Mostrando postagens com marcador félix nadar. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador félix nadar. Mostrar todas as postagens

9 de fevereiro de 2013

Nadar com o Pierrô





 Os homens só se compreendem uns aos outros 
na medida em que os animam as mesmas paixões. 

––  Sthendal (1783-1842).   
 

Gaspard-Félix Tournachon (1820–1910) trabalhava em uma profissão que, antes dele, ainda não tinha sido inventada: era desenhista, caricaturista e ilustrador de jornais e revistas em tempo integral. Durante o inverno de 1854, aproveitando a popularidade que seu trabalho começava a adquirir em Paris, por conta de duas publicações que ele havia criado – a “Revue Comique” e o “Petit Journal pour Rire” – Tournachon deu um passo arriscado: decidiu abrir seu primeiro estúdio especializado em produzir fotografias. A fotografia era ainda uma grande novidade, inventada havia pouco mais de uma década, ainda restrita a poucos, pelas dificuldades técnicas e pelo alto custo do equipamento. Mas Tournachon tinha um projeto ambicioso para seu estúdio parisiense: registrar e publicar um Panthéon ilustrado reunindo uma coleção de retratos fotográficos das grandes personalidades de seu tempo. O projeto foi adiante.

Em 1854 ele abriu em Paris os salões luxuosos do Panthéon Nadar, preparados para receber em um estúdio com equipamento para produzir fotografias, à luz natural das janelas altas, muitas vezes refletida em espelhos e grandes painéis móveis. Depois do estúdio fotográfico, Gaspard-Félix Tournachon ficaria mais conhecido por seu nome artístico que primeiro foi um pseudônimo – Nadar – e seu trabalho como fotógrafo passaria à história, em lugar de destaque, entre os primeiros e maiores artistas no registro de imagens com lentes e câmeras.

Félix Nadar, como passaria a assinar seus trabalhos quando se instalou no luxuoso ateliê da Rue des Capucines, que tinha decoração luxuosa, amplas vitrines e salas de espera com fotografias emolduradas, não tornou-se somente o mais célebre retratista da história da fotografia, mas também um dos primeiros a registrar flagrantes das ruas de Paris, fotografias de imagens aéreas (feitas durante voos de balão) e fotografias dos esgotos subterrâneos e das catacumbas, além de realizar muitas outras experiências que ficariam associadas à prática profissional da fotografia, como o recurso à iluminação artificial e diversas manipulações técnicas em sua sala de revelação, por ele batizada de "laboratório". O Panthéon Nadar de Fotografias, por uma sugestão de Adrien, irmão de Gaspard-Felix, teria início com uma série, realizada no estúdio fotográfico da Rue des Capucines, retratando um personagem que vinha direto da Baixa Idade Média.









Resultado de imagem para felix nadar portrait gig





Nadar com o Pierrô: no alto da página,
Pierrot Photographe, imagem que abre
a série sobre Pierrô realizada em 1854
por Félix Nadar (acima, em autorretrato
datado de 1954 e na célebre sequência
de autorretratos de 1865 criada para
ser exibida de forma a criar ilusões de
movimento, duas décadas antes dos
célebres estudos de movimentos em
fotografias de Eadweard Muybridges.

Abaixo, Nadar em autorretrato de 1865
imagens do ensaio sobre Pierrô.
série original e completa de fotografias
de Nadar sobre Pierrô atualmente
pertence ao acervo do Musée d'Orsay
(veja o link no final deste artigo)















A ideia original de Adrien, colocada em prática pelo irmão, era apresentar o salão fotográfico de Nadar à alta sociedade e a artistas e intelectuais através de fotos estampadas em cartões de visita. Adrien tinha assistido várias vezes a um espetáculo de variedades que foi sucesso durante muitos anos no Théatre des Funambules, apresentado pelo ator e mímico Jean-Gaspar Deburau, também conhecido por seu nome artístico Baptiste, e por seu filho Charles Deburau, que resgatava esquetes e personagens da Comedia dell'Arte. Impressionado com o espetáculo, Adrien sugeriu que Nadar fizesse um retrato de Pierrô (ou Pierrot, em francês, em variação para Pedrolino, o diminuitivo de Pedro em italiano). Nadar aprovou e Charles Deburau foi contratado em 1854, dando início à série destinada a promover o salão e também inaugurar o Panthéon Nadar de retratos fotográficos. Mas a “ajuda” do irmão acabaria custando muito caro a Nadar, como seria constatado a seguir.

