo de Hamburgo



Guimarães Rosa e Aracy se casaram oficialmente por procuração em 1947 na embaixada do México no Rio de Janeiro, porque não havia ainda o divórcio no Brasil. Depois, Rosa também prestaria serviço diplomático na Colômbia e na França, nas embaixadas brasileiras em Bogotá e em Paris. De volta ao Brasil, Rosa, incentivado por Aracy, se lançou em uma aventura pelo sertão de Minas Gerais que marcaria definitivamente sua vida e os livros que publicou. A viagem iria repetir uma excursão que o escritor fez a Minas Gerais em dezembro de 1945 e que resultou em anotações e observações fundamentais para a edição final de seu primeiro livro, “Sagarana”, publicado em 1946, reunindo nove contos com temas inspirados na vida rural e na cultura sertaneja.





Guimarães Rosa encontra Aracy:
 acima,
o escritor fotografado por Eugênio Silva
em 1952 durante a 
viagem pelo sertão de
Minas Gerais
. Abaixo, duas imagens
da série fotográfica que Maureen Bisilliat
realizou na região de Corinto, Minas Gerais,
em 1966, inspirada em na literatura de Rosa e
especialmente em "Grande Sertão: Veredas"












.


A segunda excursão de Guimarães Rosa pelo Sertão de Minas Gerais durou de 10 a 28 de maio de 1952 e teve início com a partida do Rio de Janeiro para a fazenda da Sirga, propriedade de seu primo Francisco Moreira, próxima a Andrequicé, um lugarejo na região onde, anos depois, seria construída a usina hidrelétrica do Alto São Francisco, mais conhecida como represa de Três Marias. Três dias depois de chegar à fazenda da Sirga, Rosa seguiu viagem acompanhando um grupo de 18 vaqueiros. Nos dias seguintes, o grupo seria reduzido para oito vaqueiros, levando cerca de 300 cabeças de gado para atravessar um percurso de 240 quilômetros, passando por 10 fazendas e por diversos lugarejos até chegar a Araçaí, na região central de Minas Gerais, que era sua terra natal.

Próximo a Cordisburgo, cidade em que Rosa nasceu e etapa final da viagem, a comitiva encontra uma equipe de “O Cruzeiro”, com o fotógrafo Eugênio Silva e o repórter Álvares da Silva, que registram a aventura em uma fotorreportagem publicada pela revista. Durante a travessia com os vaqueiros, o escritor também se dedica a fazer diversas anotações em cadernetas que, a exemplo do que aconteceu com a versão final de “Sagarana”, seriam depois recriadas como referências fundamentais para os livros que publicou, entre eles “Corpo de Baile" (1956), “Primeiras Estórias” (1962), “Tutameia” (1967) e “Grande Sertão: Veredas” (1956). As cadernetas que registram a travessia com os vaqueiros foram transcritas pelo escritor em diários de viagem que ele intitulou Boiada”. Cadernetas e diários estão guardados em pastas no Arquivo Guimarães Rosa, atualmente no acervo gerenciado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).

De volta ao Rio de Janeiro e vivendo com Aracy, Rosa publicou seus livros e foi eleito em 1963 para a Academia Brasileira de Letras, mas adiou a cerimônia de posse por quatro anos por causa de um pressentimento que nunca foi esclarecido. Tomou posse somente em 1967 e morreu de ataque cardíaco três dias depois, em 19 de novembro, aos 59 anos, no ápice da carreira na literatura e no serviço diplomático. Aracy, a quem o escritor dedicou sua obra-prima “Grande Sertão: Veredas”, e que durante 30 anos foi leitora atenta, primeira revisora e incentivadora de suas criações literárias, não se casou novamente e morreria aos 102 anos, em 28 de fevereiro de 2011. Após a morte de Rosa, ela também teve papel importante no apoio a artistas e intelectuais perseguidos pela ditadura militar que tomou o poder no Brasil em 1964.





.





