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20 de fevereiro de 2016

Umberto Eco e Mafalda







A condição mínima para uma interpretação é substituir um 
signo por outro signo que, sob certo ponto de vista, possa ser 
julgado equivalente – sejam eles pertencentes a um mesmo 
sistema semiótico ou a sistemas semióticos diferentes. 

– Umberto Eco, “O Código do Mundo”      
(Il Codice del Mondo, 1987).        

 

O italiano Umberto Eco (1932-2016), mestre da Semiótica e um dos principais pensadores e escritores de nossa época, morreu na noite de ontem em sua casa em Milão, aos 84 anos. Eu e seus milhares de leitores e admiradores, talvez milhões, espalhados pelos continentes do planeta, sofremos com a notícia, como se perdêssemos alguém muito próximo, um parente, um professor querido. Agora pela manhã recebo o pedido para escrever um artigo sobre ele para um jornal de Belo Horizonte, com a pauta destacando que o artigo deve centrar o comentário em algum aspecto mais popular sobre a obra e não sobre a morte do autor, porque será publicado na edição de amanhã junto com obituários das agências de notícias. Também respondi há pouco a uma entrevista por telefone, para o jornal "Correio Braziliense", porque por coincidência o mesmo repórter Rodrigo Craveiro havia me entrevistado em 2015 depois que o mestre Umberto Eco passou a me seguir no Twitter e escreveu em exatos 140 caracteres um elogio para este meu blog Semióticas. Do jornal de Brasília também veio a encomenda de um artigo sobre algum aspecto específico da obra complexa e enciclopédica do mestre.
     
Pelos obituários e reportagens que encontro na Internet nos sites e portais da imprensa internacional, muitos artigos destacam a trajetória de Eco como professor, como teórico dos mais celebrados nos diversos campos do saber e sua obra literária, os sete romances que publicou e que bateram recordes de vendas em diversos países e línguas. Um aspecto prosaico da extensa trajetória do mestre, contudo, não foi destacado nas reportagens que consultei, motivo pelo qual foi o meu tema escolhido para redigir este breve artigo sob encomenda: Eco também teve papel pioneiro ao destacar o valor e a importância da Mafalda, a garotinha contestadora inventada pelo cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino. Com o crescente sucesso de público da pequena Mafalda em seu país de origem, desde 1964, as tirinhas não demoraram a ser reunidas em livros que logo cruzaram as fronteiras da Argentina e passaram a ser conhecidos no Brasil e em outros países da América Latina e também de outros continentes. Na Europa, Mafalda desembarcou primeiro na Itália, por influência direta de Umberto Eco.





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Na Italía, os direitos de publicação da Mafalda foram comprados pela Casa Editrice Valentino Bompiani, que também editava os livros de Eco desde 1962, quando foi publicado seu primeiro grande sucesso editoral, “A Obra Aberta” – o quarto livro que publicou, depois de “O Problema Estético em Santo Tomás de Aquino” (“Il Problema Estetico in San Tommaso”, Torino: Edizioni di Filosofia, 1956), “Filosofia na Liberdade” (“Filosofia in Libertà”, Torino: Edizioni Taylor, 1958) e “Arte e Beleza na Estética Medieval” (“Sviluppo dell'Estetica Medievale”, Milano: Edizioni Marzorati, 1959). Importante dizer que estes livros da trajetória inicial de Eco tornaram-se obras de referência desde a primeira edição, assim como aconteceria com dezenas de livros que ele publicou nas décadas seguintes.

Eco permaneceu publicando seus livros pela Bompiani até 2015, quando foi lançado seu sétimo e último romance, “Número Zero” – uma crítica feroz ao mau jornalismo e à manipulação de notícias apresentada através de um jornal fictício criado para mentir, distorcer, caluniar e chantagear autoridades e pessoas comuns. Na editora Bompiani, Eco publicou cerca de 50 livros de ensaios e estudos teóricos que são considerados obras de referência, três livros de literatura infanto-juvenil e seus sete romances. Contudo, depois da publicação de “Número Zero”, a Bompiani foi comprada pelo grupo Mondadori, controlado pela família Berlusconi. Em protesto, Eco e outros grandes nomes da literatura italiana tomaram a decisão de romper com a Bompiani e criaram uma nova editora, a La Nave di Teseo, batizada em homenagem ao mítico rei de Atenas na Antiguidade.