Um ano depois do lançamento, os cartões de visita de Nadar com as fotografias do Pierrô eram sucesso em Paris, os negócios do salão fotográfico prosperavam e o Pantheón Nadar colecionava os primeiros retratos de grandes celebridades de seu tempo – incluindo políticos, atores, escritores, pintores, músicos, artistas em geral e homens de ciências. Charles Baudelaire, Gustav Flaubert, Eugène Delacroix, Sarah Bernhardt, Stéphane Mallarmé, Jules Verne, Alexandre Dumas, Claude Monet, Delacroix, Liszt, Rossini e muitos outros, entre eles o imperador do Brasil, Dom Pedro II, foram fotografados por Nadar, que rapidamente diversificou os negócios e a partir de 1860 também passou a fornecer nos bastidores, a seus melhores clientes, os nobres e distintos cavalheiros da época, a novidade de um fetiche dos mais lucrativos: cartões com fotografias de cenas eróticas e de nudez, uma variação dos "cartões de visita fotográficos" patenteados em 1854 por outro pioneiro da fotografia, André-Adolphe-Eugène Disdéri (1809-1894).










Foi quando um problema dos mais imprevistos surpreendeu Nadar: seu irmão Adrien inscreveu, sem que ele soubesse, a série de fotografias sobre Pierrô na Exposição Universal de 1855. A série acabou recebendo o grande prêmio da exposição, mas o premiado foi Adrien e não Nadar. Foi o início de um processo tumultuado que marcou época, com muitas idas e vindas e reviravoltas na Justiça, até que Nadar conseguiu finalmente ganhar a causa em 1857. Adrien, que chegou a abrir em 1856 um estúdio concorrente com o nome do irmão, seria proibido de usar o nome Nadar. Um escândalo. Mas um escândalo que ajudou a promover o trabalho de Nadar e a popularizar cada vez mais seus negócios com a fotografia.



Commedia dell'Arte



Pierrô, Arlequim e Colombina vêm de antes do século 16, com origem em Veneza e outras cidades de países da Europa banhados pelo Mediterrâneo. As origens se perdem no tempo, mas o registro documental mais remoto desta história vem do ano de 1513, nas cidades da Itália, quando os três personagens ganharam destaque em esquetes de criação coletiva de grupos de teatro populares, apresentados pelas ruas e praças públicas. Com o passar do tempo se tornaria um estilo, conhecido como Commedia dell'Arte, também identificada por algumas fontes como Commedia all'Improviso ou Commedia a Soggetto (comédia por assunto), com seus tipos fixos e improvisos de humor escrachado, burlesco, com os comediantes interagindo livremente com a plateia, em oposição à Commedia Erudita, mais recatada e apresentada em latim, já naquela época uma língua inacessível à maioria.











Há séculos, Pierrô e sua trupe levavam gargalhadas às multidões reunidas nas praças e nos circos populares, enquanto as tramas da Commedia Erudita, com pompa e circunstância, eram encenadas nos palcos de teatro e palácios para as seletas plateias da nobreza e da aristocracia. Não é por acaso que na origem, na Baixa Idade Média, Pierrô, Colombina e Arlequim fossem serviçais envolvidos em sátiras e quiproquós de humor sobre a vida dos patrões. Colombina era invariavelmente empregada de alguma dama da Corte, enquanto Arlequim era o empregado esperto, ágil e malandro, que movimentava as ações e a intriga do espetáculo, e Pierrô encarnava o simplório, o bobo que fazia a plateia rir com suas brincadeiras atrapalhadas.

