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29 de agosto de 2023

Arte feita de pedras

 





O mar, que só preza a pedra, 
que faz de coral suas árvores, 
luta por curar os ossos 
da doença de possuir carne. 

–– João Cabral de Melo Neto,  
"A educação pela pedra" (1966).  
 

 




Pedras comuns – o material mais simples e em maior abundância em qualquer lugar deste planeta Terra, é a matéria-prima usada por Nizar Ali Badr, artista da Síria, para expressar sua visão de mundo. São arranjos que representam mulheres e crianças, homens, árvores, famílias inteiras, seus pertences, até um beijo apaixonado: a arte de Nizar Ali Badr é feita somente de pedras. Nem tintas, nem traços, nenhum outro material. Apenas pedras. Alinhadas, organizadas sobre superfícies neutras, formam imagens que traduzem pessoas, cenas cotidianas, celebrações, denúncias. No olhar e na imaginação do observador, os mosaicos de pedras montados pelo artista traduzem a Síria, país onde Nizar Ali Badr nasceu e onde sobrevive à barbárie da Guerra Civil.

Encontrei uma seleção da arte de Nizar Ali Badr em uma página do Facebook sem nenhum texto de orientação. Apenas o nome do artista e sua terra natal. Por curiosidade, fui pesquisar sobre o artista e sobre seu país. Descobri pouco sobre Nizar, mas fiquei surpreso ao saber que a Síria é um dos territórios mais antigos da ocupação humana, habitado há milhares de anos, desde a mais remota Antiguidade, mas com a explosão da Guerra Civil, que começou em 2011, a capital Damasco e outras grandes cidades do país, Aleppo, Homs, Palmira, Latakia, Hama, surgem sempre, nas imagens dos noticiários, em escombros de explosões e bombardeiros que nunca terminam.











Arte feita de pedras por Nizar Ali Badr:
no alto e acima, o artista em ação na região
em que mora, à beira-mar, nas proximidades
do Monte Jablon, na Síria. Abaixo, amostras
da arte de Nizar: beijos feitos de pedra
e a jornada dramática dos refugiados,
tradução do sofrimento e da revolta pela
Guerra Civil que desde 2011 destrói a Síria


 











Sanções econômicas, que têm sido impostas desde 2011 por Estados Unidos, União Europeia e Liga Árabe, só aumentam o impacto da destruição e da fome sobre mais de 23 milhões de sírios (estimativa de 2023) – uma população em descréscimo acelerado na última década, por conta do número de mortos na guerra e pelas levas de migrantes que abandonam o país. A tragédia recente impressiona, mas a história tem antecedentes violentos há muito tempo. Assim como acontece na maioria dos países do Oriente Médio, a Síria não teve uma trajetória pacífica no decorrer do século 20.


História de conflitos


Estabelecida como território próspero de produção de frutas e cereais desde o imemorial Reino de Eblas, mais de 4 mil anos Antes de Cristo, a Síria ao longo de milênios conquistou muitos povos nas vizinhanças do seu território e também foi dominada, em períodos cíclicos e sucessivos, sendo palco da ascensão e queda dos impérios do Egito, da Suméria, da Mesopotâmia, de Acádios, de Ur, de Arameus, de Assírios, de Neobabilônicos, de Gregos, de Romanos, de Bizantinos, de Mongóis e de Otomanos. Cada império incorporou elementos das tradições ancestrais da Síria e também imprimiu sua marca em períodos de dominação que, em alguns casos, se estenderam por séculos.













Arte feita de pedras: acima, vista do conjunto
arquitetônico da cidade antiga de Palmira, na
Síria
, que era preservado há mais de 2 mil anos
e foi destruído nas explosões da Guerra Civil;
um homem que chora sobre os escombros,
depois de um bombardeio na região; e os corpos
levados pela água depois de um ataque aéreo
na cidade síria de Aleppo, em fotos de 2010
2016 e 2013 de Baraa Al-Halabi, fotojornalista
sírio da Agência France Presse (AFP).

Abaixo, cenas da guerra na arte de Nizar Ali Badr













A origem de diversas formas de arte também se confunde com a história da Síria – dos entalhes em pedras de relevos e esculturas às grandes construções arquitetônicas que foram assimiladas e adaptadas por culturas diversas com o passar do tempo. Os sírios também foram os primeiros a dominar a arte de produção do vidro, e seus mais antigos artefatos de vidros coloridos que sobreviveram até nossos dias têm mais de 3 mil anos. São raros, entretanto, os registros da literatura e da História Antiga da Síria, porque o país enfrentou muitos períodos de apagamentos, de violentas perseguições étnicas e religiosas, de censura que remonta à Antiguidade e vem até os dias atuais.