Guimarães Rosa encontra Aracy: acima,
Aracy em fotografia de 1939 e o casal na
década de 1950. Abaixo, fac-símile de uma
reportagem de abril de 2008 publicada no
caderno "Ideias", do Jornal do Brasil, que
anunciava o centenário de Aracy e
reproduzia uma fotografia do álbum de
família com Rosa e Aracy em Berlim
em 1939. Também abaixo, uma fotografia de
divulgação da série O Anjo de Hamburgo
que terá Sophie Charlotte no papel de Aracy
e Rodrigo Lombardi como Guimarães Rosa











 

A história de Aracy está registrada no livro “Justa. Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: Trocando a Alemanha nazista pelo Brasil”, biografia escrita pela historiadora brasileira Mônica Raisa Schpun, professora do Centro de Estudos sobre o Brasil na École des Hautes Études em Sciences Sociales, na França, e publicada pela editora Civilização Brasileira em agosto de 2011. A biografia teve os direitos adquiridos pela Rede Globo logo após a publicação e foi o argumento principal para o roteiro de “O Anjo de Hamburgo”, primeira série em inglês produzida pela Globo, em parceria com a Sony Pictures Television, ainda sem data anunciada para exibição, já que a produção foi suspensa devido à pandemia do novo coronavírus. Na série, com direção de Jayme Monjardim, Aracy será interpretada pela atriz Sophie Charlotte, com Rodrigo Lombardi no papel de Guimarães Rosa.

A temporada de Guimarães Rosa e Aracy no consulado brasileiro em Hamburgo e na atuação para salvamento de judeus ameaçados pelo regime nazista também está registrada em dois documentários: “Esse viver ninguém me tira”, filme de 2014 com roteiro de Alessandra Paiva e direção de Caco Ciocler, e “Outro Sertão”, filme de 2013 de Soraia Vilela e Adriana Jacobsen que venceu o prêmio especial do júri no 46° Festival de Brasília. As diretoras de “Outro Sertão” investigaram, durante uma década, os rastros e vestígios da história em arquivos na Alemanha, Brasil, Israel e Portugal, revelando documentos e testemunhos de sobreviventes do Holocausto, além da descoberta de uma entrevista até então inédita que Rosa concedeu à TV da Alemanha.










Guimarães Rosa encontra Aracy:
acima, o casal e sua família de gatos
no apartamento em que moravam, no
Rio de Janeiro, e Rosa em seu escritório
de trabalho, em fotografias de 1957.

Abaixo, os trailers dos documentários
Outro Sertão, de 2013, e Esse viver
ninguém me tira
, de 2014, e também:

1) Guimarães Rosa em colagem com as
capas das primeiras edições de seus livros;
2) Aracy em fotografia de 1939, na
época em que trabalhava em Hamburgo;
3) Rosa em frente ao Palácio do
Itamaraty no Rio de Janeiro, em 1964,
fotografado por David Drew Zingg; e
4) o ex-presidente Juscelino Kubitschek
com Rosa na cerimônia de posse do
escritor na Academia Brasileira de Letras,
em 16 de novembro de 1967; 5) cartas e
anotações
de Rosa no acervo do escritor,
no IEB/USP. Guimarães Rosa morreria três
dias depois da posse na ABL, aos 59 anos.
No final da página, Rosa e Aracy em
Hamburgo, em fotografia do final da
década de 1930, da época em
que se conheceram










A entrevista, concedida por Guimarães Rosa ao crítico literário Walter Höllerer, estava perdida nos arquivos da emissora alemã de TV e tem as únicas imagens conhecidas com um depoimento do escritor em movimento. Gravada em 1962, a entrevista nunca havia sido exibida porque o programa-piloto, planejado para apresentar escritores de vários países, não foi aprovado pela direção da TV e as gravações terminaram sendo enviadas para o acervo do Arquivo Radiofônico Central da Alemanha. A temporada em Hamburgo durante a Segunda Guerra também é o tema central dos fragmentos reunidos em “Ave, Palavra”, livro póstumo de Guimarães Rosa publicado em 1970 pela Nova Fronteira, com edição de Paulo Rónai que apresenta uma miscelânea de contos, memórias, trechos dos diários de Rosa, poemas e reflexões poéticas e filosóficas.