Pierrô, ingênuo e sonhador, vítima preferida das piadas do cínico e astuto Arlequim e de todos os outros personagens em cena, descobre que está perdidamente apaixonado por Colombina, a moça muito bela e simples, muito prendada, que sabe cantar e dançar, inteligente e sempre irônica, mas assim como Pierrô, Colombina também ingênua e sonhadora. O drama começa quando Pierrô decide se declarar à sua musa Colombina, mas logo vem a decepção porque ela também está apaixonada: pelo espertalhão Arlequim. Na tradição do folclore francês, Pierrô é o protagonista da canção "Au Clair de la Lune".









O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), expoente da Semiótica, das Ciências Sociais e da Teoria da Literatura, em seus estudos sobre a cultura popular e o realismo grotesco na Idade Média e no Renascimento, situa as tramas de Pierrô e demais personagens da Commedia dell'Arte na origem de uma cultura ancestral e universal de humor popular. Em "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais" (Editora Hucitec, 2008), Bakhtin destaca que provavelmente tudo teve origem na presença determinante do elemento cômico em festas e apresentações em praça pública, em oposição ao tom sério e oficial dos rituais e das cerimônias da Igreja e do Estado, na antiga Grécia, na Turquia e nos reinos da Ásia Menor na Antiguidade, passando depois à Roma de César e aos mais distantes povoados nos feudos na Idade Média.

O drama de Pierrô sobreviveu e permaneceu em variações de sucessos populares nos vilarejos da Itália e em outros países da Europa durante séculos, em pantomimas itinerantes com atores ou em teatro de marionetes, mas estava mais próximo da tradição folclórica quando foi resgatado, estilizado e levado aos palcos de Paris em montagens produzidas e encenadas por Baptiste, na verdade Jean-Gaspar Deburau (1796-1846), artista que se tornaria referência na história da mímica, da pantomima e das artes cênicas, pai do também ator Charles Deburau, que aparece como Pierrô nas fotografias do estúdio de Nadar.










 Da Europa para o carnaval tropical



O espetáculo dos Deburau, pai e filho, terminou por firmar algumas tradições na caracterização dos personagens saídos da Comedia dell'Arte: Pierrô com roupas largas e brancas, porque é feita de sacos de farinha, rosto pintado de branco e marcações em preto destacando olhos e boca. A Colombina (do italiano "colombina", "pombinha") ressurge cantando e dançando com forte maquiagem nos olhos, nas bochechas e na boca vermelha, com roupa em preto e branco, pivô da intriga amorosa que tem de um lado o Arlequim, apresentado como um espertalhão preguiçoso, bufão e piadista, com roupa feita de losangos coloridos e fundo preto, feliz e sorridente, em contraponto ao tímido e apaixonado Pierrô, que traz uma lágrima desenhada abaixo dos olhos e raramente sorri.

Dos palcos de Paris para os quatro cantos do planeta: depois do sucesso do espetáculo dos Deburau e dos cartões de visita do estúdio fotográfico de Nadar, fantasias de Pierrô, assim como de Arlequim e Colombina, voltaram à moda nas festas populares e nos bailes de carnaval em Paris e outras capitais no século 19. Em pouco tempo, cruzaram o Atlântico e chegaram no final do século aos salões da Corte Imperial no Rio de Janeiro. A partir daí, nas primeiras décadas do século 20, fantasias de Pierrô, Colombina e Arlequim começam a marcar presença nos desfiles populares pelas ruas e nos bailes carnavalescos da alta sociedade, como destacam Eneida de Moraes no clássico "História do Carnaval Carioca" (Editora Civilização Brasileira, 1958) e estudos mais recentes publicados por Hiram Araújo ("Carnaval: seis milênios de história", Editora Gryphus, 2003) e por Felipe Ferreira em "Inventando carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século 19 e outras questões carnavalescas" (Editora UFRJ, 2005).