O primeiro livro da nova editora será também a primeira publicação póstuma de Eco:
Pape Satàn Aleppe”, que pode ser traduzido como o Papa é adversário de Satanás com o subtítulo Crônicas de uma sociedade líquida será lançado nos próximos dias, na Itália, reunindo uma coletânea de artigos que Eco publicou na revista semanal italiana L'Espresso. O enigmático título do novo livro retoma as palavras que abrem o primeiro verso do Canto VII do Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, poeta da Idade Média e forte referência para o autor de O Nome da Rosa”. Pape Satàn Aleppe” tem a maioria dos ensaios e crônicas no tema da política, questão que sempre esteve presente nos escritos de Eco. Um de seus ensaios mais conhecidos aborda o perigo do fascismo, O fascismo eterno”, publicado no Brasil no livro Cinco escritos morais”, lançado em 2002 pela Editora Record.  













Retratos do mestre Umberto Eco:
no alto, em sua casa em Milão, Itália, em
2013, fotografado por Andrea Frazzetta.
Acima, dois momentos com a trombeta que
aprendeu a tocar quando era menino, em
fotografias de 2015, por Oliver Zehner;
aos 22 anos, em 1954, quando defendeu
sua tese sobre Santo Tomás de Aquino
na Universidade de Turim; e na infância,
em Alexandria, Itália, sua cidade natal.

Abaixo, fotografado por Annie Leibovitz
na Universidade de Bologna, em 1980, na
época do lançamento de seu primeiro romance,
O Nome da Rosa; e em 1985, no antigo mosteiro
de Kloster Eberbach, na Alemanha, durante as
filmagens de "O Nome da Rosa", com os atores
F. Murray Abraham, Michael Lonsdale, Sean Connery
e o diretor Jean-Jacques Annaud.

Também abaixo, a capa do primeiro livro póstumo,
intitulado Pape Satàn Aleppe; uma versão traduzida
para o português do Brasil da ilustração produzida
pelo site espanhol Pictoline para as questões do
ensaio célebre de Eco O fascismo eterno; 
e Eco durante a última entrevista, em 19 de
dezembro de 2015, em sua casa, em Milão,
fotografado pelo jornalista português do
"Diário de Notícias", João Céu e Silva, e
pela fotojornalista italiana Giovanna Silva

 

















A primeira edição de Mafalda em livro, no continente europeu, foi publicada na Itália pela Bompiani em 1969 com uma tarja indicando que se tratava de “história em quadrinhos para adultos”. A edição também incluiu um texto de apresentação de Umberto Eco, “Mafalda ou a recusa”, que chamou imediatamente a atenção de pesquisadores acadêmicos para aquela personagem criada por Quino. Não demorou muito para Mafalda também conquistar França, Espanha, Portugal e outros países, ganhando a simpatia de leitores de todas as idades e dos intelectuais ligados aos movimentos sociais e aos partidos políticos de Esquerda. Detalhe da maior importância: nos Estados Unidos e na Inglaterra, terra natal dos Beatles, que Mafalda ama de paixão, ela continua ainda hoje inédita e desconhecida para o grande público.
 
Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara” – destaca Eco no breve ensaio publicado como apresentação às tirinhas reunidas no livro de 1969, “Mafalda, La Contestataria”, comparando Mafalda com o norte-americano Charlie Brown, criação de Charles Schulz (1922-2000), e com a geração de jovens contestadores que marcou a explosiva década de 1960. Mafalda voltaria à pauta de vários outros ensaios e artigos que Eco publicou em jornais, revistas e livros, como objeto direto de análise ou apenas como citação. Mas este primeiro ensaio que ele dedicou à personagem criada por Quino tem o mérito de ter sido uma carta de apresentação da garotinha zangada e inconformista para milhões de leitores – entre os quais eu também estou incluído.