Vetado pelos herdeiros



Nas últimas décadas, chama a atenção o fato de terem sido completamente opostas as atitudes dos herdeiros de Rosa e de Aracy. Enquanto a biógrafa Mônica Schpun e os diretores dos documentários citados conseguiram autorização e apoio dos herdeiros de Aracy, do filho e de quatro netos, sem restrições para divulgação e publicação de informações pessoais e livre acesso a uma extensa documentação dos arquivos que foram doados ao acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, o posicionamento dos herdeiros do escritor é de veto irredutível. Suas duas filhas e herdeiras não autorizam a publicação de biografias, apresentam dificuldades e impedimentos para a publicação de sua correspondência ativa e passiva com outros escritores e com tradutores, e proibiram todas as iniciativas para a publicação de seus célebres diários – entre eles os cadernos que registram a longa temporada em Hamburgo, da época em que Rosa conheceu Aracy, mais os diários de Paris (escritos no final da década de 1940 e começo da década de 1950, quando Rosa atuou na embaixada brasileira) e suas anotações sobre viagens pela Europa e sobre as viagens pelos sertões de Minas Gerais.








Da extensa correspondência de Guimarães Rosa com seus amigos e familiares, apenas uma pequena seleção foi publicada no livro “Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai”, de autoria da primogênita do escritor, Vilma Guimarães Rosa, que também escreveu e publicou oito livros de contos. “Relembramentos” teve a primeira edição em 1983 e foi relançado pela editora Nova Fronteira no ano 2000, trazendo um relato biográfico que nada acrescentou ao já dito sobre Rosa e amostras de fotografias dos álbuns de família, de algumas cartas do autor para seus parentes, de seus discursos e de entrevistas e palestras de Vilma sobre a obra e a personalidade do pai.

Além do perfil biográfico publicado por Vilma, uma exceção foi a publicação em 1972 de “Joãozito: A infância de João Guimarães Rosa”, livro escrito por Vicente Guimarães que teve uma reedição revista e ampliada publicada em 2006 pela Panda Books. O autor, que morreu em 1981 e conviveu com Rosa na infância e juventude, revela histórias sobre os tempos de criança e sobre os moradores de Cordisburgo que se tornaram personagens dos livros, incluindo a reprodução da correspondência que os dois trocaram durante anos. Os componentes autobiográficos no livro de Vicente Guimarães foram atenuantes para contrapor qualquer impedimento pelos herdeiros de Rosa, mas outros autores não tiveram a mesma sorte.

Em 2008, Vilma entrou com um processo judicial contra a publicação da biografia “Sinfonia Minas Gerais: A vida e a literatura de João Guimarães Rosa”, escrita por Alaor Barbosa e lançada pela LGE Editora. Além de ser contra a publicação da biografia não autorizada, Vilma acusava o autor de ter plagiado sua obra “Relembramentos”. O livro de Alaor Barbosa, também biógrafo de Monteiro Lobato e de outros escritores, foi recolhido em 2008 por uma determinação judicial e finalmente liberado em 2014, em uma decisão inédita em casos semelhantes. O autor, contudo, preferiu que sua versão para a biografia de Rosa não retornasse às livrarias.









Há notícias de outras biografias, teses e pesquisas acadêmicas sobre Guimarães Rosa e sua obra que também tiveram a publicação vetada pelos herdeiros, veto que também dificultou a publicação de livros que foram organizados por pesquisadores ligados a universidades apresentando a íntegra dos célebres diários do escritor e a correspondência em cartas que ele trocou durante anos com outros escritores e com seus tradutores para francês, inglês, alemão, espanhol, italiano. Também na publicação de livros com as correspondências, há exceções, três delas editadas em 2003 e uma em 2017. A correspondência trocada de 1958 a 1967 com Curt Meyer-Clason, tradutor de Rosa para o alemão, foi publicada em edição conjunta da Academia Brasileira de Letras (ABL), Editora UFMG e editora Nova Fronteira; a correspondência com Edoardo Bizzarri, tradutor da obra para o italiano, saiu em edição conjunta da Editora UFMG e editora Nova Fronteira; e a cartas para William Angel de Mello, tradutor de Rosa para o espanhol, tiveram edição conjunta pela Ateliê Editorial e Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes.