No alto, Sarah Bernhardt caracterizada
como Pierrô em fotografia de 1883 de Nadar.
Acima e abaixo, baile de carnaval em 1905
com pierrôs e colombinas em Paris, em duas
fotografias de Joseph Byron em exposição
permanente no acervo do Musée d'Orsay.

No final da página, dois desfiles do Corso
durante o Carnaval carioca: o primeiro em
fotografia anônima, datada de 1910; o segundo
em fotografia de 1919 Augusto Malta; uma
gravação que resgata a marchinha de carnaval
Pierrot Apaixonado, composição de 1935 de
Noel Rosa e Heitor dos Prazeres; e outras
cinco obras-primas da História da Arte:

1) Gilles, pintura em óleo sobre tela de 1719

de Antoine Watteau, que foi rebatizada
como Pierrot quando foi incorporada, em
1869, ao acervo do Museu do Louvre;
2) Le baiser, com o beijo de amor impossível
de Pierrô e Colombina em pintura em óleo
sobre tela de 1870 de Auguste Toulmouche;
3) Pierrot Blanc, pintura em óleo sobre tela
de 1901 de Pierre-Auguste Renoir;
4) Pierrot, pintura em óleo sobre tela de 1918
de Pablo Picasso; e 5) Carnaval de Arlequino,
pintura de 1925 da fase dadaísta de Joan Miró








.



Depois de desembarcar em terras brasileiras no final do Oitocentos, Pierrô, Colombina e Arlequim não demoram a encontrar o mundo do samba e das marchinhas do Carnaval. Entre composições de Chiquinha Gonzaga, Heitor Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e outros que marcaram época e ganharam o imaginário popular brasileiro com personagens da Commedia dell'Arte, também está o grande sucesso do carnaval de 1936, ainda hoje celebrado pelos foliões no Reinado de Momo: “Pierrot Apaixonado”, uma marchinha de Noel Rosa, composição em parceria com Heitor dos Prazeres.

Da remota Antiguidade para os festejos populares da Baixa Idade Média e daí aos palcos parisienses do Théatre des Funambules no século 19, até encontrar registro definitivo nas lentes e câmeras do Panthéon ilustrado de Félix Nadar. O triângulo amoroso mais conhecido da Commedia dell'Arte também constrói pela figura de Pierrô um daqueles paradoxos da tradição e dos rituais que a cultura representa: um personagem tão nostálgico e tão melancólico, solitário, sendo transformado em símbolo para celebrar, há tanto tempo, no mundo inteiro, a festa e a alegria do Carnaval.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Nadar com o Pierrô. In: Blog Semióticas, 9 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/nadar-com-o-pierro.html (acessado em .../.../...). 



Para visitar a série Pierrot, de Nadar, no Musée d'Orsay,  clique aqui. 



Para comprar o livro Uma História do Samba,  clique aqui.












'Pierrô Apaixonado'


Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...

A Colombina entrou num butiquim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: Pierrô, cacete, vai
Tomar sorvete com o Arlequim...

Um grande amor tem sempre um triste fim
Com o Pierrô aconteceu assim
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute com amendoim...

Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...


(Pierrô Apaixonado, composição de 1935
de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres) 









Imagem














13 de abril de 2012

Nu perante a câmera








E ambos estavam nus, o homem e a  
sua mulher, e não sentiam vergonha.  

Bíblia Sagrada, Gênesis, 2:25.   



A atitude de nudez diante das câmeras teve início quase dois séculos antes da popularização da internet e das webcams e muito antes da indústria da pornografia transformar o corpo e o sexo em mercadoria para consumo compulsivo, como destaca entre trocadilhos saborosos o breve texto que apresenta “Naked before the Camera”, exposição inédita que vai permanecer em cartaz em Nova York até 9 de setembro no The Metropolitan Museum of Art. São imagens belíssimas, todas em preto e branco e em matizes de sépia, que impressionam e apresentam um resumo da história da fotografia.

