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10 de outubro de 2012

Caras do Brasil







Antigamente a vida era outra aqui neste lugar onde o rio, dando 
areia, cobra-d’água inocente, e indo ao mar, dividia o campo 
em que os filhos de portugueses e da escravatura pisavam. 

–– Paulo Lins, “Cidade de Deus” (1997).    


Obras-primas e obras menores da literatura, cinema, artes plásticas, música popular e outras artes, retomadas sob novas fronteiras disciplinares, fornecem ao professor Wander Melo Miranda os referenciais e dispositivos de leitura comparativa para os ensaios reunidos em “Nações Literárias” (Ateliê Editorial). Com um fio condutor sobre a questão interdisciplinar da identidade cultural, dos processos e paradoxos de constituição da nação e dos sujeitos modernos, os ensaios não foram organizados em ordem cronológica, mas formam no livro um conjunto coeso e surpreendente, organizado em três blocos temáticos.

A política e a economia são discursos autoritários, fechados, enquanto a literatura e as outras artes apresentam discursos abertos a novas interpretações que permitem mais liberdade”, explica o professor em entrevista por telefone, concedida às vésperas do lançamento do livro em Belo Horizonte. Diretor da Editora UFMG, professor de graduação e pós-graduação, mestre em Letras e doutor pela USP, Wander Melo Miranda também é coordenador de estudos sobre o Acervo de Escritores Mineiros mantido pela UFMG e, entre seus livros publicados, há obras de referência em destaque na fortuna crítica de vários autores, entre elas “Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago”, livro de 1992 que teve uma nova edição em 2009 pela Edusp.

A literatura e os outros sistemas de representação cultural da arte, nas mais diversas mídias e suportes materiais ou tecnológicos, defende o professor, ainda são os melhores instrumentos para abordar os conceitos de nação e de identidade nacional na atualidade. “Os discursos da literatura e das artes não são discursos melhores que os outros discursos, mas permitem maior liberdade e maior abrangência porque representam o lugar no qual sempre é o outro que vem dizer. Esse outro é o que se tem que saber ouvir”, destaca. 













Personalidades da literatura no Brasil:
a partir do alto, Sérgio Buarque de Holanda,
José Olympio, Jorge Amado, José Lins do
Rego, Graciliano Ramos e Carlos Drummond
de Andrade em caricatura de Eduardo Baptistão.

Acima, Drummond, Vinicius de Moraes,
Manuel Bandeira, Mario Quintana e Paulo
Mendes Campos em 1966, no jardim do
apartamento de Rubem Braga em Ipanema,
no Rio de Janeiro, fotografados para uma
reportagem da revista Manchete; e
Rubem Braga, o mais celebrado cronista
brasileiro, no banco do mesmo jardim,
fotografado em 1972 por Luiz Jardim.

Abaixo, um encontro de Drummond,
Guimarães Rosa e Manuel Bandeira
em 1960; quatro poetas de peso em 1960,
Manuel Bandeira, Drummond, Cecília Meireles
e Vinicius de Moraesuma fotografia de 1967
de Clóvis Scarpino que registra o encontro
de Tom Jobim, Pixinguinha, João da
Bahiana e Chico Buarque; uma visita à
casa de Manuel Bandeira, em Copacabana,
feita por Chico Buarque, Tom Jobim e
Vinicius de Moraes, fotografados em 1967
por Pedro de Moraes, filho de Vinicius.
Manuel Bandeira morreria um ano
depois, em outubro de 1968, aos 82 anos.
E Sérgio Buarque de Holanda com
Chico Buarque, pai e filho com obras
de referência para a cultura brasileira

























 
Os ensaios reunidos em “Nações Literárias”, originalmente publicados ou apresentados em congressos e simpósios científicos, no Brasil e no exterior, entre 1984 e 2008, propõem análises sobre a diversidade dos fatos culturais que passam por obras de João Gilberto Noll a Wim Wenders, de Ricardo Piglia a Rosângela Rennó, de Silviano Santiago ao grupo O Rappa, de Guignard a Ary Barroso, interpelando alguns dos pressupostos teóricos contemporâneos, de Fredric Jameson e Alain Badiou a Martin-Barbero e Néstor Garcia Canclini, entre outros autores e obras de referência.



