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9 de fevereiro de 2013

Nadar com o Pierrô





 Os homens só se compreendem uns aos outros 
na medida em que os animam as mesmas paixões. 

––  Sthendal (1783-1842).   
 

Gaspard-Félix Tournachon (1820–1910) trabalhava em uma profissão que, antes dele, ainda não tinha sido inventada: era desenhista, caricaturista e ilustrador de jornais e revistas em tempo integral. Durante o inverno de 1854, aproveitando a popularidade que seu trabalho começava a adquirir em Paris, por conta de duas publicações que ele havia criado – a “Revue Comique” e o “Petit Journal pour Rire” – Tournachon deu um passo arriscado: decidiu abrir seu primeiro estúdio especializado em produzir fotografias. A fotografia era ainda uma grande novidade, inventada havia pouco mais de uma década, ainda restrita a poucos, pelas dificuldades técnicas e pelo alto custo do equipamento. Mas Tournachon tinha um projeto ambicioso para seu estúdio parisiense: registrar e publicar um Panthéon ilustrado reunindo uma coleção de retratos fotográficos das grandes personalidades de seu tempo. O projeto foi adiante.

Em 1854 ele abriu em Paris os salões luxuosos do Panthéon Nadar, preparados para receber em um estúdio com equipamento para produzir fotografias, à luz natural das janelas altas, muitas vezes refletida em espelhos e grandes painéis móveis. Depois do estúdio fotográfico, Gaspard-Félix Tournachon ficaria mais conhecido por seu nome artístico que primeiro foi um pseudônimo – Nadar – e seu trabalho como fotógrafo passaria à história, em lugar de destaque, entre os primeiros e maiores artistas no registro de imagens com lentes e câmeras.

Félix Nadar, como passaria a assinar seus trabalhos quando se instalou no luxuoso ateliê da Rue des Capucines, que tinha decoração luxuosa, amplas vitrines e salas de espera com fotografias emolduradas, não tornou-se somente o mais célebre retratista da história da fotografia, mas também um dos primeiros a registrar flagrantes das ruas de Paris, fotografias de imagens aéreas (feitas durante voos de balão) e fotografias dos esgotos subterrâneos e das catacumbas, além de realizar muitas outras experiências que ficariam associadas à prática profissional da fotografia, como o recurso à iluminação artificial e diversas manipulações técnicas em sua sala de revelação, por ele batizada de "laboratório". O Panthéon Nadar de Fotografias, por uma sugestão de Adrien, irmão de Gaspard-Felix, teria início com uma série, realizada no estúdio fotográfico da Rue des Capucines, retratando um personagem que vinha direto da Baixa Idade Média.









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Nadar com o Pierrô: no alto da página,
Pierrot Photographe, imagem que abre
a série sobre Pierrô realizada em 1854
por Félix Nadar (acima, em autorretrato
datado de 1954 e na célebre sequência
de autorretratos de 1865 criada para
ser exibida de forma a criar ilusões de
movimento, duas décadas antes dos
célebres estudos de movimentos em
fotografias de Eadweard Muybridges.

Abaixo, Nadar em autorretrato de 1865
imagens do ensaio sobre Pierrô.
série original e completa de fotografias
de Nadar sobre Pierrô atualmente
pertence ao acervo do Musée d'Orsay
(veja o link no final deste artigo)















A ideia original de Adrien, colocada em prática pelo irmão, era apresentar o salão fotográfico de Nadar à alta sociedade e a artistas e intelectuais através de fotos estampadas em cartões de visita. Adrien tinha assistido várias vezes a um espetáculo de variedades que foi sucesso durante muitos anos no Théatre des Funambules, apresentado pelo ator e mímico Jean-Gaspar Deburau, também conhecido por seu nome artístico Baptiste, e por seu filho Charles Deburau, que resgatava esquetes e personagens da Comedia dell'Arte. Impressionado com o espetáculo, Adrien sugeriu que Nadar fizesse um retrato de Pierrô (ou Pierrot, em francês, em variação para Pedrolino, o diminuitivo de Pedro em italiano). Nadar aprovou e Charles Deburau foi contratado em 1854, dando início à série destinada a promover o salão e também inaugurar o Panthéon Nadar de retratos fotográficos. Mas a “ajuda” do irmão acabaria custando muito caro a Nadar, como seria constatado a seguir.