A exposição, que esta semana gerou protestos na imprensa dos EUA e manifestações em frente ao Metropolitan por chocar os juízos mais conservadores, reúne 60 obras de nomes célebres e também de autores anônimos que abarcam desde as primeiras experiências de registro das imagens fotográficas, nas primeiras décadas do século 19, até experiências mais recentes como “Double Index”, intervenções de Robert Flynt com impressão sobre papel, datadas de 2009.














Nu perante a câmera: uma seleção de fotografias
reunidas na exposição Naked before the Camera:
no alto, "Two Standing Female Nudes" (1850), de
Félix-Jacques Antoine Moulin. Acima, 16 quadros
do "Album d'Études-Poses" (1880), de Louis Igout,
e uma sequência de "Boys Playing Leap Frog", um
ensaio fotográfico de 1887 de Eadweard Muybridge.

Abaixo, fotografia da série “Nude, Campden Hill,
London”, uma curiosa versão de 1949 de Bill Brandt
para as cenas descritas por Lewis Carroll no livro
Alice no País das Maravilhas, seguida de extratos
de "Double Index", ensaio fotográfico de 2009 de
Robert Flynt; "Folded Up" (1995), do fotógrafo
Jennifer Johnson, e “Teenage Lust” (1973),
um dos ensaios polêmicos do fotógrafo
e cineasta Larry Clark












Observando a cronologia das obras em exposição, é interessante constatar que há muito mais semelhanças que diferenças entre os primeiros fotógrafos e os contemporâneos. Um olhar mais atento pode perceber, inclusive, que as imagens mais recentes – como é o caso de Robert Flynt e do registro de Jennifer Johnson intitulado “Folded Up”, de 1995 – curiosamente lembram muito, nos enquadramentos, nas texturas e nos tons esmaecidos, os trabalhos de pioneiros da fotografia também presentes na mostra, como os franceses Felix Nadar (1820-1910) e Julien Vallou de Villeneuve (1795–1866).

Entre os fotógrafos contemporâneos, também há trabalhos de Robert Mapplethorpe, Diane Arbus, Garry Winogrand e Larry Clark, entre outros. De Larry Clark, também cineasta, a curadoria incluiu na mostra uma imagem sem título que integra “Teenage Lust”, série que ele realizou entre 1972-1973. A imagem de Clark, que está entre as mais recentes apresentadas na mostra, antecipava as cenas fortes e a temática de seu filme mais polêmico, “Kids”, de 1995, que também provocou a ira dos moralistas ao abordar sem subterfúgios o avanço da aids e a sexualidade de adolescentes e pré-adolescentes em Nova York. 











"Desde o início da história da arte, retratar o corpo humano tem sido um dos maiores desafios dos artistas e resultou em realizações supremas, como pode ser comprovado nas galerias de estatuária grega e romana ou nas pinturas de mestres renascentistas”, aponta o diretor do museu nova-iorquino, Thomas Campbell, no texto que apresenta a exposição. As 60 fotografias reunidas vêm do extenso acervo do próprio museu e de universidades norte-americanas, onde integram coleções de antropologia e de história da fotografia.



Daguerreótipos e outros suportes



Há desde os antigos daguerreótipos em vidro a ampliações em suportes diversos, com cenas que remetem a aspectos que vão da história à sociologia, à etnologia e até à mitologia. Mas o que se destaca em primeiro plano na exposição é a mesma questão que as representações do nu sempre provocaram na maior parte das culturas: discussões apaixonadas sobre a moral, a censura, o pecado e a sexualidade. Acompanhando a cronologia das imagens, desde o século 19, também sobressaem questões de identidade e as alterações que cada época impõe aos padrões da arte e aos cânones de beleza.











