Mostrando postagens com marcador david margolick. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador david margolick. Mostrar todas as postagens

27 de agosto de 2012

Biografia de uma canção






Billie Holiday consegue expressar, em apenas um refrão, 
mais emoção do que a maioria das atrizes em três atos. 

––  Jeanne Moreau.    


Poucas vezes uma canção foi tão longe ao denunciar a situação aviltante do preconceito e da violência indiscriminada contra os negros. E o acaso e a sorte fizeram com que esta mesma canção ficasse para sempre identificada com uma personalidade que superou todos os obstáculos imagináveis para permanecer, em primeiro plano, no Olimpo das grandes cantoras de todos os tempos: Billie Holiday (1915–1959).

Billie tinha 23 anos em 1939, quando cantou pela primeira vez “Strange Fruit” com seus versos sofridos que descrevem o horror dos linhamentos de negros no Sul dos Estados Unidos. A trajetória da canção que merece o título de emblemática está descrita em “Strange Fruit – Billie Holiday e a Biografia de uma Canção”, livro que o jornalista norte-americano David Margolick publicou no ano 2001 e que agora chega ao Brasil em edição da Cosac Naify, com tradução de José Rubens Siqueira e apresentação de André Midani, veterano “capo” da indústria do disco no Brasil.

Apaixonado por Lady Day, como é de praxe com todos os amantes do jazz e do blues, Margolick mergulhou fundo na história e no significado de “Strange Fruit”. Seu livro-reportagem esclarece e desfaz equívocos sobre a canção – uma obra alegórica e comovente que o historiador Leonard Feather definiu como "o primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo".










 
Biografia de uma canção: no alto
e acima, Billie Holiday no estúdio,
fotografada em 1958 por Dennis Stock.
Abaixo, Billie no palco, 
no Sugar Hill Nightclub,
em Newark, New Jersey, em abril de 1957,
em fotografia de Bob Parent; e acompanhada
pela orquestra de Teddy Wilson no
Newport Jazz Fest, em 1954, em
fotografia de John Vachon. Também
abaixo, fotografada nas ruas em 1956,
por Moneta Sleet Jr. para uma reportagem
especial da revista Ebony; e em sua
última sessão de gravações no estúdio
em 3 de março de 1959










No mesmo ano em que canta nos palcos “Strange Fruit” pela primeira vez, Billie grava a canção em um disco em 78 rotações pelo selo Commodore. Anos depois, voltaria a gravá-la com outro arranjo pelo mesmo selo e outras quatro vezes para a Verve. Nas últimas décadas, muitos arriscaram novas versões para a canção, lembra Margolick, que destaca a gravação de Nina Simone e cita algumas outras muito além do universo das fronteiras do jazz e do blues, incluindo de Cassandra Wilson a Tori Amos e Siouxie & The Banshees, de Sting e UB-40 a Dee Dee Bridgewater, de Abbey Lincoln a Carmen McRae e Patti Smith, de Diana Ross a Jeff Buckley, Sidney Bechet, John Legend, Marcus Miller, Cocteau Twins, Beth Hart, Rokia Traoré e Björk.

O livro de Margolick, que foi sucesso imediato nos Estados Unidos e na Europa, deu origem a outros relatos “biográficos” escritos por jornalistas sobre discos e canções. Alguns deles também alcançaram a condição de best-sellers, caso de “A Love Supreme” (2002) e “Kind of Blue” (2007), de Steve Khan, publicados no Brasil pela Barracuda, e “Stardust Melodies” (2002), em que Will Friedwald apresenta a trajetória de clássicos do cancioneiro norte-americano, como “Body and Soul”, “Night and Day” e “Saint Louis Blues”. O primeiro exemplar da safra nacional foi anunciado para chegar às livrarias em 2015: o poeta e ensaísta Eucanaã Ferraz está mergulhado na pesquisa para contar a história de um marco da bossa nova, “Garota de Ipanema”, canção criada por Tom Jobim e Vinicius de Moraes. “Garota de Ipanema – A biografia de uma canção” será publicado pela Companhia das Letras.



Relato em polifonia



Primeiro destaque do novo gênero que apresenta biografias de discos e canções, o livro de Margolick aposta no que o russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895–1975), um dos pioneiros dos estudos em Semiótica, batizou de “polifonia”: aquela estratégia narrativa em que fontes e versões distintas, apresentadas simultaneamente, contribuem para o melhor entendimento da história. Ao leitor, Margolick confessa que demorou a entender que os “estranhos frutos” em questão não eram cerejas ou maçãs, e sim negros enforcados e dependurados em árvores nos estados ao Sul de seu país.  