Ainda hoje, expoentes da literatura e das artes da Síria sobrevivem apenas no exílio, entre eles Zakariya Tamir (nascido em 1932), um dos principais escritores do mundo árabe, radicado em Londres, ou Fateh al-Moudarres (1922-1999), expoente do surrealismo e da arte moderna das Arábias, que viveu muitos anos exilado em Roma. A principal homenagem à arte da Síria, e em protesto pela Guerra Civil instalada no país, foi realizada em Paris pelo Institut des Cultures d'Islam (Instituto de Culturas do Islã), reunido obras em diversos suportes de autores sírios nas artes plásticas, fotografia, cinema e arte digital. A exposição foi aberta em 2014 e segue um roteiro itinerante em diversos países. Entre os artistas convidados estão Fadi Yazigi, Akram al Halabi, Mohammed Omran, Khaled Takreti, Muzaffar Salman e Tammam Azzam, todos com obras que fazem referência à Guerra Civil e à resistência dos sírios diante da trajetória de violência e de conflitos históricos.

















Arte feita de pedras: acima, três obras do
artista sírio Tammam Azzam que apresentam
releituras de obras célebres da história da arte
no contexto da Guerra Civil em seu país,
"A Dança" (de Henri Matisse), "Noite Estrelada"
(de Van Gogh) e "O Grito" (de Edvard Munch).

Abaixo, 
uma cena da guerra por Nizar Ali Badr






No século 20, a Síria conseguiu restabelecer sua soberania como nação, logo depois da Primeira Guerra Mundial, tornando-se o maior Estado árabe e, em 1945, ao final da Segunda Guerra, foi um dos membros fundadores da ONU, Organização das Nações Unidas, e da Liga Árabe. Ainda na década de 1940, os sírios elegeram o primeiro presidente do país, Shukri al-Quwati, e conquistaram sua independência definitiva, após um longo período do domínio francês. Nas décadas seguintes, a Síria se alinhou à União Soviética, depois ao Egito, só retornando à independência em 1970, quando houve um golpe de estado liderado pelo general Hafez al-Assad. Depois do golpe o país conquistou novamente a independência, mas permaneceu sob um governo autoritário.


Primavera árabe


Hafez al-Assad ficaria no poder durante 30 anos, até sua morte, no ano 2000, quando seu filho Bashar al-Assad assumiu o poder e o cargo de presidente da Síria. Em 2010, a permanência de Bashar al-Assad no poder foi ameaçada pela onda de protestos nas ruas das maiores cidades da Síria, no contexto da Primavera Árabe – como ficaram conhecidas as manifestações organizadas pelas redes sociais da internet (Facebook, Twitter e YouTube) que agitaram países do Oriente Médio e do Norte da África, a maioria deles, não por acaso, sendo grandes produtores de petróleo. Os protestos, que muitos analistas veem como movimentos atrelados e financiados por interesses de países do Ocidente, provocaram repressão violenta e revoluções, prisões, mortes e guerras civis no Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Argélia, Kuwait, Líbano, Jordânia e outros países. No caso da Síria, a Guerra Civil que teve início com os protestos daquele período já tem duração de mais de uma década (sobre as questões da Primavera Árabe, veja também Semióticas – Das Arábias).














Arte feita de pedras: acima, homens carregam
bebês depois de um bombardeio na cidade de
Aleppo, em fotografia de 2016 de Ameer al-Halbi
para a Agência France Presse; crianças da Síria
em área destruída na cidade de Kobane e um
acampamento de refugiados sírios na fronteira
com a Turquia, em fotografias de 2015 e 2016
de Yasin Akgul, fotojornalista da Síria para a
Agência France Presse. Abaixo, refugiados da
Guerra Civil na Síria na arte de 
Nizar Ali Badr










Na Síria, a repressão aos protestos da Primavera Árabe coincidiu com a ascensão de diversos grupos armados e sectários, alguns deles com histórico de atuação violenta nas décadas anteriores. Os conflitos internos, com apoio bélico intensivo e permanente de forças estrangeiras, já deixaram um número incontável de milhares de mortos e provocaram movimentos de migração que, segundo estimativas não oficiais, atingiram mais de 13 milhões de pessoas. O que começou como protestos pacíficos passou a enfrentar uma violência crescente que se espalhou, à medida que milhares deixavam o país na condição de refugiados e que os combatentes estrangeiros e armamento pesado entravam, fortalecendo o Estado Islâmico. Desde 2011, a paz parece um sonho cada vez mais distante para os sírios.