Nudez no Oitocentos: no alto, "Standing Female Nude"
(1860), de Félix Nadar; ao centro, "Standing Male Nude"
(1855), atribuído a Charles Alphonse Marlé. Acima,
"Male Musculature Study" (1890), de Albert Londe.
Abaixo, "Young male nude seated on leopard skin",
fotografia de 1890 do italiano Guglielmo Plüshow









A maior parte das imagens pode ser descrita como “estudos sobre o corpo humano” – uma vez que algumas lembram as investigações científicas promovidas em laboratórios de anatomia ou os desenhos de observação sobre o corpo humano que há séculos são exercitados nas escolas de artes plásticas. Desde as primeiras experiências, na década de 1820, a produção de fotografias provou ser um substituto barato e fácil para o modelo vivo e um convite inquestionável às fantasias de sugestões eróticas.

Muitas das fotos mais antigas trazem a indicação de que foram produzidas para facilitar o trabalho dos pintores, mas com o passar do tempo se transformaram em obras de arte por si mesmas. O texto de apresentação de Thomas Campbell destaca que algumas das imagens da exposição têm uma semelhança tão grande com pinturas conhecidas que, provavelmente, serviram mesmo de modelos para artistas célebres. 









No alto, "Reclining Female Nude" (1853),
fotografia de Julien Vallou de Villeneuve.
Acima, "Femme avec un Parrot" (1866),
pintura de Gustave Courbet. Abaixo,
modelo nu na fotografia de Brassaï,
"L'Académie Julian", de 1931.

Também abaixo, "Turkish Woman" (1881), 
de Charles-Albert Arnoux Bertall; e "Female
Nude" (1853), de Julien Vallou de Villeneuve








Entre as fotografias em exposição no Metropolitan, há exemplos facilmente perceptíveis de que a fotografia serviu mesmo de base para o traço figurativo de gravuras e pinturas. Um dos casos mais evidentes de “apropriação” é a fotografia intitulada “Nu feminino reclinado” (1853), de Julien de Villeneuve, que “inspirou” um quadro célebre: Mulher com um papagaio” (1866), do pintor realista francês Gustave Courbet (1819-1877).

Entre tantas belas imagens, impressionam o erotismo e a sensualidade explícita de fotografias de meados de século 19 do francês Charles-Albert Arnoux Bertall (1820–1882), além de Nadar, Villeneuve, Moulin, Marlé e Thomas Eakins, entre vários outros, que somente sobreviveram aos rígidos códigos de censura da época porque foram adquiridas por colecionadores – como se vê em “Turkish Woman”, série que Bertall realizou em 1881, durante uma viagem ao Império Otomano, ou das jovens prostitutas francesas e mulheres nativas da Indonésia retratadas por volta de 1850 pelo também francês Félix-Jacques-Antoine Moulin (1800–1875).









Propostas libertárias


A exposição também reúne imagens do final do século 19 e início do século 20 produzidas com fins medicinais e para analisar distorções de anatomia, mas que também unem o erotismo e a sensualidade. Mais tarde, no decorrer do século 20, artistas como o húngaro George Brassai (1899-1984), o americano Man Ray (1890-1976) e o alemão Hans Bellmer (1902-1975) utilizam o nu como propostas libertárias na arte, investindo na exposição do corpo humano como veículo perfeito para jogos visuais e para distorções com objetivos estéticos de experimentação e de prospecção psicossexual.

As imagens reunidas na exposição do Metropolitan, todas disponíveis no portal do museu na internet, também podem ser admiradas como uma trajetória dos nomes mais célebres entre os pioneiros na história universal da fotografia, em que rivalizam uma maioria de franceses, seguidos por norte-americanos – entre eles o destaque de pioneiros como Eadweard Muybridge (1830–1904) – e os húngaros como André Kertész (1894–1944) e o citado Brassai, entre outros. 