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Estive uma única vez com o mestre Umberto Eco. Foi na década de 1990, durante uma rápida visita do professor da Universidade de Bologna ao Campus da UFMG, em Belo Horizonte. Deveria ter sido uma entrevista, conforme estava marcado previamente com o cerimonial, mas um atraso levou ao cancelamento de vários compromissos do mestre agendados para aquele dia. Restou apenas a alegria de um breve encontro e da conversa muito rápida e emocionada que tive com ele, interrompidos a cada minuto pela intérprete que o acompanhava e pelos assessores do cerimonial, enquanto caminhávamos de um prédio a outro, a caminho do auditório da reitoria, onde Eco apresentaria uma conferência.

Lembro que fiquei até altas horas, na noite anterior, fazendo e refazendo o roteiro para a entrevista, folheando livros e ensaiando repetidas vezes a pronúncia de algumas frases com meu italiano mínimo e instrumental. A decepção pelo imprevisto do cancelamento da entrevista foi logo substituída pela expectativa da conversa informal na curta caminhada, com o mestre cordial e bem-humorado elogiando a música e a literatura do Brasil – especialmente os clássicos da Bossa Nova e, por recomendação de seus amigos brasileiros de longa data Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, os escritos de Oswald de Andrade, que naquela época ele estava descobrindo, “felicíssimo”, segundo comentou.

Ele também fez elogios ao português falado pelos brasileiros, em comparação ao de Portugal, e à força criativa da cultura popular que havia encontrado de norte a sul do Brasil, nas várias viagens que fez, a passeio, e nas cidades em que esteve para compromissos acadêmicos e palestras. Já estávamos no auditório da reitoria quando arrisquei uma última pergunta sobre as suas incursões nos rituais do Candomblé em Salvador, na Bahia, que o deixaram encantado nas visitas anteriores ao Brasil, mas não houve tempo para a resposta. Em homenagem a Umberto Eco, mestre dos mestres, transcrevo a seguir o ensaio que ele dedicou a Mafalda em 1969. Fiz a tradução a partir do original em italiano que foi publicado no livro “Mafalda, La Contestataria”. Eis, a seguir, a íntegra do ensaio de Eco sobre Mafalda. 
 

 


 

Mafalda ou a recusa



Mafalda não é apenas uma nova personagem dos quadrinhos: é a personagem dos anos 1960. Se para a definir se utilizou o adjetivo “contestadora” não foi para a alinhar a qualquer preço na moda do anti-conformismo. Mafalda é, de fato, zangada – e recusa o mundo tal como ele é.

Para compreender Mafalda é necessário estabelecer um paralelo com outro grande personagem: Charlie Brown. Ele é norte-americano, Mafalda é sul-americana (o seu autor, Quino, é argentino). Charlie Brown pertence a um país próspero, a uma sociedade opulenta na qual procura desesperadamente integrar-se mendigando solidariedade e felicidade. Mafalda pertence a um país cheio de contrastes sociais que, no entanto, quer fazer dela integrada e feliz, coisa que Mafalda recusa, afastando todas as tentativas. 











 
Charlie Brown vive no seu universo infantil de onde, rigorosamente, os adultos estão excluídos (apesar de as crianças aspirarem a comportar-se como adultos), enquanto Mafalda vive em contínua contradição com o mundo adulto, que não estima nem respeita, antes pelo contrário, ridiculariza e rejeita, reivindicando o seu direito a permanecer uma menina que não quer assumir o mesmo universo adulto dos pais. Charlie Brown leu, evidentemente, os “revisionistas” de Freud e busca uma harmonia perdida. Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara.

Na verdade, Mafalda tem ideias confusas sobre política, não consegue perceber o que se passa na Guerra do Vietnã, não sabe por que existem pobres, desconfia dos governos, desconfia dos chineses. Mas de uma coisa ela tem certeza: não está satisfeita.