Tons plurais da cultura e da nação



Há, nos 18 ensaios do livro, argumentos que questionam ou endossam críticos do passado e do presente, conjugados com erudição e maestria, demarcando um retrato do Brasil visto pelas lentes de um dos nome importante da intelectualidade contemporânea. As cores e os tons plurais da cultura e da nação brasileira mostram suas nuances e sons em vozes narrativas e imagens espelhadas em mestres como Charles Baudelaire, Walter Benjamin, Jorge Luis Borges, mas sem nunca perder de vista a sofisticada tradição da criação literária brasileira nos dois últimos séculos – dos pioneiros a Alencar, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, as memórias de Pedro Nava, Drummond, Murilo Mendes – e seus reflexos na literatura que se produziu no Brasil da última década, incluindo, entre outros, Chico Buarque, Paulo Lins, Fernando Bonassi.











Amizade, literatura e MPB: No alto,
Tom Jobim e Drummond em 1973. Acima,
Chico Buarque, Tom Jobim e Vinicius de
Moraes fotografados de pernas para o ar
em uma churrascaria de Ipanema por
Evandro Teixeira para o Caderno B
do Jornal do Brasil em 1979.

Abaixo, um encontro de Tom Jobim,
Astor Piazzolla, Chico Buarque e Caetano
Veloso no camarim do Teatro Fênix, no
Rio de Janeiro, onde foram gravados
os programas da série da TV Globo
"Chico & Caetano", exibida em 1986.
Também abaixo, Ary Barroso encontra
Carmen Mirandao compositor e
a intérprete mais famosa da canção
Aquarela do Brasil, em Hollywood, em
1942; e uma fotografia de 1932 de
Graciliano Ramos, tema do livro de
Wander Melo Miranda, Corpos Escritos:
Graciliano Ramos e Silviano Santiago,
que teve nova edição em 2009













O autor reconhece que a  literatura divide os holofotes do destaque, no livro, com outras artes e discursos, mas na entrevista o professor admite que a música popular permanece como a grande expressão da cultura nacional para a imensa maioria da população. “Como a literatura, a música popular também traz a experiência autêntica de um saber sem certezas, um lugar de liberdade e de mobilidade de sentido, independente do que a maioria da crítica especializada destaca como valor ou mesmo como ausência de valor”, explica. 

“Dos pioneiros a Pixinguinha e daí a artistas nacionais em evidência em nossos dias, a música popular guarda qualidades que são um convite ao olhar crítico e à pesquisa em diversas áreas”, defende Wander, aliando à música a produção audiovisual de cinema e TV que detêm um lugar de importância como formas privilegiadas de comunicação com extensas camadas do público e com as formas e conteúdos perenes da tradição.



  








O Brasil na tradição da música popular:
acima, Luiz Gonzaga (1912–1989), o Rei
do Baião, também conhecido pelo apelido
Gonzagão, aos 27 anos, em 1939, quando
deu baixa no Exército para se dedicar à
música e tornar-se uma das mais importantes
e inventivas figuras da música popular no
Brasil, sempre acompanhado da sanfona,
da zabumba e do triângulo, levando a
alegria dos forrós e das festas juninas do
sertão nordestino para outras regiões do
país, numa época em que a maioria dos
brasileiros desconhecia o baião, o xote,
o xaxado e o forró. Também acima,
Gonzaguinha e Gonzagão, pai e filho,
em foto dos anos 1980. Gonzaguinha
estava no auge do sucesso, com
16 LPs lançados e canções gravadas
por grandes nomes da música popular,
quando morreu em um acidente de
automóvel em 1991, aos 45 anos.

Abaixo, Pixinguinha, outro veterano
da tradição da música popular no Brasil,
fotografado ao piano com Vinicius de Moraes;
com Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus
e Cartola; e junto com Dorival Caymmi
e Ary Barroso na década de 1950.
Também abaixo, Ary Barroso com
Dorival Caymmi no lançamento do LP
que gravaram juntos em 1958 e na capa
original, com o título "Ary Caymmi e
Dorival Barroso, Um interpreta o outro"



















De certa forma, a paleta da violência domina a música popular, como domina a estrutura narrativa de filmes de sucesso como 'Cidade de Deus' e 'Tropa de Elite'. Neste caso, são filmes que abordam a violência e também fazem dela sua estratégia de linguagem”, conclui. Mas se a literatura mantém sua primazia nos domínios da arte e da cultura, como analisar as novas tecnologias em suas interfaces com a obra literária?