A origem da canção e todas as gravações de “Strange Fruit” feitas por Billie são investigadas por Margolick, desde aquela primeira noite no salão do Café Society, um bar construído no porão da Sheridan Square, no Greenwich Village de Nova York, um território frequentado por artistas e intelectuais em que a intolerância e o preconceito racial não eram admitidos. Uma das fontes para o relato incomum de Margolick é a autobiografia “Lady Sings the Blues”, publicada por Billie Holiday pouco antes de sua morte, em 17 de julho de 1959, em um quarto do Hospital Metropolitano de Nova York, pouco tempo depois de ter o quarto invadido por policiais. O atestado de óbito registrou que a morte ocorreu em decorrência de edema pulmonar, cirrose hepática e insuficiência cardíaca.

Não houve nem mesmo uma tentativa de aplauso quando terminei”, escreveu Billie em sua autobiografia. “Então uma pessoa começou a aplaudir nervosamente e, de repente, todo mundo estava aplaudindo”. Naquela noite, Billie deixou o palco em silêncio, sem retornar para o bis habitual, porque ela estava mesmo com medo de interpretar uma canção que atacava de frente o ódio racial – recorda Barney Josephson, que era dono do Café Society em 1939 e foi entrevistado por Margolick em 1998.








Biografia de uma canção: abaixo,
Billie Holiday fotografada por Carl
Van Vechten para a a capa da
revista Down Beat, em fevereiro
de 1947. Acima, em 1949, também
fotografada por Van Vechten










A entrevista com Barney Josephson, publicada pela revista “Vanity Fair” em 1998, foi ampliada e deu origem ao livro, que abarca a trajetória de Billie Holiday e o avanço nas lutas contra a conivência da sociedade norte-americana com o preconceito e os linchamentos de negros. Através de outras entrevistas e de pesquisas em jornais e revistas, Margolick repercute aquela primeira apresentação da canção por Billie e o destaque que “Strange Fruit” foi ganhando nas apresentações das noites seguintes no mesmo clube e em outros palcos, numa época em que ainda nem se sonhava com a música de protesto. 

 

Branco, judeu, comunista



O jornalista também investiga as relações de “Strange Fruit” com o movimento pelos direitos civis, que só eclodiria 16 anos depois, após a prisão de Rosa Parks, ativista que se negou a ceder seu lugar no ônibus para um branco na cidade de Atlanta, na Geórgia. Os números garimpados por Margolick impressionam: de acordo apenas com os registros oficiais, entre 1889 e 1940 mais de 2.700 negros foram linchados e assassinados no Sul dos EUA.
 







David Margolick, autor do livro
“Strange Fruit Billie Holiday e
a Biografia de uma Canção”.
Abaixo, Billie na capa da revista
Ebony Magazine em julho de 1949;
e a gravação original de "Strange Fruit"
feita em 1939 por Billie Holiday
pelo selo Commodore Records









.


Daquela noite no Café Society até sua morte em 1959, aos 44 anos, Billie Holiday causava comoção todas as vezes que entoava “Strange Fruit”, tanto que tomou para si a autoria da canção. Margolick comenta o passo a passo de sua investigação a partir do momento em que entendeu o significado dos versos entoados por Billie. E confessa que seu interesse pelo assunto cresceu quando ele descobriu que o autor da canção era Abel Meeropol, um homem branco, judeu, membro do partido comunista e considerado por seus amigos um grande idealista, tanto que adotou os filhos do casal Julius e Ethel Rosenberg, executados nos Estados Unidos em 1953 sob a acusação de serem espiões a serviço da extinta União Soviética.

Admirado por lendários compositores como Kurt Weill e Ira Gershwin, Abel Meeropol tinha pouco mais de 30 anos e era professor no bairro negro do Bronx, em Nova York, quando viu pela primeira vez uma fotografia feita por Lawrence Beitler. A foto, publicada na revista “New York Teacher”, estampava o linchamento e o enforcamento de dois negros em 1930, em Indiana. O impacto da imagem levou Meeropol a escrever um poema, “Bitter Fruit”, mais tarde transformado na bela e alegórica letra da canção.








      
   


Biografia de uma canção: Billie
com Louis Armstrong, seu amigo
de várias parcerias em estúdios e
também em turnês. Acima, Louis
e Billie com Barney Bigard em
1947, em cena de New Orleans,
filme de Arthur Lubin. Abaixo, Billie
no palco, em 1951, acompanhada pela
orquestra de Count Basie









.

              






Polêmica demais para o jazz



O próprio Abel Meeropol levou “Strange Fruit” para Billie Holiday. Em 1939, ele assistiu Lady Day se apresentando no Café Society. Impressionado com a performance da cantora, apresentou a ela sua composição. Billie, no entanto, não teve interesse imediato e demorou a apresentar a canção no palco pela primeira vez, em arranjo para voz e piano. Mas desde a primeira vez que Billie cantou “Strange Fruit” foi uma comoção na plateia.

