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10 de setembro de 2011

Pandora







Conta a mitologia que os presentes saltaram
de forma tão violenta da caixa que Pandora
teve medo e a fechou antes que o último deles
escapasse: a esperança. Desde então sabemos
que nenhuma fábula tornada famosa pelos
gregos pode ser negligenciada.
––  Hipólito de Roma em “Philosophumena”.  
 
 
O filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), teórico da política, da história e da recepção da obra de arte, foi um dos pioneiros a ressaltar a importância da fotografia e do cinema na formação de uma nova sensibilidade na civilização contemporânea. No celebrado ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, uma de suas obras-primas, Benjamin interpreta este período histórico com alegorias como a destruição da aura dos objetos únicos: a arte ganha outros sentidos diante da circulação incessante de imagens e da novidade dos objetos produzidos em série.

Nesta nova era que destaca Benjamin, e que fizeram dele, depois de sua morte trágica, um dos intelectuais mais influentes do último século, as populações urbanas se transformam em grandes massas e rápido incorporam um fetiche consumista. Neste cenário, a mercadoria almejada é um simulacro. Pior: este simulacro de mercadoria é capaz de construir para si uma outra espécie de aura, profana, em contraposição ao antigo valor de eternidade da obra de arte e das imagens sagradas de devoção religiosa. 








A nova era, também chamada modernidade, com tudo o que ela representa de consumo de imagens e fetichismo da mercadoria, de substituição permanente do real por simulacros, passaria por situação hegemônica daí por diante. Mas ao custo de um embotamento cada vez maior dos sentidos e da sensibilidade, comandados por um novo e avassalador acento à cultura visual.

Um “instantâneo” deste período complexo e privilegiado do convívio do gênio humano com câmeras, fotografias e filmes, que há 150 anos tinha início para mudar em definitivo as formas de organização do olhar e os rumos da civilização, fornece o pano de fundo para os 13 ensaios e inúmeras imagens, desenhos, pinturas, gravuras, cartazes, cartuns, cartões postais, fotogramas e ilustrações diversas reunidas em “O Cinema e a Invenção da Vida Moderna” (Cosac Naify). 
















Na concepção dos norte-americanos Leo Charney e Vanessa Schwartz, organizadores do livro e autores de dois dos ensaios, cinema é o termo genérico para todo o aparato tecnológico de registro e reprodução de imagens que tomou de assalto a civilização e criou uma gigantesca indústria do entretenimento. O cenário em questão é a “belle époque” romântica de Paris, Londres, Berlim, além das grandes cidades da América do Norte e, por extensão, seus reflexos ideológicos espalhando-se pelos quatro cantos do planeta.



O primeiro cinema



O fio condutor dos autores e seus respectivos universos de pesquisa é localizar na cena social os momentos que antecedem a invenção dos códigos cinematográficos. As variáveis mais constantes nos ensaios são as relações entre a fotografia e o primeiro cinema, em interface com as artes gráficas e visuais, a poesia e a literatura fragmentária e urbana dos folhetins, a arquitetura e as soluções urbanísticas, a economia, os utensílios da vida cotidiana, placas, luminosos e cartazes com arautos de ousadas estratégias de comunicação social, os museus de cera, as vitrines das lojas, os novos nexos da publicidade e os catálogos de vendas, folhetos postais ilustrados e anúncios na imprensa que proliferaram nas décadas e séculos seguintes.

A lista dos pioneiros nas técnicas da fotografia e do cinema é extensa, como apontam os ensaios reunidos por Charney e Schwartz. E o curioso é que na história da fotografia e do cinema as datas coincidem desde os primórdios. Enquanto avançava a técnica dos primeiros registros fotográficos, muitos artistas e cientistas investiam em aparelhos que fizessem uma imagem criar a ilusão do movimento – caso de Joseph Plateau, cientista belga que em 1832 criou o “fenacistoscópio”, um equipamento que produzia a ilusão do movimento em desenhos.










Nas décadas seguintes, inventores da França, Inglaterra e Estados Unidos avançaram nos experimentos de fazer e projetar filmes. Vários destes pioneiros são lembrados nos ensaios do livro, em especial os norte-americanos: Thomas Edison, que em 1887 começou a trabalhar em um aparelho para fazer com que as fotografias parecessem ganhar movimento; Hannibal Goodwin, que em 1889 desenvolveu um filme à base de celulóide transparente que era resistente, mas flexível; George Eastman, pioneiro na fabricação de equipamento fotográfico; William Dickson, parceiro de Thomas Edison na invenção do Kinetoscópio (ou Cinetoscópio), com um visor individual que exibia 15 metros de filme.