Um ano depois do lançamento, os cartões de visita de Nadar com as fotografias do Pierrô eram sucesso em Paris, os negócios do salão fotográfico prosperavam e o Pantheón Nadar colecionava os primeiros retratos de grandes celebridades de seu tempo – incluindo políticos, atores, escritores, pintores, músicos, artistas em geral e homens de ciências. Charles Baudelaire, Gustav Flaubert, Eugène Delacroix, Sarah Bernhardt, Stéphane Mallarmé, Jules Verne, Alexandre Dumas, Claude Monet, Delacroix, Liszt, Rossini e muitos outros, entre eles o imperador do Brasil, Dom Pedro II, foram fotografados por Nadar, que rapidamente diversificou os negócios e a partir de 1860 também passou a fornecer nos bastidores, a seus melhores clientes, os nobres e distintos cavalheiros da época, a novidade de um fetiche dos mais lucrativos: cartões com fotografias de cenas eróticas e de nudez, uma variação dos "cartões de visita fotográficos" patenteados em 1854 por outro pioneiro da fotografia, André-Adolphe-Eugène Disdéri (1809-1894).










Foi quando um problema dos mais imprevistos surpreendeu Nadar: seu irmão Adrien inscreveu, sem que ele soubesse, a série de fotografias sobre Pierrô na Exposição Universal de 1855. A série acabou recebendo o grande prêmio da exposição, mas o premiado foi Adrien e não Nadar. Foi o início de um processo tumultuado que marcou época, com muitas idas e vindas e reviravoltas na Justiça, até que Nadar conseguiu finalmente ganhar a causa em 1857. Adrien, que chegou a abrir em 1856 um estúdio concorrente com o nome do irmão, seria proibido de usar o nome Nadar. Um escândalo. Mas um escândalo que ajudou a promover o trabalho de Nadar e a popularizar cada vez mais seus negócios com a fotografia.



Commedia dell'Arte



Pierrô, Arlequim e Colombina vêm de antes do século 16, com origem em Veneza e outras cidades de países da Europa banhados pelo Mediterrâneo. As origens se perdem no tempo, mas o registro documental mais remoto desta história vem do ano de 1513, nas cidades da Itália, quando os três personagens ganharam destaque em esquetes de criação coletiva de grupos de teatro populares, apresentados pelas ruas e praças públicas. Com o passar do tempo se tornaria um estilo, conhecido como Commedia dell'Arte, também identificada por algumas fontes como Commedia all'Improviso ou Commedia a Soggetto (comédia por assunto), com seus tipos fixos e improvisos de humor escrachado, burlesco, com os comediantes interagindo livremente com a plateia, em oposição à Commedia Erudita, mais recatada e apresentada em latim, já naquela época uma língua inacessível à maioria.











Há séculos, Pierrô e sua trupe levavam gargalhadas às multidões reunidas nas praças e nos circos populares, enquanto as tramas da Commedia Erudita, com pompa e circunstância, eram encenadas nos palcos de teatro e palácios para as seletas plateias da nobreza e da aristocracia. Não é por acaso que na origem, na Baixa Idade Média, Pierrô, Colombina e Arlequim fossem serviçais envolvidos em sátiras e quiproquós de humor sobre a vida dos patrões. Colombina era invariavelmente empregada de alguma dama da Corte, enquanto Arlequim era o empregado esperto, ágil e malandro, que movimentava as ações e a intriga do espetáculo, e Pierrô encarnava o simplório, o bobo que fazia a plateia rir com suas brincadeiras atrapalhadas.

Pierrô, ingênuo e sonhador, vítima preferida das piadas do cínico e astuto Arlequim e de todos os outros personagens em cena, descobre que está perdidamente apaixonado por Colombina, a moça muito bela e simples, muito prendada, que sabe cantar e dançar, inteligente e sempre irônica, mas assim como Pierrô, Colombina também ingênua e sonhadora. O drama começa quando Pierrô decide se declarar à sua musa Colombina, mas logo vem a decepção porque ela também está apaixonada: pelo espertalhão Arlequim. Na tradição do folclore francês, Pierrô é o protagonista da canção "Au Clair de la Lune".