Ao redor de Mafalda, há um pequeno grupo de personagens mais “unidimensionais”: Manolito, o menino plenamente integrado num capitalismo de bairro, que tem a certeza absoluta de que, no mundo, o valor essencial é o dinheiro; Filipe, o sonhador tranquilo; Susaninha, a doente de amor maternal, perdida nos seus sonhos pequeno-burgueses. E, depois, os pais de Mafalda, resignados, que aceitaram a rotina diária (com o recurso ao paliativo farmacêutico de algum medicamento) e, além disso, vencidos pelo tremendo destino que fez deles os guardiões da Contestadora...

O universo de Mafalda não é apenas o de uma América Latina urbana e evoluída; é também, de um modo geral e em muitos aspectos, um universo latino, e isso faz com que ela surja mais compreensível para nós do que muitos personagens dos quadrinhos norte-americanos. Enfim: Mafalda é, em todas as situações, “um herói do nosso tempo” – e isto não parece uma qualificação exagerada para a pequena personagem de papel e tinta que Quino propõe.








Ninguém nega que histórias em quadrinhos sejam (quando atingem um certo nível de qualidade) questionadoras de hábitos e de costumes – e Mafalda reflete as tendências de uma juventude inquieta que assumem, aqui, o aspecto de uma dissidência infantil, de um esquema psicológico de reação aos meios de comunicação de massa, de uma urticária moral provocada pela lógica dos blocos, de asma intelectual provocada pelo cogumelo atômico. Já que os nossos filhos se vão tornar – por escolha nossa – outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmos Mafalda com o respeito que merece um personagem real. (Umberto Eco)



Traduzido e editado por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Umberto Eco e Mafalda. In: Blog Semióticas, 20 de fevereiro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/02/umberto-eco-e-mafalda.html (acessado em .../.../…).
























Na biblioteca do Mestre dos Mestres: 
um passeio com Umberto Eco na biblioteca
de sua casa em Milão, Itália, em fotografias de
setembro de 2007 por Leonardo Cendamo






13 de fevereiro de 2014

Mistérios de Clarice





Que ninguém se engane: só se consegue
simplicidade através de muito trabalho.
 –– Clarice Lispector....   


Idolatrada como mística por uma legião de leitores, Clarice Lispector e sua densa personalidade rivalizam com Machado de Assis na classificação entre os autores brasileiros mais lidos no exterior – mas nos últimos tempos ela conquistou mais uma vantagem, com novas edições, seguidas de muitas resenhas e críticas, pontuadas de altos elogios, na imprensa internacional, para a publicação de seus livros em inglês pela Penguin Classics e pela editora New Directions, incluindo a biografia escrita por Benjamin Moser, “Why This World – A Biography of Clarice Lispector”, publicada no Brasil pela Cosac Naify, com o título “Clarice,” (lê-se Clarice vírgula) e tradução de José Geraldo Couto.

Considerada uma das maiores escritoras brasileiras do século 20 – para muitos, a principal – Clarice nasceu no exterior, na cidade de Tchetchelnik, Ucrânia, no dia 10 de dezembro, e foi registrada como Chaya Pinkhasovna Lispector. O nome Clarice foi adotado em 1922, quando a família de imigrantes chegou ao Brasil e foi morar no Recife, capital de Pernambuco. Contudo, como ela mesmo sempre fez questão de declarar em entrevistas, a Ucrânia foi uma terra em que nunca pisou, pois chegou ao Brasil quando tinha um ano e dois meses de idade. Nascida enquanto seus pais percorriam várias aldeias, para fugir da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa de 1918-1920, ela foi a terceira filha do comerciante judeu Pinkouss Lispector e de Mania Krimgold Lispector.

Antes do livro de Benjamin Moser, Clarice teve outras biografias escritas por pesquisadoras de sua obra. A primeira, "Clarice – Uma vida que se conta", de Nádia Battella Gotlib, foi publicada em 1995 (Editora Ática) e equaciona vida e obra da biografada. A segunda, "Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector", de Teresa Montero, foi publicada em 1999 (Editora Rocco) e reúne 88 depoimentos. Nádia Gotlib também publicou pela Editora da Universidade de São Paulo, em 2009, "Clarice – Fotobiografia", que registra a partir de uma seleção de imagens os momentos mais marcantes da vida e obra da escritora.