Em 28 de dezembro de 1895, pela primeira vez um filme foi projetado publicamente em uma tela. Esta lendária primeira projeção, realizada pelos irmãos Auguste Marie Nicholas Lumière (1862-1954) e Louis Jean Nicholas Lumière (1864-1948), aconteceu no Indian Salon do Grand Café, em Paris, com cenas simples em 10 filmes de curta duração. O primeiro filme foi "A Chegada do Trem à Estação de Ciotat", que provocou susto e grande alvoroço no público presente. A plateia acreditou que o trem estava invadindo o salão. A notícia se espalhou e o espetáculo dos Lumière foi sucesso foi imediato. Em poucos meses, todas as grandes cidades da Europa tinham filmes em exibição.



Viagem à lua



Até mesmo os irmãos Lumière reconheceram, muitos anos mais tarde, que a magia ilusionista do cinema só estaria completa com a entrada em cena de Georges Méliès (1861-1938), mágico profissional, produtor, escritor, pintor, inventor, ator e diretor de mais de 500 filmes com trucagens impressionantes, entre eles o fabuloso “Viagem à Lua”, de 1902. Méliès, que estava presente naquela primeira sessão no café em Paris, foi definido pelos irmãos Lumière como "o verdadeiro criador do espetáculo cinematográfico". 

 








Pandora: acima, Nova York em 1901,
em fotografia de autor desconhecido. No
alto, o World Trade Center, fotografado
em agosto de 2001, seguido de fotografias
da primeira sessão dos Lumière no café
em Paris, em 1895, e cartaz e fotogramas
de Viagem à Lua (1902), obra-prima do
pioneiro Georges Méliès (1861-1938).

Abaixo, o primeiro beijo do cinema, no
filme que Thomas Edison (1847-1931)
produziu em 1896 através do sistema
Kinetoscópio. Edison convidou o casal
May Irwin e John Rice, que fazia sucesso
em Nova York com a peça A Viúva Jones
(The Widow Jones), para encenar o beijo
no filme The Kiss, de apenas um minuto
de duração. Tido como primeiro grande
sucesso do cinema nos EUA, o filme
era apresentado em feiras e parques de
diversões, exibido em cabines individuais.
Também abaixo, Rudolph Valentino, primeiro
galã do cinema e primeiro símbolo sexual,
beija Agnes Ayres em "O Sheik", filme de
1921 com direção de George Melford,
um dos maiores sucesso do cinema
mudo na antiga Hollywood











A referência obrigatória para todos os autores nas abordagens sobre os pioneiros da fotografia e do cinema é, sem exceção, Walter Benjamin. Tanto os organizadores, Charney e Schwartz, quanto os autores reunidos rendem tributos às análises visionárias do mais atual dos pensadores da Escola de Frankfurt, retomando coordenadas polêmicas em que o autor de “Rua de Mão Única” trafega com desenvoltura entre ideias centrais e da maior complexidade de Karl Marx e Sigmund Freud.

Referência obrigatória, mas não exclusiva. Além de Benjamin e suas citadas intervenções na articulação de dogmas religiosos, psicanálise e teoria da ideologia, poucos pensadores têm presença marcante em mais de um ensaio. Caso do pioneiro alemão (da primeira década do século 20) Georg Simmel, da ideias pós-estruturalistas do francês Michel Foucault, da semiótica russa de Mikhail Bakhtin (sobre a promiscuidade social prazerosa do carnaval e das atrações populares) ou do também alemão Siegfried Kracauer, contemporâneo de Benjamin.








Pioneiros do cinema: no alto, os irmãos
Auguste Marie e Louis Jean Lumière.
Acima, Georges Méliès, "o verdadeiro
criador do espetáculo cinematográfico",
fotografado em Paris, em 1937. Abaixo,
D. W. Griffith, outro criador da linguagem
cinematográfica e o primeiro dos grandes
cineastas. Griffith, diretor e produtor dos
épicos Nascimento de uma Nação (1915)
Intolerance (1916), entre outros, foi o
primeiro a filmar na localidade chamada
Hollywood, na Califórnia, com o objetivo
de aproveitar ao máximo a luz natural.