O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), expoente da Semiótica, das Ciências Sociais e da Teoria da Literatura, em seus estudos sobre a cultura popular e o realismo grotesco na Idade Média e no Renascimento, situa as tramas de Pierrô e demais personagens da Commedia dell'Arte na origem de uma cultura ancestral e universal de humor popular. Em "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais" (Editora Hucitec, 2008), Bakhtin destaca que provavelmente tudo teve origem na presença determinante do elemento cômico em festas e apresentações em praça pública, em oposição ao tom sério e oficial dos rituais e das cerimônias da Igreja e do Estado, na antiga Grécia, na Turquia e nos reinos da Ásia Menor na Antiguidade, passando depois à Roma de César e aos mais distantes povoados nos feudos na Idade Média.

O drama de Pierrô sobreviveu e permaneceu em variações de sucessos populares nos vilarejos da Itália e em outros países da Europa durante séculos, em pantomimas itinerantes com atores ou em teatro de marionetes, mas estava mais próximo da tradição folclórica quando foi resgatado, estilizado e levado aos palcos de Paris em montagens produzidas e encenadas por Baptiste, na verdade Jean-Gaspar Deburau (1796-1846), artista que se tornaria referência na história da mímica, da pantomima e das artes cênicas, pai do também ator Charles Deburau, que aparece como Pierrô nas fotografias do estúdio de Nadar.










 Da Europa para o carnaval tropical



O espetáculo dos Deburau, pai e filho, terminou por firmar algumas tradições na caracterização dos personagens saídos da Comedia dell'Arte: Pierrô com roupas largas e brancas, porque é feita de sacos de farinha, rosto pintado de branco e marcações em preto destacando olhos e boca. A Colombina (do italiano "colombina", "pombinha") ressurge cantando e dançando com forte maquiagem nos olhos, nas bochechas e na boca vermelha, com roupa em preto e branco, pivô da intriga amorosa que tem de um lado o Arlequim, apresentado como um espertalhão preguiçoso, bufão e piadista, com roupa feita de losangos coloridos e fundo preto, feliz e sorridente, em contraponto ao tímido e apaixonado Pierrô, que traz uma lágrima desenhada abaixo dos olhos e raramente sorri.

Dos palcos de Paris para os quatro cantos do planeta: depois do sucesso do espetáculo dos Deburau e dos cartões de visita do estúdio fotográfico de Nadar, fantasias de Pierrô, assim como de Arlequim e Colombina, voltaram à moda nas festas populares e nos bailes de carnaval em Paris e outras capitais no século 19. Em pouco tempo, cruzaram o Atlântico e chegaram no final do século aos salões da Corte Imperial no Rio de Janeiro. A partir daí, nas primeiras décadas do século 20, fantasias de Pierrô, Colombina e Arlequim começam a marcar presença nos desfiles populares pelas ruas e nos bailes carnavalescos da alta sociedade, como destacam Eneida de Moraes no clássico "História do Carnaval Carioca" (Editora Civilização Brasileira, 1958) e estudos mais recentes publicados por Hiram Araújo ("Carnaval: seis milênios de história", Editora Gryphus, 2003) e por Felipe Ferreira em "Inventando carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século 19 e outras questões carnavalescas" (Editora UFRJ, 2005).










No alto, Sarah Bernhardt caracterizada
como Pierrô em fotografia de 1883 de Nadar.
Acima e abaixo, baile de carnaval em 1905
com pierrôs e colombinas em Paris, em duas
fotografias de Joseph Byron em exposição
permanente no acervo do Musée d'Orsay.