Entre os estudos biográficos, houve também, em 2012, a publicação de "Retratos antigos", de Elisa Lispector (organizado por Nádia Gotlib), pela Editora UFMG. Benjamin Moser retoma informações das biografias anteriormente publicadas e descreve a trajetória das muitas viagens de Clarice: da Ucrânia para Maceió e Recife, no Nordeste do Brasil; dali para o Rio de Janeiro, quando completou 15 anos; nas viagens a trabalho, como jornalista; para o exterior, acompanhando o marido no serviço diplomático; e depois o fim do casamento e a volta ao Rio de Janeiro.

Em 1939, Clarice começou a estudar na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil (atualmente, Universidade Federal do Rio de Janeiro). Seu primeiro conto conhecido, "Triunfo", foi publicado na revista "Pan" em 1940. "Perto do Coração Selvagem", seu romance de estreia, foi publicado em 1943 – mesmo ano de sua formatura e de seu casamento com o colega de turma Maury Gurgel Valente, futuro pai de seus dois filhos, Pedro e Paulo. Do Rio de Janeiro partiu para viver em Belém, no Pará, e mais 15 anos no exterior com o marido, aprovado em concurso do Ministério das Relações Exteriores e transferido para a Itália, depois Inglaterra, Estados Unidos, Suíça e outros países. De volta ao Brasil, em 1959, Clarice fixou residência em um apartamento no bairro do Leme, no Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte em 1977. 












 
 



Mistérios de Clarice: no alto, a escritora em
seu apartamento no Leme, no Rio de Janeiro,
em 1969. Acima, Clarice no grafite de
Bete Nobrega instalado em frente ao prédio
da Pinacoteca de São Paulo em 2006; e na
infância, quando morava com a família no
Recife. Também acima, duas fotografias do
álbum de família: na primeira, do passaporte
familiar expedido pelo Consulado da Rússia
em Bucareste (Romênia), em janeiro de 1922,
estão casal Pinkas e Márian com as
três filhas: Leia (Elisa), Tania e Haia (Clarice);
na segunda, da esquerda para a direita, no
sentido anti-horário, a mãe; Clarice; o pai;
e, de pé, suas irmãs Tania e Elisa.

Abaixo, Clarice em desenhos, retratada
por Dimitri Ismailovitch em 1974; por
Ribeiro Couto, durante sua temporada em
Lisboa, em 1944; por Alfredo Ceschiatti,
durante a temporada em Paris, em 1947;
e Clarice em família, com os dois filhos,
Pedro e Paulo, e o marido Maury Gurgel















 
 
Literatura no Leme



Com o fim do casamento, Clarice retornaria ao Rio de Janeiro em 1959 para morar com os filhos no bairro do Leme, na zona sul do Rio de Janeiro, onde escreveu seus romances, contos, crônicas, traduções e textos de literatura infantil. Morreu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário de 57 anos, mas não pôde ser enterrada no dia seguinte, que seria um “shabat”, dia de descanso semanal no calendário judaico. O enterro aconteceria em 11 de dezembro, uma segunda-feira, no Cemitério Israelita do Caju, Rio de Janeiro, com as inscrições em hebraico: “Chaya bat Pinkhas Chaya filha de Pinkhas” – referência ao primeiro nome que a família lhe deu: Chaya Pinkhasovna Lispector.

Ainda em vida e mais ainda depois da morte, o prestígio e o alcance de sua literatura entrariam em curva ascendente. Há décadas ela é traduzida em vários idiomas e apontada em países da Europa como um dos grandes nomes da literatura do século 20, mas nos EUA sua obra permanecia restrita aos círculos acadêmicos. A nova investida dos livros de Clarice na América começou com as estratégias de marketing do lançamento da biografia escrita por Moser e com uma nova safra da publicação de seus romances.









Sob coordenação editorial de Benjamin Moser, já foram publicados em inglês “A Hora da Estrela”, “Perto do Coração Selvagem”, “Água Viva”, “A Paixão Segundo G. H.” e “Um Sopro de Vida”, respectivamente com os títulos “The Hour of the Star” (com tradução do próprio Moser e apresentação de Colm Tóibín), “Near to the Wild Heart” (tradução de Alison Entrekin), “Água Viva” (idem, tradução de Stefan Tobler), “The Passion According to GH” (tradução de Idra Novey) e “A Breath of Life” (tradução de Johnny Lorenz).