A gravação, entretanto, teve que superar um impasse: a gravadora Columbia Records, com a qual Billie tinha um contrato de exclusividade, não autorizou e recusou-se a gravar a canção, temendo protestos. Billie recorreu ao principal produtor da Columbia, John Hammond, e mesmo assim não teve autorização. Billie continuou apresentando “Strange Fruit” nos shows, algumas vezes cantando a cappella, sem acompanhamento dos músicos, e sempre comovendo a plateia, até que Milt Gabler, executivo da Commodore Records, assistiu a uma dessas apresentações e ficou tão impressionado que procurou os escritórios da Columbia, conseguindo um contrato especial para que Billie fizesse a gravação.

Margolick justifica o estranhamento e a comoção das plateias que assistiam às apresentações ao vivo e também o sucesso quando a gravação começou a ser vendida em discos e passou a ser tocada com frequência nas estações de rádio. Ele esclarece que “Strange Fruit” era muito diferente de tudo o que Billie interpretara até então: não lembrava as baladas de amor que ela havia gravado na década anterior e tampouco se alinhava à tradição do blues ou às inovações estilísticas no cenário do jazz. A interpretação personalíssima de Billie, sua agonia pessoal, acentuava o tema angustiante da canção – um grito contra o racismo – que também representava os obstáculos que alguém como Billie, uma cantora negra numa sociedade dividida entre brancos no poder e negros subalternos, teria de superar. 





















Billie Holiday e outras lendas no
Bop City Nighclub, em Nova York:
no alto, em duas fotografias feitas por
Elliot Erwitt em 1958. Acima, com
o escritor William Falkner em 1956,
em fotografia de Moneta Sleet;
em 1950, no Bop City Nighclub com
Louis Armstrongcom Duke Ellington
e com Ella Fitzgerald em fotografias
de Joseph Schwartz.

Abaixo, Billie em Parisem 1958, no aeroporto
e em dois momentos no palco do lendário
Le Mars Club na noite de 20 de novembro,
em fotografias de Jean-Pierre Leloir.

Também abaixo: 1) Billie no ensaio fotográfico
de Phil Stern em agosto de 1955, durante as
gravações do álbum Music for Touching;
2) Billie em fotografia de 1949 no estúdio de
Carl Van Vechten; 3) Billie no palco do New York
Jazz Festival, em agosto de 1957, em fotografia
de Jerry Dantzic4) Billie em uma clássica
sequência de fotos em cores feita por
Carl Van Vechten em 1949; e 5) uma cena
de horror: o linchamento de dois homens
negros na Virginia, EUA, sem nenhum
julgamento. A prática do linchamento contra
negros tem sua origem na década de 1780
nos Estados Unidos, atribuída a dois militares
e latifundiários: Charles Lynch e William Lynch
(daí a palavra "linchamento), da Virgínia, que
instituíram a "lei de Lynch" para designar o
ódio racial contra negros e índígenas




















 
Strange Fruit”, descaca David Margolick, escapa a qualquer categorização musical e não lembra em nada “Lover Man”, “My Man”, “God Bless the Child”, “Glummy Sunday” ou “Blue Moon”, entre outros sucessos que Billie já havia emplacado naquela época. “É uma canção artística demais para ser música folk, politicamente explícita e polêmica demais para ser jazz", reconhece. Os versos alegóricos de Meeropol, que marcaram profundamente a carreira de Lady Day e foram definitivos para mudar os rumos da história no século 20, ganharam uma versão do poeta Carlos Rennó:


Árvores do Sul dão uma fruta estranha
Folha ou raiz em sangue se banha
Corpo negro balançando, lento
Fruta pendendo de um galho ao vento

Cena pastoril do Sul celebrado
A boca torta e o olho inchado
Cheiro de magnólia chega e passa
De repente o odor de carne em brasa

Eis uma fruta para que o vento sugue,
Pra que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue,
Pra que o sol resseque, pra que o chão degluta,
Eis uma estranha e amarga fruta









Do Café Society para outros palcos e daí aos discos, aos programas de rádio e aos ouvintes do mundo inteiro, o peso da canção lançada por Billie Holiday rendeu a ela muitos desafetos e agressões as mais diversas, inclusive físicas. Margolick reconstitui os capítulos do drama e lembra que Billie declarou em 1947 à revista “Downbeat”: “Fiz uma porção de inimigos, sim. Cantar aquilo não me ajudou em nada”. Puro engano. A mais mítica dos intérpretes do jazz e do blues, batizada como Eleanora Fagan Gough pelos pais adolescentes, prostituída aos 12 anos e drogada daí em diante, Lady Day a cantar com sua voz sublime e levemente rouca “Strange Fruit” forçou toda uma nação a enfrentar alguns dos seus mais sombrios impulsos.



por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Biografia de uma canção. In: Blog Semióticas, 27 de agosto de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/08/biografia-de-uma-cancao.html (acessado em .../.../…).














Outras páginas de Semióticas