No final da página, dois desfiles do Corso
durante o Carnaval carioca: o primeiro em
fotografia anônima, datada de 1910; o segundo
em fotografia de 1919 Augusto Malta; uma
gravação que resgata a marchinha de carnaval
Pierrot Apaixonado, composição de 1935 de
Noel Rosa e Heitor dos Prazeres; e outras
cinco obras-primas da História da Arte:

1) Gilles, pintura em óleo sobre tela de 1719

de Antoine Watteau, que foi rebatizada
como Pierrot quando foi incorporada, em
1869, ao acervo do Museu do Louvre;
2) Le baiser, com o beijo de amor impossível
de Pierrô e Colombina em pintura em óleo
sobre tela de 1870 de Auguste Toulmouche;
3) Pierrot Blanc, pintura em óleo sobre tela
de 1901 de Pierre-Auguste Renoir;
4) Pierrot, pintura em óleo sobre tela de 1918
de Pablo Picasso; e 5) Carnaval de Arlequino,
pintura de 1925 da fase dadaísta de Joan Miró








.



Depois de desembarcar em terras brasileiras no final do Oitocentos, Pierrô, Colombina e Arlequim não demoram a encontrar o mundo do samba e das marchinhas do Carnaval. Entre composições de Chiquinha Gonzaga, Heitor Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e outros que marcaram época e ganharam o imaginário popular brasileiro com personagens da Commedia dell'Arte, também está o grande sucesso do carnaval de 1936, ainda hoje celebrado pelos foliões no Reinado de Momo: “Pierrot Apaixonado”, uma marchinha de Noel Rosa, composição em parceria com Heitor dos Prazeres.

Da remota Antiguidade para os festejos populares da Baixa Idade Média e daí aos palcos parisienses do Théatre des Funambules no século 19, até encontrar registro definitivo nas lentes e câmeras do Panthéon ilustrado de Félix Nadar. O triângulo amoroso mais conhecido da Commedia dell'Arte também constrói pela figura de Pierrô um daqueles paradoxos da tradição e dos rituais que a cultura representa: um personagem tão nostálgico e tão melancólico, solitário, sendo transformado em símbolo para celebrar, há tanto tempo, no mundo inteiro, a festa e a alegria do Carnaval.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Nadar com o Pierrô. In: Blog Semióticas, 9 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/nadar-com-o-pierro.html (acessado em .../.../...). 



Para visitar a série Pierrot, de Nadar, no Musée d'Orsay,  clique aqui. 



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'Pierrô Apaixonado'


Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...

A Colombina entrou num butiquim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: Pierrô, cacete, vai
Tomar sorvete com o Arlequim...

Um grande amor tem sempre um triste fim
Com o Pierrô aconteceu assim
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute com amendoim...

Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...


(Pierrô Apaixonado, composição de 1935
de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres) 









Imagem














15 de janeiro de 2013

Das Minas Gerais






As nuvens do céu azul que se agigantam sobre o horizonte do casario barroco. Os grãos do asfalto que segue serpenteando até sumir no infinito das matas e no horizonte de montanhas distantes. O espaço aberto da imensidão dos vales avistados na Serra do Cipó. Os enigmas das pinturas rupestres e, nas páginas seguintes, uma jararaca escondida, quase invisível, nas ranhuras que se abrem sobre o granito. Prosaicas garrafas de cachaça, enfileiradas no balcão, cachos e cachos de bananas, borboletas e flores, bandeirinhas coloridas, buritis.

Há também detalhes da arte feita pela gente simples, os monumentos seculares de Aleijadinho, os traços cromáticos de Manuel da Costa Athaíde e, na sequência, uma fileira de mandacarus, um estranhamento momentâneo na perspectiva provocado por um espelho transversal, que reflete a bancada respingada de tinta dos artesãos em Prados, as pessoas e os lugares, a mata cercada pelo pasto, o vaqueiro, o prosaico cavalo branco que lembra os seres mitológicos, perdido na vereda, o gado, o curso do rio, o maciço suspenso das cachoeiras em Conceição do Mato Dentro. A fotógrafa Rosa de Luca reuniu em livro uma surpreendente seleção de pontos de vista em cenários e sutilezas extraídas das tradições e do imaginário das Gerais.