Este sonho distante ainda move a arte de Nizar Ali Badr que, quando começaram os confrontos violentos, passou a recolher suas pedras à beira-mar na localidade onde mora, entre as cidades de Latakia e Jebel, na região do Monte Zaphon, próxima à fronteira com a Turquia. As pedras se transformaram em passatempo e em registro de cenas que o artista acompanha no dia a dia: famílias em fuga, perseguições, violência, destruição. Também em 2011 ele conseguiu sua primeira câmera fotográfica e passou a registrar as cenas da arte efêmera que constrói diariamente com os arranjos de pedras.

Uma das poucas vezes que Nizar comercializou suas obras foi em 2016, quando a escritora e jornalista canadense Margriet Ruurs pagou pelo uso das ilustrações em seu livro infantil “Caminho de Pedras – A jornada de uma família de refugiados”, que conta a história de uma família de imigrantes, sucesso de vendas em vários países, inclusive no Brasil, onde foi lançado em 2018 pela Editora Moderna em versão ilustrada e bilíngue, em português e árabe. No livro de Margriet Ruurs, a protagonista Rama e sua mãe, pai, avô e irmão, Sami, são forçados a fugir da guerra na Síria, deixando tudo para trás, e partem em busca de refúgio na Europa, levando apenas o que podem carregar nas mochilas. A história, comovente e verdadeira, é contada pelas pedras de Nizar Ali Badr.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte feita de pedras. In: Blog Semióticas, 29 de agosto de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/08/arte-feita-de-pedras.html (acessado em .../.../…).



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12 de maio de 2019

O brinquedo nazista








Os jogos infantis são impregnados de comportamentos
miméticos que não se limitam de modo algum à imitação
de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante
ou professor, mas também de ser moinho de vento e trem.
A questão importante, contudo, é saber qual a utilidade
para a criança desse adestramento da atitude mimética.

–– Walter Benjamin, 1928.    



No senso comum está, muitas vezes, a ideia de que tanto jogos, brinquedos e brincadeiras, como as etiquetas do antigo comportamento em geral eram muito melhores que os de hoje em dia, seja esta ideia um modo melancólico de utopia nostálgica ou mesmo um argumento para criticar e contrapor, em nossos dias, a onipresença cotidiana de objetos eletrônicos e virtuais, videogames e telemáticas de formatos e definições variadas, computadores, celulares e seus similares. A percepção do senso comum também confirma que jogos e brinquedos formam uma parte importante da nossa identidade na trajetória de nossas vidas individuais e coletivas, assim como fazem e sempre fizeram parte de todas as culturas em todas as épocas. Mas o que as maneiras de brincar dizem sobre uma sociedade?

A questão foi objeto de investigação filosófica e histórica por pensadores e pesquisadores das mais diversas áreas e nacionalidades, de Sigmund Freud e Ludwig Wittgenstein a Johan Huizinga, de Jean Piaget e Roger Caillois a Umberto Eco, de Maria Montessori e Joffre Dumazedier a Ellen Key, de Lev Vygotsky e Melanie Klein a Roland Barthes, de Walter Benjamin a Paulo Freire e Tizuko Kishimoto, entre outros. Na Antiguidade Clássica, Aristóteles já destacava o valor do jogo por sua autossuficiência, nos livros de sua “Arte Retórica” (publicados em texto integral no Brasil pela Editora Edipro), e interrogava sobre sua causa final em variáveis como luta e disputa, derrota e vitória, para concluir que, em toda circunstância, são as formas do prazer pelo próprio jogo o que procuram aqueles que jogam. Sobre as reflexões pioneiras de Aristóteles talvez seja também importante lembrar que, em grego, há uma revelação etimológica sobre as relações que se estabelecem entre infância, jogos e brincadeiras: todos os vocábulos referentes às atividades lúdicas estão ligados à palavra criança (“pais”, paidí“paidós”) e o verbo paizeim, que se traduz por “brincar”, também pode ser traduzido literalmente por “hora de brincar” ou “agir como criança”.