Em 2017 também teve publicação na Espanha, pelas Ediciones Universidad de Salamanca, o livro “João Guimarães Rosa: Un exiliado del linguage común”, apresentando uma seleção de cartas inéditas do escritor que pertencem ao acervo da Academia Brasileira de Letras. A publicação foi organizada por Ascensión Rivas Hernández e, além das cartas, inclui ensaios de Marco Lucchesi, atual presidente da ABL, e de outros pesquisadores do Brasil e da Espanha. Ainda aguardam publicação os diários de Rosa, outros textos inéditos e a maior parte das cartas, entre elas a correspondência com a norte-americana Harriet de Onís, tradutora das primeiras edições de “Grande Sertão” e “Sagarana” em inglês. Como tudo indica que ainda deverá permanecer o veto autoritário dos herdeiros à publicação de biografias de Guimarães Rosa e de documentos de seu acervo literário e biográfico, seus leitores e pesquisadores só podem esperar pela passagem do tempo sem ter pressa. Atualmente, o período determinado pelas leis que protegem os direitos autorais e a propriedade intelectual no Brasil tem validade até o dia 1° de janeiro seguinte aos 70 anos da morte do autor.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Guimarães Rosa encontra Aracy. In: Blog Semióticas, 11 de outubro de 2020. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2020/10/guimaraes-rosa-encontra-aracy.html (acessado em .../.../...).








Para comprar o livro Relembramentosclique aqui.



















15 de janeiro de 2013

Das Minas Gerais






As nuvens do céu azul que se agigantam sobre o horizonte do casario barroco. Os grãos do asfalto que segue serpenteando até sumir no infinito das matas e no horizonte de montanhas distantes. O espaço aberto da imensidão dos vales avistados na Serra do Cipó. Os enigmas das pinturas rupestres e, nas páginas seguintes, uma jararaca escondida, quase invisível, nas ranhuras que se abrem sobre o granito. Prosaicas garrafas de cachaça, enfileiradas no balcão, cachos e cachos de bananas, borboletas e flores, bandeirinhas coloridas, buritis.

Há também detalhes da arte feita pela gente simples, os monumentos seculares de Aleijadinho, os traços cromáticos de Manuel da Costa Athaíde e, na sequência, uma fileira de mandacarus, um estranhamento momentâneo na perspectiva provocado por um espelho transversal, que reflete a bancada respingada de tinta dos artesãos em Prados, as pessoas e os lugares, a mata cercada pelo pasto, o vaqueiro, o prosaico cavalo branco que lembra os seres mitológicos, perdido na vereda, o gado, o curso do rio, o maciço suspenso das cachoeiras em Conceição do Mato Dentro. A fotógrafa Rosa de Luca reuniu em livro uma surpreendente seleção de pontos de vista em cenários e sutilezas extraídas das tradições e do imaginário das Gerais.

São belíssimos enquadramentos coloridos que traduzem o poético e as diferenças de um certo traçado no mapa do Brasil, que desde o Setecentos vem demarcado pelo Coroa Portuguesa como Terra das Minas Geraes de Ouro, Diamantes e Pedras Preciosas. “Arte Vida Minas Gerais” (editora Alles Trade) reúne cerca de 200 imagens produzidas no intervalo de oito meses, entre muitas viagens pelos cenários e lugarejos que Rosa de Luca registra. “Meu trajeto sempre começava por Belo Horizonte”, recorda a fotógrafa, em entrevista por telefone.

