São belíssimos enquadramentos coloridos que traduzem o poético e as diferenças de um certo traçado no mapa do Brasil, que desde o Setecentos vem demarcado pelo Coroa Portuguesa como Terra das Minas Geraes de Ouro, Diamantes e Pedras Preciosas. “Arte Vida Minas Gerais” (editora Alles Trade) reúne cerca de 200 imagens produzidas no intervalo de oito meses, entre muitas viagens pelos cenários e lugarejos que Rosa de Luca registra. “Meu trajeto sempre começava por Belo Horizonte”, recorda a fotógrafa, em entrevista por telefone.

















Sertões d
e Minas Gerais: no alto e acima,
João Guimarães Rosa fotografado por
Eugênio Silva para a revista O Cruzeiro,
em reportagem de Álvares da Silva que
junto com o fotógrafo acompanhou a viagem
de dez dias do escritor pelo sertão, em maio
de 1952, seguindo de Três Marias a Araçaí, na
região central de Minas Gerais, com um grupo
de boiadeiros que levava 300 bois e vacas
em um percurso de 10 fazendas e cerca de
240 quilômetros. A travessia de Rosa seguindo o
grupo, que incluía o vaqueiro Manuelzão (na quinta
foto acima), um dos integrantes da comitiva, daria
origem a diversas anotações em cadernetas que,
anos depois, seriam fundamentais para algumas
obras-primas do escritor, entre elas Corpo de Baile,
livro publicado em 1956, Tutameia, de 1967, um
grande clássico da literatura em língua portuguesa:
o romance Grande Sertão: Veredas, de 1956.

Abaixo, outra imagem de valor histórico: um grupo
anônimo de tropeiros em Itabira do Mato Dentro,
terra natal de Carlos Drummond de Andrade, em
retrato feito no começo do século 20 por
Brás Martins da Costa, um dos pioneiros
da fotografia em Minas Gerais. Também
abaixo, fotografias do Santuário do Caraça,
no município de Catas Altasoutros cenários
típicos do interior de Minas extraídos do livro
de Rosa de Luca "Arte Vida Minas Gerais"




  





Começo a entrevista comentando sobre a beleza dos cenários de Minas nas fotos e pergunto se ela conhece a história lendária e as imagens da viagem que o escritor Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro, acompanhando uma tropa de vaqueiros, em 1952. Ela diz que conhece as fotos, do também mineiro Eugenio Silva, que foram publicadas na revista "O Cruzeiro" e que sempre estão presentes nas edições dos livros de Guimarães Rosa e nas reportagens sobre a obra do escritor, mas explica que seu roteiro não teve nenhuma intenção de seguir o trajeto de Rosa pelo sertão.

"Meu roteiro era sempre assim: eu chegava de avião, entrava no carro em Belo Horizonte e buscava o destino da Estrada Real, com algumas variações no trajeto", recorda Rosa de Luca. "As belas paisagens e as cenas mais espontâneas que pediam enquadramento pela câmera são só uma parte do encanto”, destaca, descrevendo com lembranças de sons, cheiros e sabores as iguarias da culinária, as cores da natureza, as pessoas e o artesanato que encontrou pelo caminho.



Moda, Milão, Bahia, Minas



“Arte Vida Minas Gerais” é o terceiro livro de Rosa de Luca, que nasceu na Itália e está radicada há décadas no Brasil, com dedicação ao registro das paisagens mais deslumbrantes e da diversidade do brasileiro nas cidades e nos confins dos sertões, das montanhas e dos litorais. Ela conta que teve formação em Artes pelo Liceu Artístico de Salerno, na Itália, fazendo questão de destacar que o início de carreira na fotografia teve como marco importante uma exposição que ela conseguiu realizar no Brasil em 1984: “São Paulo Cromática”, realizada no Centro Cultural São Paulo.









No alto, cena rural no Sul de Minas.
Acima, vista do adro da Igreja Matriz
de Santo Antônio em Tiradentes.
Abaixo, uma seleção de portas e janelas
do casario nos cenários do barroco







 .
Depois desta primeira experiência em terras brasileiras, Rosa de Luca retornaria à Itália para trabalhar em Milão e só voltaria ao Brasil em 1990, desta vez para se dedicar à fotografia de moda. Foram diversos trabalhos, alguns deles premiados e selecionados em exposições individuais e coletivas, no Brasil, na Itália e em outros países. Até que surgiu como projeto a determinação de publicar o primeiro livro.