O brinquedo nazista: no alto, boneca produzida
pela tradicional empresa Käthe Kruse, que adotou
na década de 1930 uniformes militares nazistas
ou da Juventude Hitlerista para sua extensa linha
de bonecas e bonecos. Acima, a capa do livro de
André Postert e a reconstituição pelo autor de
um quarto de criança de classe média
na Alemanha da década de 1930.

Abaixo, as peças originais do jogo de
tabuleiro A Corrida da Vitória da Suástica
(Der siegeslauf des hakenkreuzes), lançado
quando Hitler tomou o poder em 1934.
Todas as imagens desta página fazem parte
do acervo reunido por André Postert












No último século, Walter Benjamin, vivendo na Alemanha em tempos sombrios que testemunhavam o avanço rumo ao poder e à destruição do nazismo, também deixou pesquisas e escritos reveladores sobre a prática de jogos como repetição e sobre as formas alegóricas de brincar. No ensaio “Brinquedos e jogos”, publicado em 1928 com o subtítulo “Observações marginais sobre uma obra monumental” (publicado no Brasil em “Reflexões sobre o brinquedo, a criança e a educação”, livro da Editora 34), Benjamin ressalta a polissemia da palavra “jogos” – na língua alemã, “spiel” (no singular) ou “spiele” (no plural) é um substantivo que pode ser traduzido tanto por “jogos” como por “brincadeiras”. “Spieler” se traduz por jogador; “spielerisch”, por brincalhão; assim como “spielen”, o verbo relacionado ao termo, tem, entre outros significados, “brincar”, “jogar” ou “representar”.



Ideologia bélica e macabra



No duplo sentido, em alemão, da palavra “spiele” e da prática de jogos e brincadeiras, Benjamin faz referências sobre as maneiras de brincar e sobre as fantasias e percepções construídas na brincadeira, nas lutas e na destruição dos brinquedos, nos objetos e na imaginação que marcam a vida cotidiana estampada no singular e no plural. “A essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformar a experiência mais comovente em hábito”, alerta Benjamin, para concluir que “o hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo que em formas mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho da brincadeira”. Se é verdade, como questiona Benjamin, que para cada um existe uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro submerge, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma velha caixa de brinquedos? 








.


O brinquedo nazista: no alto, fotografia de
álbum de família na Alemanha da década de 1930.
Acima, bonecos produzidos pela Käthe Kruse:
à esquerda, folheto com anúncio do lançamento
Friedebald Puppe, boneco com mecanismo para
erguer o braço para a saudação a Hitler e que
esgotou rapidamente no mercado pela demanda
de exportações no começo da Segunda Guerra;
à direita, soldadinho de feltro, também
produzido pela Käthe Kruse, com enchimento
de algodão e uniforme militar completo.

Abaixo, bonecos em metal para a
coleção Mini-Nazis, que eram vendidos
separadamente; e fotografia de álbum de família
com meninos em 1938 estreando os presentes
de jogos de guerra sob a árvore de Natal













O questionamento filosófico e nostálgico identificado por Walter Benjamin em 1928 parece ter sido tomado literalmente como fio condutor pelo historiador André Postert, que desde 2014 atua como pesquisador associado do Instituto Hannah Arendt na cidade alemã de Dresden. Postert investigou durante anos, em arquivos e bibliotecas da Alemanha, os registros mais variados sobre os jogos infantis e as velhas caixas de brinquedos. Os resultados das pesquisas agora estão reunidos no livro “Kinderspiel, Glücksspiel, Kriegsspiel: Große Geschichte in kleinen Dingen 1900-1945” (em tradução livre, Jogo infantil, jogo de sorte, jogo de guerra, Grande História em pequenas coisas 1900-1945”), lançamento da Editora DTV em alemão e outras línguas (veja o link para leitura dos primeiros capítulos no final deste artigo).

Limitando sua investigação à primeira metade do século 20, Postert descreve práticas e objetos muitas vezes macabros que foram extremamente populares: de bonecas e bonecos em seus uniformes militares a carrinhos e miniaturas de aviões, tanques e submarinos, réplicas de armas, jogos de tabuleiro, cartas de baralhos, cartelas de sorteios, dados, livros infantis e fichas impressas e ilustradas, brinquedos com algum teor erótico, peças de xadrez ou uma variedade de peças para montar. Os itens do inventário que Postert organizou surpreendem porque comprovam os indicativos explícitos de uma profunda e intensa propaganda para a ideologia bélica, violenta e antissemita. Como agravante, no perfil da grande maioria dos brinquedos e dos jogos com estratégias de batalha, na época das duas guerras mundiais, todos com muitas estampas de armas, suásticas, escudos e outros símbolos nazistas, os apelos para crianças e adultos eram sempre anunciados em destaque como “educativos”.