A Grande Bruxa



Os lançamentos de Clarice Lispector em inglês repercutiram na imprensa internacional, com destaque surpreendente nos mais prestigiados jornais e revistas dos EUA e do Reino Unido, “The New York Times”, “Los Angeles Times”, “The New Yorker”, “The Guardian”, “The Independent”, The Huffington Post” e outros veículos impressos e on-line, além de matérias de capa e resenhas assinadas por autores em evidência nas principais revistas especializadas em literatura, incluindo “BookForum” e “Paris Review”.





          
 



Clarice, fotografada por Maureen Bisilliat,
na capa da edição do mês da BookForum,
e em matéria de destaque na Paris Review
No alto, a jovem Clarice em fotografia do
álbum de família e no retrato formado pelas
capas de quatro romances editados em inglês.

Abaixo: 1) Clarice em 1953, na época que
viveu em Washington D.C., Estados Unidos,
com o marido, Mauri Gurgel, funcionário do
serviço diplomático; 2) no retrato fotografado
em 1969 por Maureen Bisilliat; 3) Clarice
em uma de suas última imagens no ano de
sua morte, em 1977; 4) Clarice aos 19 anos,
em 1939, quando ingressou na Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro; 5) com Tom Jobim na noite de
autógrafos do livro A maçã no escurono
Rio de Janeiro, em 1961, fotografados
para o jornal Correio da Manhã; e 6) Clarice
e Carolina de Jesus em agosto de 1960, quando
Clarice lançava "Laços de Família", após longa
temporada no exterior, e Carolina lançava
"Quarto de Despejo", diário que escreveu
na favela do Canindé, em São Paulo.

Também abaixo, Clarice em um retrato
pintado em 1972 por seu amigo Carlos Scliar;
em retrato pintado em Roma, em 1945, por
Giorgio de Chirico; e em 1965, em foto no
Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro,
com a equipe da primeira montagem feita
para teatro de seu romance de estreia,
Perto do Coração Selvagemna noite
da estreia do espetáculo (na foto,
a partir da esquerda, Fauzi Arap,
José Wilker, Glauce Rocha,
Clarice e Dirce Migliaccio)








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São elogios e mais elogios, além de uma sequência de classificações repetidas que já se tornaram lugar comum nas referências que os leitores de Clarice conhecem de longa data: “a grande bruxa da literatura brasileira”, “um Kafka do sexo feminino”, “uma autora para a mesma estante de Joyce, Borges, Cortázar”, “a mulher mais importante da literatura em Língua Portuguesa”.

Entre as resenhas de peso, Nicholas Shakespeare, editor do “The Telegraph”, cita a frase de um antigo tradutor de Clarice, Gregory Rabassa, que comparava a autora brasileira a Marlene Dietrich (no traço físico) e a Virginia Woolf (no traço estilístico). No “The New York Times”, ela mereceu um caderno especial com reportagens e ensaios de especialistas – todos destacando qualidades e unânimes em elogios, definindo Clarice como “a principal escritora latino-americana de prosa do século 20”.
















Verdadeiramente notável”



Os livros de Clarice Lispector chegaram às livrarias em novas traduções para o inglês com um projeto gráfico sedutor: juntas, as capas reproduzem uma foto de Clarice jovem. Nas contracapas, frases marcantes da escritora e elogios de personalidades da crítica literária reconhecidas como autoridades, tais como Jonathan Franzen (“uma escritora verdadeiramente notável”), Orhan Pamuk (“uma das mais misteriosas autoras do século 20”) e Colm Toíbín (“um dos gênios ocultos do último século”).

No Brasil, a editora Rocco, que detém os direitos sobre a obra de Clarice, também anuncia lançamentos e relançamentos – entre eles, as primeiras edições em livro de crônicas e textos diversos que a escritora publicou em jornais e revistas, além de seus livros infanto-juvenis, que há muito tempo estavam fora de catálogo. Desta série de lançamentos, já chegaram às livrarias "A Vida Íntima de Laura", ilustrado por Odilon Moraes, e "A Mulher Que Matou os Peixes", com ilustrações de Renato Moriconi. 
