Foi em 2007. Elaborei um longo trabalho de pesquisa que concluí com uma sequência de 60 retratos de nomes das artes plásticas de importância na atualidade”, recorda. Adriana Varejão, Cildo Meireles, Arthur Omar e outros foram flagrados em circunstâncias de trabalho e, no livro – intitulado “Contemporâneas Artes Artistas” (Alles Trade) – todos aparecem com um pequeno perfil biográfico produzido pela historiadora do Museu de Arte Moderna (MAM), Margarida Sant'Anna.

“A ideia inicial era produzir uma série de catálogos, abordando arquitetos, designers etc”, conta. Uma viagem à Bahia, contudo, mudou os rumos do projeto e deu origem ao segundo livro, também publicado pela Alles Trade, em 2008. Rosa de Luca explica que o livro “Arte Vida Sul da Bahia” nasceu quase por acaso. “Tudo começou com uma viagem a trabalho e um passeio que fiz depois. Foi quando decidi reunir uma série de retratos sobre a região Sul da Bahia, tendo como foco principal os artistas e suas produções artesanais. É quase um roteiro de viagem pelas regiões de Belmonte, Santo André, Porto Seguro, Trancoso, Caraíva e tantos outros lugares perto do mar e da mata”, descreve, lembrando enquadramentos e situações mais incomuns que deram origem a belas imagens.



            

  
   



Os tecidos dependurados no varal sob o

sol do sertão, uma das imagens preferidas

da fotógrafa, e a Igreja de Nossa Senhora 

do Carmo em São João del Rei. Abaixo, o

adro da Igreja de Nossa Senhora das Mercês

em Ouro Preto, e um detalhe das tintas do

artesanato no lugarejo conhecido como Bichinho





       
 

O livro sobre as paisagens de Minas Gerais também nasceu de uma viagem a trabalho. “Minas é um mundo, são várias, como aquela passagem do Guimarães Rosa que todo mundo gosta de repetir. Foi difícil, tive que investir, viajar, voltar outras vezes, mas espero que o resultado possa traduzir uma pequena parte das impressões que mexeram comigo”, conta Rosa de Luca. Ela diz que prefere trabalhar sozinha, sem uma equipe de produção. Usa duas câmeras digitais – uma Nikon e uma Canon.



O inusitado e a tradição



Ela conta que, até o projeto do primeiro livro, trabalhou com filme analógico. Depois passou para a tecnologia digital pela facilidade maior para pré-editar o material: além de produzir as fotos originais, ela também assina direção de arte e o projeto gráfico de seus livros. Nas belas imagens emolduradas nas páginas de “Arte Vida Minas Gerais”, a fotógrafa registra cenas que remetem à tradição, ao barroco, à religiosidade, mas também à pedra preciosa, ao detalhe inusitado, como convém ao trabalho de qualidade na arte como no fotojornalismo mais cotidiano.









Da Serra do Cipó ao Vale do Jequitinhonha, e daí a Milho Verde, Carrancas, Catas Altas, Barão de Cocais, Bichinho, Ouro Preto, Mariana – cenários muito diferentes entre si que remetem a diversos extratos de história, coletânea extensa e preciosa de paradoxos entre metrópoles e pequenas cidades, punjança industrial e delicadeza artesanais. É como aponta o prefácio do livro: “nas cidades históricas, com as suas ruas de pedra, estão intactas, bem-guardadas, as histórias de heroísmo e brasilidade, iluminadas pelo nosso primeiro compromisso, que é, e sempre será, com a liberdade. Elas nos trazem, todo o tempo, para o início de tudo, e seus sinos nos embalam, apontando o caminho e o rumo, não importa a encruzilhada”.

O livro também traz breves textos assinados pela atriz, cineasta e escritora Bruna Lombardi, pela própria Rosa de Luca e por Margarida Sant'Anna. Bruna e Margarida participaram dos projetos anteriores da fotógrafa. A apresentação de Bruna é um poema em prosa: “Assim como as pedras preciosas escondem seu brilho dentro, Minas Gerais esconde infinitos tesouros, que vão se mostrando aos poucos a todos aqueles que a descobrem", registra, em uma das passagens.