Sertões d
e Minas Gerais: no alto e acima,
João Guimarães Rosa fotografado por
Eugênio Silva para a revista O Cruzeiro,
em reportagem de Álvares da Silva que
junto com o fotógrafo acompanhou a viagem
de dez dias do escritor pelo sertão, em maio
de 1952, seguindo de Três Marias a Araçaí, na
região central de Minas Gerais, com um grupo
de boiadeiros que levava 300 bois e vacas
em um percurso de 10 fazendas e cerca de
240 quilômetros. A travessia de Rosa seguindo o
grupo, que incluía o vaqueiro Manuelzão (na quinta
foto acima), um dos integrantes da comitiva, daria
origem a diversas anotações em cadernetas que,
anos depois, seriam fundamentais para algumas
obras-primas do escritor, entre elas Corpo de Baile,
livro publicado em 1956, Tutameia, de 1967, um
grande clássico da literatura em língua portuguesa:
o romance Grande Sertão: Veredas, de 1956.

Abaixo, outra imagem de valor histórico: um grupo
anônimo de tropeiros em Itabira do Mato Dentro,
terra natal de Carlos Drummond de Andrade, em
retrato feito no começo do século 20 por
Brás Martins da Costa, um dos pioneiros
da fotografia em Minas Gerais. Também
abaixo, fotografias do Santuário do Caraça,
no município de Catas Altasoutros cenários
típicos do interior de Minas extraídos do livro
de Rosa de Luca "Arte Vida Minas Gerais"




  





Começo a entrevista comentando sobre a beleza dos cenários de Minas nas fotos e pergunto se ela conhece a história lendária e as imagens da viagem que o escritor Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro, acompanhando uma tropa de vaqueiros, em 1952. Ela diz que conhece as fotos, do também mineiro Eugenio Silva, que foram publicadas na revista "O Cruzeiro" e que sempre estão presentes nas edições dos livros de Guimarães Rosa e nas reportagens sobre a obra do escritor, mas explica que seu roteiro não teve nenhuma intenção de seguir o trajeto de Rosa pelo sertão.

"Meu roteiro era sempre assim: eu chegava de avião, entrava no carro em Belo Horizonte e buscava o destino da Estrada Real, com algumas variações no trajeto", recorda Rosa de Luca. "As belas paisagens e as cenas mais espontâneas que pediam enquadramento pela câmera são só uma parte do encanto”, destaca, descrevendo com lembranças de sons, cheiros e sabores as iguarias da culinária, as cores da natureza, as pessoas e o artesanato que encontrou pelo caminho.



Moda, Milão, Bahia, Minas



“Arte Vida Minas Gerais” é o terceiro livro de Rosa de Luca, que nasceu na Itália e está radicada há décadas no Brasil, com dedicação ao registro das paisagens mais deslumbrantes e da diversidade do brasileiro nas cidades e nos confins dos sertões, das montanhas e dos litorais. Ela conta que teve formação em Artes pelo Liceu Artístico de Salerno, na Itália, fazendo questão de destacar que o início de carreira na fotografia teve como marco importante uma exposição que ela conseguiu realizar no Brasil em 1984: “São Paulo Cromática”, realizada no Centro Cultural São Paulo.









No alto, cena rural no Sul de Minas.
Acima, vista do adro da Igreja Matriz
de Santo Antônio em Tiradentes.
Abaixo, uma seleção de portas e janelas
do casario nos cenários do barroco







 .
Depois desta primeira experiência em terras brasileiras, Rosa de Luca retornaria à Itália para trabalhar em Milão e só voltaria ao Brasil em 1990, desta vez para se dedicar à fotografia de moda. Foram diversos trabalhos, alguns deles premiados e selecionados em exposições individuais e coletivas, no Brasil, na Itália e em outros países. Até que surgiu como projeto a determinação de publicar o primeiro livro.

Foi em 2007. Elaborei um longo trabalho de pesquisa que concluí com uma sequência de 60 retratos de nomes das artes plásticas de importância na atualidade”, recorda. Adriana Varejão, Cildo Meireles, Arthur Omar e outros foram flagrados em circunstâncias de trabalho e, no livro – intitulado “Contemporâneas Artes Artistas” (Alles Trade) – todos aparecem com um pequeno perfil biográfico produzido pela historiadora do Museu de Arte Moderna (MAM), Margarida Sant'Anna.