Benjamin Moser, biógrafo de Clarice:
"A proximidade só a torna mais espetacular".
No alto, Clarice em seu apartamento no
Leme, no Rio de Janeiro, em 1961. Acima,
em 1964, em uma célebre entrevista publicada
pelo jornal O Globo em que ela declarou:
"Toda minha obra é um grande equívoco".

Abaixo, Clarice no Natal de 1975; e uma de
suas pinturas. Sob a influência do amigo
Augusto Rodrigo, criador da Escolinha de Arte
do Brasil (EAB), Clarice fez 24 pinturas em óleo,
a maioria sobre madeira, com cores fortes e
formas abstratas – entre elas “Esperança”, pintada
em 1975 sobre compensado no formato
30,2cm por 39,7cm. Também abaixo, dois
retratos de Clarice em casa, em 1961,
um com sua inseparável máquina de escrever
portátil, fotografada por Claudia Andujar






   

 


À frente da redescoberta de Clarice no exterior, Benjamin Moser atribui o sucesso a ocorrências do acaso. Nascido em Huston (EUA), em 1976, ele diz que se apaixonou pela escritora depois de ler “A Hora da Estrela” durante um curso universitário sobre literatura brasileira nos Estados Unidos e, quando soube que Clarice seria homenageada pela Festa Literária Internacional de Paraty, em 2005, veio ao Brasil para acompanhar o evento. Em seguida, começou o projeto de pesquisa para escrever a biografia.



Um amor incondicional



Eu nunca tinha ouvido falar de Clarice”, declarou Moser, na entrevista sobre a edição nacional da biografia. “Quando li 'A hora da estrela' no curso de literatura brasileira, fiquei impressionadíssimo. Ainda estou. Logo na primeira página, pensei: essa é uma grande escritora. Depois viajei pela América do Sul de ônibus, do Rio de Janeiro a Buenos Aires, voltando pelo Paraguai. Diante de mim, o tango, Iguaçu, o Pão de Açúcar e tudo mais, e realmente a única coisa de que me lembro foi 'A paixão segundo G. H.', que comprei em Florianópolis. Perto daquele livro, nada mais podia me impressionar”. 







 

Para Benjamin Moser, Clarice Lispector tornou-se um amor incondicional. Segundo ele, a coisa mais perigosa em escrever uma biografia é o risco do biógrafo, pelo excesso de pesquisa e informação, passar a detestar o biografado – mas sua dedicação trilhou outros caminhos. “Depois de anos de estudos, pesquisas e escrita, a amo e respeito ainda mais. A proximidade só a torna mais espetacular, sobretudo agora, que entendo muito melhor os desafios humanos que ela enfrentou para se tornar uma entre os maiores escritores do século 20, não somente do Brasil, mas do mundo”.

Além das novas traduções para o inglês, previstas para os próximos meses, Clarice também deve chegar ao cinema, com um longa que já está em fase de pré-produção, baseado na biografia escrita por Moser. Vale lembrar que, no cinema, a literatura de Clarice gerou pelo menos uma obra-prima: “A Hora da Estrela”, dirigido por Suzana Amaral em 1985, com roteiro de Alfredo Oros – filme premiado em festivais no Brasil e no exterior, incluindo o Festival de Berlim, com prêmio da crítica para Suzana Amaral, indicação ao Urso de Ouro e vencedor do Urso de Prata de melhor atriz para Marcélia Cartaxo como Macabéa, a protagonista.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Mistérios de Clarice. In: Blog Semióticas, 13 de fevereiro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/02/misterios-de-clarice.html (acessado em .../.../...).



Para acessar a edição da “BookForum” sobre Clarice Lispector, clique aqui.


Para acessar o ensaio de Colm Tóbín no “The Guardian”, clique aqui.


Para comprar a biografia "Clarice", escrita por Benjamin Moser,  clique aqui.















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