Margarida Sant'Anna, em texto tão breve quanto didático, recorda a relação entre os cenários de Minas e os modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Em seu projeto de “descoberta do Brasil”, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e vários outros fizeram em 1924 a lendária viagem às cidades históricas de Minas, onde encontraram os encantos esquecidos da arquitetura, da pintura e da talha barroca, mas também das manifestações populares. Margarida destaca que Tarsila, anos mais tarde, registraria suas impressões de viagem:

As decorações murais de um modesto corredor de hotel, o forro das salas, feito de taquarinhas coloridas e trançadas, as pinturas das igrejas, simples e comoventes, executadas com amor e devoção por artistas anônimos; o Aleijadinho, nas suas estátuas e nas linhas geniais de sua arquitetura religiosa, tudo era motivo para as nossas exclamações admiradas”... Para os modernistas da década de 1920 e ainda hoje – aponta Margarida, com propriedade – a originalidade da cultura mineira tem seus polos de interesse no legado barroco e no patrimônio da expressão popular.








Cenários barrocos de Minas: no alto,
menina trabalha em artesanato na Associação
Cultural Sempre Viva em São Gonçalo do
Rio das Pedras. Acima, a capa do livro
Arte Vida Minas Gerais. Abaixo, duas páginas
do livro; detalhes da extração de pedraria em
garimpo de topázio na região central do Estado;
e uma visão noturna sobre o cenário
barroco de Ouro Preto






Lembranças e enquadramentos


 
Mas entre tantas belas imagens que remetem à literatura e aos sentimentos de Minas, qual ou quais as preferidas de Rosa de Luca? “Todas, com certeza”, brinca a fotógrafa, ao telefone, rindo e fazendo piada com a curiosidade sem tamanho do repórter. Depois ela reconhece que, realmente, uma ou outra imagem publicada no livro trazem com mais força à lembrança circunstâncias que ultrapassam os cenários do enquadramento.

Duas delas me comovem de modo especial, talvez por isso estão nas últimas páginas. Uma é o longo varal de roupas secando, dependuradas, no meio do sertão. Outra são os dois vaqueiros na curva da estrada de asfalto. Mas cada foto pode ter seu encanto. É como o trabalho dos artesãos em lugares como Bichinho ou Pitangueiras, com a beleza tão diferente em cada uma daquelas peças, que comove e encanta”, explica, para completar, depois de uma breve pausa em pensamento. “Basta olhar com atenção para descobrir a qualidade única do que, na verdade, sempre esteve ali”.
 


  
           












Depois desta entrevista, que publiquei em um jornal de Belo Horizonte em 2010, Rosa de Luca lançou um novo livro no Bienal de São Paulo, em 2012, retomando a trajetória iniciada com os belos registros fotográficos sobre o Sul da Bahia e sobre Minas Gerais. “Brasil Arte Vida” (Alles Trade) também retrata com maestria a ocupação humana e paisagens deslumbrantes, captadas no Parque Nacional da Serra do Bodoquena (MS), Lagoa Bonita (MA), Rio Tapajós (PA), Alta Floresta (MT), Pantanal (MT) e Rio Amazonas.

Tanto nos projetos anteriores, como no atual “Brasil Arte Vida”, as imagens mantêm um forte apelo cromático, com a habilidade incomum de Rosa de Luca para fundir o mais poético e o trivial, cotidiano. Pós-produção, manipulação em sistema, photoshop? Sim, há páginas reservadas a sobreposições, justaposições, profundidade em macro. Mas talvez sejam os detalhes que menos interessam, porque a maior parte das fotografias é resultado de captação e transposição direta. Em outras palavras, uma lição para aprender e um deleite para os sentidos, definitivamente saborosos.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Das Minas Gerais. In: Blog Semióticas, 15 de janeiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/01/das-minas-gerais.html (acessado em .../.../…).


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Acima, arte gráfica de Rosa de Luca,
a partir de fotografias de detalhes do casario
barroco de Minas Gerais, e o pequeno
índio no telhado, uma das imagens do novo
livro da fotógrafa, Brasil Arte Vida




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