O brinquedo nazista: no alto, miniaturas de
tanque de guerra, sucesso de vendas no
começo da década de 1940. Acima, pai e
filho brincam com miniatura de submarino
em fotografia promocional de 1941.

Abaixo, os tabuleiros e peças de
Juden raus! (Fora judeus!), lançado
em 1936 pela Günther & Co. com o rótulo de
um jogo para toda a família” e no qual o
vencedor era o jogador que primeiro conseguisse
recolher” seis judeus antes dos outros. Também
abaixo, outro jogo de tabuleiro de conteúdo
antissemita, Sakampf, em que os jogadores
disputavam pelo título de ser o primeiro a
destruir a democracia na Alemanha












.

Suásticas no tabuleiro



Na apresentação a seu inventário, André Postert destaca que jogos e brinquedos são reveladores sobre o comportamento de uma sociedade: eles representam o “zeitgest”, o “espírito da época” ou o sinal dos tempos. Segundo Postert, jogos, brinquedos e brincadeiras podem ser bons indicadores sobre o passado no tempo presente porque retratam a história em todos os seus aspectos, incluindo aqueles que em sua época não foram compreendidos, ou porque foram ignorados ou porque foram mascarados com sérias intenções ideológicas: tanto aspectos referentes às questões de tecnologia e economia como as implicações sobre política, educação, comportamento, racismo, fanatismo, religião, injustiça, crimes e guerras. “Alguns jogos e brinquedos são apenas uma moda passageira”, aponta Postert, “enquanto outros às vezes experimentam um renascimento inesperado depois de décadas. Acredito que isso acontece porque jogos e brinquedos não apenas escrevem a história, mas também refletem a história”.

A chegada de Adolf Hitler ao poder e à ditadura nazista na Alemanha abrange o período que vai de 1933 até o fim da Segunda Guerra, 1945, mas desde o começo do século 20 os jogos e brinquedos com orientação bélica e racista já ocupavam o mercado e as linhas de produção da poderosa indústria alemã. O auge para tal indústria antecede a Segunda Guerra e termina por alcançar os índices recordes de maior produção global para a Alemanha nas décadas de 1920 e 1930. Sob o controle de Hitler e do Partido Nazista (NSDAP), a Alemanha foi transformada em um estado totalitário fascista em que a vontade do Führer (líder) estava acima das leis e controlava todos os aspectos da vida dos cidadãos. Na Alemanha Nazista, também chamada de Terceiro Reich, a indústria de brinquedos foi transformada em mais uma engrenagem de sua gigantesca máquina de propaganda.












O brinquedo nazista: no alto, página do
catálogo de 1936 de miniaturas militares
da Hausser, uma das maiores fabricantes de
brinquedos da Alemanha na década de 1930.
Acima, o tabuleiro original de Guetto,
jogo que tem como tema a vida cotidiana no
campo de concentração de Theresienstadt
e que foi criado por um artista judeu,
Oswald Pöck, sequestrado em Viena, na
Áustria, em novembro de 1941, para ser
executado em Theresienstadt. Pöck
sobreviveu durante anos no cativeiro e
morreu em setembro de 1944, assassinado
no campo de concentração de Auschwitz.

Abaixo, a caixa original e uma seleção
de fichas de outro campeão de vendas,
o jogo de tabuleiro Weltkrieges Spiel
(Jogo da Segunda Guerra Mundial)












Enquanto os grandes fabricantes de brinquedos abraçavam as bandeiras do Terceiro Reich, em suas causas bélicas e racistas de perseguição e assassinato de judeus e outros grupos considerados indesejáveis, Joseph Goebbels, o todo poderoso ministro da Propaganda, atuava para lançar mão de todos os recursos para controle da opinião pública alemã, censurando e também assassinando qualquer oposição na cena política, nas escolas e na cultura em geral, promovendo determinadas formas de expressão artística favoráveis aos planos nazistas e fascistas e proibindo qualquer questionamento. Postert destaca que a indústria de brinquedos aceitou todas as formas de controle sem nenhuma resistência e que o próprio Hitler, assim como Goebbels, ia publicamente a mercados, a empresas e a grandes lojas de departamentos no Natal e em datas cívicas para promover, em ações direcionadas de publicidade, certos jogos e brinquedos, distribuindo presentes na presença da imprensa e de grandes plateias em situações planejadas nos mínimos detalhes. A mensagem era direta: “nós amamos as crianças e as crianças nos amam”.