“A ideia inicial era produzir uma série de catálogos, abordando arquitetos, designers etc”, conta. Uma viagem à Bahia, contudo, mudou os rumos do projeto e deu origem ao segundo livro, também publicado pela Alles Trade, em 2008. Rosa de Luca explica que o livro “Arte Vida Sul da Bahia” nasceu quase por acaso. “Tudo começou com uma viagem a trabalho e um passeio que fiz depois. Foi quando decidi reunir uma série de retratos sobre a região Sul da Bahia, tendo como foco principal os artistas e suas produções artesanais. É quase um roteiro de viagem pelas regiões de Belmonte, Santo André, Porto Seguro, Trancoso, Caraíva e tantos outros lugares perto do mar e da mata”, descreve, lembrando enquadramentos e situações mais incomuns que deram origem a belas imagens.



            

  
   



Os tecidos dependurados no varal sob o

sol do sertão, uma das imagens preferidas

da fotógrafa, e a Igreja de Nossa Senhora 

do Carmo em São João del Rei. Abaixo, o

adro da Igreja de Nossa Senhora das Mercês

em Ouro Preto, e um detalhe das tintas do

artesanato no lugarejo conhecido como Bichinho





       
 

O livro sobre as paisagens de Minas Gerais também nasceu de uma viagem a trabalho. “Minas é um mundo, são várias, como aquela passagem do Guimarães Rosa que todo mundo gosta de repetir. Foi difícil, tive que investir, viajar, voltar outras vezes, mas espero que o resultado possa traduzir uma pequena parte das impressões que mexeram comigo”, conta Rosa de Luca. Ela diz que prefere trabalhar sozinha, sem uma equipe de produção. Usa duas câmeras digitais – uma Nikon e uma Canon.



O inusitado e a tradição



Ela conta que, até o projeto do primeiro livro, trabalhou com filme analógico. Depois passou para a tecnologia digital pela facilidade maior para pré-editar o material: além de produzir as fotos originais, ela também assina direção de arte e o projeto gráfico de seus livros. Nas belas imagens emolduradas nas páginas de “Arte Vida Minas Gerais”, a fotógrafa registra cenas que remetem à tradição, ao barroco, à religiosidade, mas também à pedra preciosa, ao detalhe inusitado, como convém ao trabalho de qualidade na arte como no fotojornalismo mais cotidiano.









Da Serra do Cipó ao Vale do Jequitinhonha, e daí a Milho Verde, Carrancas, Catas Altas, Barão de Cocais, Bichinho, Ouro Preto, Mariana – cenários muito diferentes entre si que remetem a diversos extratos de história, coletânea extensa e preciosa de paradoxos entre metrópoles e pequenas cidades, punjança industrial e delicadeza artesanais. É como aponta o prefácio do livro: “nas cidades históricas, com as suas ruas de pedra, estão intactas, bem-guardadas, as histórias de heroísmo e brasilidade, iluminadas pelo nosso primeiro compromisso, que é, e sempre será, com a liberdade. Elas nos trazem, todo o tempo, para o início de tudo, e seus sinos nos embalam, apontando o caminho e o rumo, não importa a encruzilhada”.

O livro também traz breves textos assinados pela atriz, cineasta e escritora Bruna Lombardi, pela própria Rosa de Luca e por Margarida Sant'Anna. Bruna e Margarida participaram dos projetos anteriores da fotógrafa. A apresentação de Bruna é um poema em prosa: “Assim como as pedras preciosas escondem seu brilho dentro, Minas Gerais esconde infinitos tesouros, que vão se mostrando aos poucos a todos aqueles que a descobrem", registra, em uma das passagens.