  Também abaixo, Lillian Gish (1893-1993),
primeira grande estrela do cinema  mudo em
filmes como O Nascimento de Uma Nação;
 os pioneiros que fundaram Hollywood e
United Artists, Douglas Fairbanks,
 Mary Pickford, Charlie Chaplin e Griffith;
 e dois momentos diante da multidão de
 Chaplin, primeiro grande astro popular
 do cinema: aclamado em 1918, em
Wall Street, Nova York, em um evento
promovido para arrecadar fundos para as
tropas dos EUA durante a Primeira
Guerra Mundial; e em sua primeira visita
a sua cidade-natal, Londres, em 1921,
depois do sucesso espetacular de seus
filmes em Hollywood, aplaudido em frente
ao Ritz Hotel, onde estava hospedado






















   




 
 
No ensaio de Miriam Bratu Hansen que encerra o livro, Kracauer é apresentado com ares de contemporaneidade e ousadia, seja na crítica pouco ortodoxa à cultura de massas (que o aproxima de Benjamin na mesma medida em que o afasta dos demais frankfurtianos), seja no destaque que sua abordagem teórica confere à categoria dos funcionários de escritório – grupo que Kracauer percebe em ascensão quantitativa frente às massas do operariado do passado próximo.



Imagem e imaginário



Benjamin, contudo, com seus argumentos que ainda hoje soam ousados, é quem fornece o principal arsenal teórico para os pesquisadores, todos norte-americanos, enriquecendo teses marxistas, psicanalíticas e semióticas a partir do ângulo da recepção, da leitura de funções estéticas, ideológicas e comerciais na chamada “imaginação do público”, a partir da entrada em cena da fotografia e do primeiro cinema.







Pandora: acima e abaixo, raros retratos
de Walter Benjamin em 1937em Paris,
fotografado pela francesa de origem alemã
Gisèle Freund, enquanto pesquisava
arquivos da Bibliothèque de France.

Também abaixo, 1) Walter Benjamin
disputa uma partida de xadrez em 1934
com Bertolt Brecht na Dinamarca;
e 2) Christopher Isherwoodautor
de Adeus a Berlim (1939), que relata
em tom ficcional os primeiros tempos
do cinema falado e a ascensão do
nazismo na Alemanha da década de 1930,
que tem o célebre trecho de abertura:
"Eu sou uma câmera com o obturador
aberto, bastante passivo, gravando,
sem pensar". O livro de Isherwood
gerou uma peça de teatro de 1951,
Eu sou uma câmeratransformada
em filme em 1955, e também um
musical de sucesso na Broadway
em 1966, Cabaret, argumento para o
filme dirigido em 1972 por Bob Fosse,
com Liza Minnelli no papel da
cantora Sally Bowles

 
 





 



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Nos 13 ensaios reunidos, os resultados de pesquisas aparentemente exaustivas surgem em argumentos que surpreendem, apontando para a novidade do valor sensorial deste inusitado e cada vez mais intensivo tráfego de imagens na experiência humana, no que ela representa de estranhamento desde as invenções da fotografia e do cinema. Jonathan Crary, no segundo ensaio, destaca esse estranhamento como característica tipicamente moderna ao analisar uma pintura muito conhecida – “A Estufa” (1873), de Édouard Manet – na perspectiva da precariedade e instabilidade da atenção nos novos tempos.

Ao abordar temas aparentemente díspares como personagens e citações de obras da literatura, quadros de Manet e outros mestres da arte moderna, os cartazes publicitários ou a afluência aos museus de cera e ao necrotério de Paris, os artigos e imagens reunidos em “O Cinema e a Invenção da Vida Moderna” defendem a premissa: a cultura moderna foi cinematográfica antes mesmo da popularização do cinema. Mesmo para o leitor que não conheça as teorias do cinema ou o leque de estudos filosóficos que aparecem nas referências e nas citações, é um livro singular na caracterização do momento formador de uma nova experiência estética e do tipo de sociedade que lhe deu ensejo.








Imagens em visões da realidade: acima,
A estufa, pintura em óleo sobre tela de 1873,
uma das obras-primas do mestre impressionista
francês Édouard Manet, um dos revolucionários
da arte no século 19, com o alheamento de
olhares que nunca se cruzam e personagens
distraídos a observar o vazio extra-quadro.