A propaganda explícita



Entre as grandes empresas que comandavam a produção industrial, listadas no inventário de Postert, há muitos casos que impressionam pelo conteúdo bélico e racista dos jogos e brinquedos, de propaganda do estado totalitário, e pelos altos volumes de vendas que tais itens alcançaram. Entre eles está o marco representado pela empresa Käthe Kruse, que adotou uniformes militares nazistas ou da Juventude Hitlerista para sua extensa linha de bonecas e bonecos, ou o macabro “Juden raus!” (Fora judeus!), lançado em 1936 pela Günther & Co. com o rótulo de “um jogo para toda a família”. Na estratégia do “Juden raus!”, jogadores assumem nas peças do tabuleiro o papel de policiais e, ao ritmo de lances de dados, podem invadir propriedades, confiscar bens, prender famílias inteiras de judeus e fazer deportação de sequestrados para os campos de concentração. O vencedor era o jogador que conseguisse “recolher” seis judeus antes dos outros.












O brinquedo nazista: a partir do alto,
Hitler ao lado de um de seus comandantes
de alta patente recebem crianças em foto
promocional distribuída à imprensa no Natal
de 1939. Acima, o ministro da Propaganda
do Terceiro Reich, Joseph Goebbels, leva
as filhas Hilde e Helga (à esquerda) para
uma visita às lojas de brinquedos no Natal de
1938. Também acima, Wehrschach Tak-Tik,
uma variação para o tradicional jogo de xadrez,
tendo peças em azul e vermelho com tanques,
aviões e militares de várias patentes no lugar
de peões, cavalos, bispos, torres e, substituindo
rei e rainha, uma águia (símbolo nazista da
superioridade racial e da invencibilidade,
colocada acima da cruz suástica porque
sempre estava “acima de tudo”).

Abaixo, foto promocional da linha de bonecos
bonecas em uniformes militares em 1938
um anúncio da Associação de Fabricantes
Alemães de Estanho que comemora
o fim da “corrida pacifista”









A iniciação macabra aos rituais, à ideologia e às instituições do Terceiro Reich prossegue em muitos outros jogos e brinquedos investigados no livro de Postert. Havia também uma variedade de coleções de papéis de cartas, cartilhas didáticas e baralhos completos com retratos dos principais chefes do regime nazista, de Hitler a Goebbels, Göring, Himmler e outros comandantes militares, além de miniaturas de veículos reconstruídos em detalhes com bonecos representando personagens reais em seus uniformes militares oficiais. Hitler, com seu motorista e sua limusine preta, figuram como recordistas de vendas.

Outro campeão de vendas “para toda a família” foi o jogo “A Corrida da Vitória da Suástica” (Der siegeslauf des hakenkreuzes), uma peça de propaganda explícita lançada quando Hitler tomou o poder, em 1934. No jogo, as peças com suásticas eram movidas pelos jogadores de um campo a outro do tabuleiro, cada campo indicando momentos históricos do partido nazista desde sua fundação. O jogador que, depois de vários lances, pudesse ultrapassar os obstáculos dos opositores para chegar ao campo final, indicando 1934, vencia a batalha e destruía a democracia alemã.

O extenso acervo de jogos de tabuleiro e de brinquedos reunidos por Postert também representa um arsenal de doutrinação e de destruição, já que, na prática dos jogos e brincadeiras, principalmente as crianças, mas também os jogadores de todas as idades, aprendiam, reforçavam e espalhavam a ideologia fascista do regime com requintes de propaganda racista, militar e política, incluindo a preparação social para a guerra e seus crimes em massa, seus genocídios. Entre os documentos que impressionam pelas formas explícitas de violência que propagam, Postert reproduz trechos de um comunicado público de 1933 da Associação de Fabricantes Alemães de Estanho que é revelador pelos termos que comemora: “Acabou-se com a corrida pacifista estúpida das sociedades da paz e das ligas femininas contra todos os brinquedos militares”.