As novas tecnologias oferecem a democratização do acesso à informação, mas não dão conta da questão do juízo de valor. Obras clássicas de Freud e blogs descartáveis de adolescentes se equivalem no universo da Internet. O que só é positivo, a princípio, porque oferece novas possibilidades. Mas confesso que minha preferência é pela literatura tradicional e pelo livro impresso”, completa.















No alto, capa da primeira edição do
romance de Paulo Lins, que foi editado 
em 1997 pela Companhia das Letras, e
a edição atualizada pelo autor depois do
sucesso do filme Cidade de Deus (2002),
de Fernando Meirelles e Kátia Lund. Acima,
Carlos Kroeber e Norma Benguel em
A Casa Assassinada (1971), filme de
Paulo Cesar Saraceni baseado no
romance de Lúcio Cardoso que teve
primeira edição em 1959 pela editora
José Olympio. Abaixo, o cartaz original
do filme de Saraceni; e o autor de
Nações LiteráriasWander Melo
Miranda, em foto de 2010







 
A dedicação à pesquisa sobre os cânones da tradição literária transparece nas entrelinhas em ensaios como “As casas assassinadas”, leitura comparada dos romances “A menina morta” (1954), de Cornélio Penna, e “Crônica da casa assassinada” (1959), de Lúcio Cardoso. Wander argumenta: “Se 'A menina morta' retrata o passado da gente brasileira, da fase da defrontação dos adventícios, onde deitaria raízes o espírito nacional em processo de definição, 'Crônica da casa assassinada', por sua vez, é a resultante levada ao extremo dos descaminhos deste processo”.

Através dos romances de Cornélio Penna e Lúcio Cardoso, Wander Melo Miranda chega ao conceito de “nação” e sinaliza sobre a complexidade que é pensar esse conceito hoje, em meio às culturas híbridas, em tempos de globalização e proliferação dos meios de comunicação, da internet, das redes sociais, da circulação planetária de pessoas (pelos mais diversos motivos, do exílio político ao turismo de massa) e de bens culturais. “Por que sul-americano e não apenas brasileiro?”, questiona o autor.

Frente à vida cotidiana e ao jornalismo mais ordinário, que apresentam a “nação nossa de cada dia” como uma metáfora da casa assassinada, atulhada de vestígios e memórias, os ensaios e questionamentos reunidos em “Nações Literárias” configuram um alerta sobre as metamorfoses que certos conceitos adquiriram no decorrer do último século e especialmente nas últimas décadas – um alerta e um convite à reflexão, para que possamos considerar e dimensionar o valor real da “nação” e suas fronteiras, sejam elas territoriais, linguísticas, culturais.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Caras do Brasil. In: Blog Semióticas, 10 de outubro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/10/caras-do-brasil.html (acessado em .../.../…).





















Sumário de “Nações Literárias”


Parte I
  • Nações Literárias
  • Heterogeneidade e Conciliação em Alencar
  • Imagens de Memória, Imagens de Nação
  • Sem Pátria
  • As Casas Assassinadas
  • Anatomia da Memória
  • Tons da Nação na MPB

Parte II
  • Pós-Modernidade e Tradição Cultural
  • Fronteiras Literárias
  • Ficção Virtual
  • A Liberdade do Pastiche
  • A Memória de Borges
  • Memória: Modos de Usar
  • Ficção-Passaporte para o Século XXI

Parte III
  • Local/Global
  • Não Mais, Ainda
  • A Forma Vazia: Cenas de Violência Urbana
  • Latino-Americanismos




“De certa forma, a paleta da violência domina
a música popular, como domina a estrutura
narrativa de filmes de sucesso como
'Cidade de Deus' e 'Tropa de Elite'"

                     (Wander Melo Miranda)

 

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