Abaixo, obras-primas da história da fotografia
feitas em processo de Autochrome, técnica
inventada e patenteada em 1907 pelos irmãos
Auguste e Louis Jean Lumière, também
inventores do Cinematógrafo: na primeira,
fotografia feita em 1913 pelo engenheiro inglês
Mervyn O’Gorman registra sua filha Cristina
em uma praia da Inglaterra; na segunda, uma
vendedora de flores nas ruas de Paris em
fotografia de 1914 feita pelo banqueiro francês
Albert Kahn. O Autochrome era um processo
extremamente caro e produzia imagens frágeis
em chapa de vidro, exigindo um longo tempo
de exposição para o registro fotográfico.
Mervyn O’Gorman e Albert Kahn, milionários
e fotógrafos amadores, foram entusiastas das
novidades técnicas inventadas pelos Lumière











Ensaios e imagens compõem um papel original da virada do século 19 para o século 20, tomando a experiência do cinema como paradigma, ponto de condensação das novas formas de organização do olhar correlatas às transformações que definiram o que denominamos modernidade. Ao lado da fotografia e outras técnicas, a emergência da nova arte surge em suas mais diversas conexões com as práticas sociais, com destaque para o cotidiano das cidades, a expansão do consumismo, os catálogos de venda, as exposições, o jornalismo, a publicidade. 



Sujeito atento instável

 

Em meio à turbulência do tráfego, ao barulho, às vitrines, aos anúncios, gerava-se uma nova intensidade de estímulos. É o que as cenas impressionistas de Manet e outros mestres inauguram: o observador clássico dava lugar ao "sujeito atento instável", competente tanto para se apresentar como consumidor quanto como agente na síntese diversificada de "efeitos de realidade". Nas imagens do impressionismo – não por acaso o movimento inaugural do que viria a ser identificado nas décadas e no século seguinte como “modernismo” – há sempre os olhares que nunca se cruzam e que não raro observam o vazio extra-quadro, figurados em momentos de absorção mental e alheamento em meio a cenas familiares.







Um rosto na multidão: fotograma extraído de
um dos filmes curtos dos irmãos Lumière é a
ilustração da capa na edição nacional do livro de
Charney e Schwartz. Abaixo, cartaz original
criado em 1927 por Boris Bilinsky para o filme
Metropolis, de Fritz Lang. Também abaixo, os
primórdios longínquos da Civilização e o corte
cinematográfico de mais de quatro milhões de
anos na sequência inicial do clássico da ficção
científica 2001, Uma Odisseia no Espaço,
filme de 1968 de Stanley Kubrick com roteiro
baseado no conto de Arthur C. Clarke,
"Sentinel of Eternity", publicado
pela primeira vez em 1951




 



As interpretações trazem à tona raciocínios marcadamente pessimistas, mas esta não é tônica da maioria dos autores, ainda que as metáforas da guerra, da destruição e da barbárie persistam em muitos argumentos. "Nós praticamente só percebemos o passado", professa Henri Bergson, citado em uma das epígrafes. "O presente puro nada mais é do que um certo avanço invisível do passado, que também vai consumindo o futuro".

O tráfego cada vez mais intenso de imagens, ou o consumo por imagens, remete o estranhamento provocado desde o século 19 pelas primeiras fotografias e pelo primeiro cinema à milenar sabedoria chinesa – uma imagem vale mais que mil palavras. Mas também revela o paradoxo de uma terrível e instável universalidade, aquela de imagens que dizem por si só e permanecem vivas no imaginário coletivo, repetidas à exaustão em todas as mídias: vide as lendárias imagens dos astronautas Neil Armstrong e Edwin Aldrin, os primeiros a pisar na Lua, ou o espetacular atentado terrorista nos Estados Unidos há 10 anos, em 11 de setembro de 2001, e sua recepção maciça e submissa por uma audiência on-line de bilhões de pessoas espalhadas pelos cinco continentes.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Pandora. In: Blog Semióticas, 10 de setembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/09/pandora.html (acessado em .../.../...).








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 Acima, o astronauta Edwin Aldrin, segundo
homem a pisar na Lua, fotografado em 20 de
julho de 1969 por Neil Armstrong, seu colega na
missão Apollo 11, da Nasa. Abaixo, a performer,
cantora, compositora, cineasta e artista multimídia
Laurie Anderson fotografada em Manhattan,
Nova York, em agosto de 2001, tendo ao fundo
as torres gêmeas do World Trade Center.

Também abaixo, anônimos na esquina de Park Row
com Beekman Street observam o ataque dos aviões e
destruição das torres, em 11 de setembro de 2001,
em fotografia de Patrick Witty; o segundo avião,
momentos antes de atingir a segunda torre, em
fotografia de Masatomo Kuriya; e uma fotografia
poética de Louis Stettner em Nova York, 1979,
intitulada Twin Towers, World Trade Center on
a foggy day with seagull (Torres Gêmeas, World
Trade Center em um dia de neblina com gaivota)





















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