O brinquedo nazista: no alto, Hitler
estampado na caixa de Führer Quartett,
jogo de cartas lançado em 1934 com o
esquadrão completo do primeiro time das
forças policiais e militares do Terceiro Reich.
Acima, flautas com estampas de suásticas
que também foram usadas em tambores,
apitos, pequenos pianos mecânicos e outros
instrumentos musicais para crianças.

Abaixo, dois exemplares de bonecos que
representam judeus como seres diabólicos
em coleções de fantoches e de marionetes
anunciados pelos fabricantes como
brinquedos para toda a família”









A banalidade do mal



Macabro e fúnebre, o saldo criminoso e assustador do genocídio nazista gerou um cenário traumático que levou, no pós-guerra, pensadores como Hannah Arendt a chamar atenção para o que seria a “banalidade do mal”. Em 1961, depois de 15 anos do final da Segunda Guerra Mundial, Arendt, filósofa alemã de origem judaica que embarcou para os Estados Unidos fugindo do nazismo, é enviada pela revista “The New Yorker” para acompanhar o julgamento, em Israel, de Adolf Eichmann, tenente-coronel da Alemanha Nazista e um dos principais mentores do Holocausto, que havia sido localizado e preso em 1960 em Buenos Aires, Argentina. Com base nos relatos que escreveu para a revista norte-americana, Arendt publica em 1963 o livro “Eichmann em Jerusalém”, que tem por subtítulo “Um relato sobre a banalidade do mal” (editado no Brasil pela Companhia das Letras).

Arendt ressalta, considerando as estratégias nazistas que resultaram no assassinato em massa de cerca de seis milhões de judeus e outras etnias durante a Segunda Guerra, que o acusado naquele julgamento não apresentava características de um caráter distorcido ou doentio e que ele alegava ter feito o que fez porque acreditava ser aquele o seu dever, cumprindo ordens superiores sem questionar. Envolvido em polêmicas e muitas controvérsias, o julgamento, que terminou com Eichmann condenado à morte por enforcamento em 1962, fornece argumentos importantes para que Arendt reconheça, na banalidade do mal, uma ameaça constante para todas as sociedades democráticas, abordando o problema por uma perspectiva política e não moral ou religiosa.













O brinquedo nazista: no alto, o jogo de
salão Atenção, o inimigo está escutando!
(Achtung, Feind hört mit!), lançado em
1940 para promover o filme de propaganda
nazista de mesmo título com roteiro e
direção de Arthur Maria Rabenalt. Acima,
uma foto promocional distribuída pelo
Terceiro Reich nas lojas, às vésperas do
Natal de 1933, para anunciar que o
Führer” iria distribuir presentes para
filhos de pais desempregados e desejava
a todos os alemães um feliz Natal.

Abaixo, miniaturas de blindados militares
fabricados na década de 1930 em metal e
com detalhes cromados. Também abaixo,
Guerra Aéreajogo de tabuleiro fabricado
na Alemanha no início da década de 1940
e que após a Segunda Guerra se tornaria
ainda mais popular em vários países
com o nome de Batalha Naval.
Nas últimas imagens, abaixo,
meninos brincam com miniaturas de
soldados e de veículos de guerra em
fotografia da década de 1930 em um
orfanato na cidade alemã de Potsdam;
e o cartaz para os cinemas brasileiros
de O Tambor (Die Blechtrommel),
filme alegórico sobre um personagem
que vive a infância no período da ascenção
do nazismo, realizado em 1979 por
Volker Schlöndorff com roteiro adaptado
do livro homônimo publicado em 1959
por Günter GrassPrêmio Nobel de
Literatura de 1999







O mal, segundo Hannah Arendt, é um fenômeno político e histórico porque se manifesta apenas onde encontra espaço institucional – e sempre como resultado de uma escolha política: sua banalização corresponde ao vazio de pensamento que transforma a violência homicida em mero cumprimento de metas e organogramas burocráticos. Como a história comprova, a banalidade do mal sempre permanece à espreita, à procura da oportunidade  para se instalar, e até mesmo objetos e práticas na aparência triviais e do senso comum, como jogos, brinquedos e brincadeiras, podem ser instrumentos para espalhar e multiplicar, de forma monstruosa, o perigo de sua contaminação de ódio e violência. 


por José Antônio Orlando.




Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O brinquedo nazista. In: _____. Blog Semióticas, 12 de maio de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/05/o-brinquedo-nazista.html  (acessado em .../.../...).



Para ler os primeiros capítulos do livro de André Postert,  clique aqui.










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