Nus fotografados em fragmentos: no alto,
 "Arm" (1935), de Man Ray; ao centro,
"Nude" (1931), de Brassaï. Acima,
"Nude" (1928), de Germaine Krull.
Abaixo, nu feminino em registro de
um fotógrafo anônimo datado de 1856







Entre os principais representantes da fotografia nos movimentos de vanguarda que agitaram Paris e outras capitais de países da Europa nas primeiras décadas do século 20, além de Man Ray e Kertész há ainda uma artista e importante ativista política que também viveu durante alguns anos no Brasil: a francesa de ascendência polonesa Germaine Krull (1897–1985), que também transformou a nudez do corpo humano em veículo para a manipulação surreal da beleza.

Depois da Segunda Guerra, como apontam as imagens ousadas de Edward Weston ou Emmet Gowin – que realizam autorretratos para comunicar uma conexão íntima com seus corpos – o uso da fotografia, e mais especificamente a nudez, começa a surgir como instrumentos de denúncia contra o preconceito, a segregação ou os extremos: dos aspectos mais naturais aos mais doentios do comportamento psicossexual.













No alto, "Distortion # 6" (1932), fotografia experimental
de André Kertész; no centro, "Nude on Sand, Ocean"
(1936), de Edward Weston, e "A Naked Man being
Woman, N.Y.C" (1968), de Diane Arbus; acima,
"Edith, Danville, Virginia" (1967), de Emmet Gowin.
Abaixo, nu feminino reclinado no divã em
fotografia de 1856 de Gustave Le Gray








A partir da década de 1960, os registros apresentados na exposição avançam em direção à política, incluindo fotografias que registram protestos em praça pública ou a reclusão de ambientes distintos, seja em cenas de prostíbulos, seja em casais e famílias inteiras em acampamentos e praias de nudismo – como se vê em duas fotos da norte-americana Diane Arbus, "Homem aposentado e sua mulher em casa um amanhã em um acampamento nudista" (1963) e "Um homem nu sendo uma mulher, N.E.C" (1968).

A revolução sexual e seu contraponto, estabelecido com a crise gerada pelo avanço da aids nas últimas décadas do século 20, também são perceptíveis na cronologia que a exposição enumera. Nas imagens mais recentes, de Mapplethorpe, Diane Arbus e Larry Clark, é quando a nudez e sua representação assumem novos significados, como provocações ou declarações de liberdade frente às restrições sociais. E também como afirmações de identidade individual, de sexualidade e de gênero fora dos padrões de uma certa normalidade.





   
 




No alto, "Nude N° 57" (1950), fotografia de
Irving Penn, seguida por "Patti Smith" (1976),
de Robert Mapplethorpe, e "Two Man in
Silhouett" (1987), de Mark Morrisroe.

Abaixo, duas fotografias de 1981 também de
Mark Morrisroe: "Self portrait" e "Self portrait
standing in the shower". Também abaixo,
"Cavorting by the Pool at Garsington",
fotografia de 1916 de Lady Ottoline Anne
Cavendish-Bentinck Morrell; e o autorretrato
"Thomas Eakins & John Laurie Wallace on
a Beach" (1883), de Thomas Eakins










Ao apresentar um resumo da história da fotografia exclusivamente através das representações da nudez, “Naked before the Camera” provoca a sensibilidade e o senso crítico do público para além dos domínios da arte e das fantasias mais ou menos explícitas de sedução erotismo. Cada uma das imagens em exposição – mesmo aquelas que sob a distinção de "estudo de artista" enganaram os censores para dar início ao que se tornaria nas décadas e no século seguintes no próspero comércio da pornografia – tem um apelo tão forte que pode levar o espectador a examinar tanto as motivações como os significados sobre o que há de mais humano e que deveria ser o estado mais natural em nossa civilização: a nudez de nossos próprios corpos.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Nu perante a câmera. In: Blog Semióticas, 13 de abril de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/04/nu-perante-camera.html (acessado em .../.../...).


Para visitar a exposição do Metropolitan Museum of Art, clique aqui. 


Para comprar o livro ilustrado "Mulheres, Mitos e Deusas",  clique aqui.







Para comprar o livro 1000 Nudes (Editora Taschen),  clique aqui.













Outras páginas de Semióticas