Margarida Sant'Anna, em texto tão breve quanto didático, recorda a relação entre os cenários de Minas e os modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Em seu projeto de “descoberta do Brasil”, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e vários outros fizeram em 1924 a lendária viagem às cidades históricas de Minas, onde encontraram os encantos esquecidos da arquitetura, da pintura e da talha barroca, mas também das manifestações populares. Margarida destaca que Tarsila, anos mais tarde, registraria suas impressões de viagem:

As decorações murais de um modesto corredor de hotel, o forro das salas, feito de taquarinhas coloridas e trançadas, as pinturas das igrejas, simples e comoventes, executadas com amor e devoção por artistas anônimos; o Aleijadinho, nas suas estátuas e nas linhas geniais de sua arquitetura religiosa, tudo era motivo para as nossas exclamações admiradas”... Para os modernistas da década de 1920 e ainda hoje – aponta Margarida, com propriedade – a originalidade da cultura mineira tem seus polos de interesse no legado barroco e no patrimônio da expressão popular.








Cenários barrocos de Minas: no alto,
menina trabalha em artesanato na Associação
Cultural Sempre Viva em São Gonçalo do
Rio das Pedras. Acima, a capa do livro
Arte Vida Minas Gerais. Abaixo, duas páginas
do livro; detalhes da extração de pedraria em
garimpo de topázio na região central do Estado;
e uma visão noturna sobre o cenário
barroco de Ouro Preto






Lembranças e enquadramentos


 
Mas entre tantas belas imagens que remetem à literatura e aos sentimentos de Minas, qual ou quais as preferidas de Rosa de Luca? “Todas, com certeza”, brinca a fotógrafa, ao telefone, rindo e fazendo piada com a curiosidade sem tamanho do repórter. Depois ela reconhece que, realmente, uma ou outra imagem publicada no livro trazem com mais força à lembrança circunstâncias que ultrapassam os cenários do enquadramento.

Duas delas me comovem de modo especial, talvez por isso estão nas últimas páginas. Uma é o longo varal de roupas secando, dependuradas, no meio do sertão. Outra são os dois vaqueiros na curva da estrada de asfalto. Mas cada foto pode ter seu encanto. É como o trabalho dos artesãos em lugares como Bichinho ou Pitangueiras, com a beleza tão diferente em cada uma daquelas peças, que comove e encanta”, explica, para completar, depois de uma breve pausa em pensamento. “Basta olhar com atenção para descobrir a qualidade única do que, na verdade, sempre esteve ali”.
 


  
           












Depois desta entrevista, que publiquei em um jornal de Belo Horizonte em 2010, Rosa de Luca lançou um novo livro no Bienal de São Paulo, em 2012, retomando a trajetória iniciada com os belos registros fotográficos sobre o Sul da Bahia e sobre Minas Gerais. “Brasil Arte Vida” (Alles Trade) também retrata com maestria a ocupação humana e paisagens deslumbrantes, captadas no Parque Nacional da Serra do Bodoquena (MS), Lagoa Bonita (MA), Rio Tapajós (PA), Alta Floresta (MT), Pantanal (MT) e Rio Amazonas.

Tanto nos projetos anteriores, como no atual “Brasil Arte Vida”, as imagens mantêm um forte apelo cromático, com a habilidade incomum de Rosa de Luca para fundir o mais poético e o trivial, cotidiano. Pós-produção, manipulação em sistema, photoshop? Sim, há páginas reservadas a sobreposições, justaposições, profundidade em macro. Mas talvez sejam os detalhes que menos interessam, porque a maior parte das fotografias é resultado de captação e transposição direta. Em outras palavras, uma lição para aprender e um deleite para os sentidos, definitivamente saborosos.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Das Minas Gerais. In: Blog Semióticas, 15 de janeiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/01/das-minas-gerais.html (acessado em .../.../…).


Para comprar "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa,  clique aqui.











Acima, arte gráfica de Rosa de Luca,
a partir de fotografias de detalhes do casario
barroco de Minas Gerais, e o pequeno
índio no telhado, uma das imagens do novo
livro da fotógrafa, Brasil Arte Vida




Outras páginas de Semióticas