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11 de abril de 2015

Olhar estrangeiro no Candomblé







O que me interessa é o papel que tem o Candomblé ao conferir
dignidade aos descendentes dos escravos. Aqui eles chegaram a
ser gente mesmo, gente respeitada por suas próprias tradições.

––  Pierre Verger (1902-1996).   


Um acervo surpreendente com cerca de 200 fotografias inéditas que registram o Candomblé da Bahia nas décadas de 1930 e 1940 foi localizado esta semana em Pernambuco. O valor da descoberta impressiona ainda mais depois da revelação da identidade do autor das fotografias – o alemão Thomás Kockmeyer, que era frei da Ordem dos Franciscanos da Igreja Católica e foi ordenado em 1938 no Brasil, onde viveu durante cinco décadas. 

Kockmeyer, entusiasta da fotografia, driblou a intolerância racial e religiosa da época e registrou as belas imagens de comunidades negras e seus rituais de Candomblé no Recôncavo Baiano. Fotografias, objetos e outros documentos foram encontrados no Recife, em Pernambuco, pela equipe do Arquivo Provincial Franciscano que desde 2014 trabalha no projeto Resgate Documental da Província Franciscana de Santo Antônio do Nordeste do Brasil.

As 200 fotografias no formato 5 x 7 cm, ao que tudo indica, estavam guardadas há décadas no Recife, no Convento de Santo Antônio, em uma pequena caixa de madeira com os dizeres “Candomblé – Fotografias de Frei Thomás Kockmeyer”. São imagens de grande valor documental que registram os moradores de comunidades negras da região do Recôncavo Baiano, alimentos, indumentárias e rituais religiosos de matriz africana. O projeto Resgate Documental, que tem patrocínio da Petrobras, pretende recuperar arquivos históricos de documentos e objetos relacionados aos quatro séculos da história da Ordem Franciscana da Igreja Católica no Brasil.










Olhar estrangeiro no Candomblé da Bahia:
no alto, uma das fotografias registradas na
década de 1930, no Recôncavo Baiano,
pelo frei franciscano Thomás Kockmeyer
(acima, no retrato publicado no necrológio
da Revista de Santo Antônio, e em
fotografia de 1958 na região de Santarém,
na floresta amazônica, durante uma temporada
de sete meses com Protásio Frikel, um
ex-franciscano que viveu muitos anos
com as tribos Tiriyó). Abaixo, Convento
de Santo Antônio, no Recife, onde foram
descobertas as fotografias de frei Kockmeyer










O trabalho da equipe do projeto Resgate Documental teve início em 2014 por iniciativa do coordenador de Patrimônio da Província Franciscana, frei Roberto Soares. O objetivo do projeto é reunir os acervos de raridades históricas que incluem imagens, manuscritos, cartas, certidões, livros, fotografias, fitas cassetes, discos em vinil, partituras e filmes que retratam a vivência religiosa, social, cultural e administrativa dos franciscanos no Brasil. 



Cenas e personagens anônimos



A pesquisa e coleta do material, que resultou na descoberta das fotografias feitas pelo frei Kockmeyer, acontece em mais de 40 localidades que, desde o início do século 16, abrigam ou abrigaram conventos e igrejas da Ordem Franciscana nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Alagoas, Sergipe, Bahia e Pará. A previsão é que nos próximos meses o acervo esteja restaurado, organizado e aberto ao público para consulta no Recife, no Arquivo Provincial Franciscano, e também através da Internet.
 









Olhar estrangeiro no Candomblé: acima
e abaixo, fotografias surpreendentes feitas
pelo frei franciscano Thomás Kockmeyer
nas décadas de 1930 e 1940 na
região do Recôncavo Baiano







.





As cenas e personagens anônimos fotografados pelo frei Thomás Kockmeyer, além de despertar interesse por seu ineditismo e pela identidade inusitada do fotógrafo, revelam detalhes importantes sobre a religião e os hábitos cotidianos de comunidades negras da Bahia, suas festas, vestimentas, objetos sagrados e movimentação nos rituais. Além dos registros sobre o Candomblé, durante os quase 50 anos em que esteve no Brasil o frei franciscano também se dedicou a pesquisas sobre história e sobre os povos indígenas.

De acordo com o informe publicado pela coordenação do projeto Resgate Documental, também foram localizados no Recife documentos diversos e outras fotografias relacionados aos estudos de frei Kockmeyer, incluindo registros de duas expedições de pesquisa de campo que o religioso realizou, em 1950 e em 1958 – quando ele passou uma temporada de sete meses com os índios Tiriyó, no estado do Pará. Frei Thomás Kockmeyer morreu em 1978, aos 65 anos, em um acidente de carro, e foi enterrado em Rio Formoso, cidade do interior de Pernambuco onde ele exercia as funções de vigário.

















América Negra



Antes desta descoberta do acervo no Recife, as únicas referências sobre as pesquisas etnográficas e as fotografias do frei Thomás Kockmeyer estavam nos livros publicados pelo sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), que a partir de 1938 fez parte da missão de professores europeus na então recém-criada Universidade de São Paulo (USP). Roger Bastide morou durante 20 anos no Brasil, atuando na USP, em substituição ao professor Claude Lévi-Strauss, e também morou no Rio de Janeiro e em estados do Norte e do Nordeste.

Dedicado a estudos sobre religiosidade e misticismo, Bastide é reconhecido como um dos principais pesquisadores sobre as religiões afro-brasileiras e chegou a se tornar um iniciado no Candomblé. Na década de 1940, conheceu na Bahia o trabalho do frei Kockmeyer sobre o Candomblé e os rituais religiosos de matriz africana, que posteriormente seria descrito e citado como referência na tese de doutorado de Bastide na Universidade de Paris-Sorbonne, “O Candomblé da Bahia – Transe e Possessão no Ritual do Candomblé” (1957), e também em “Brasil, Terra dos Contrastes” (1957), “As Religiões Africanas no Brasil” (1958) e “As Américas Negras” (1967), entre outros livros publicados pelo sociólogo.

Outro cidadão francês que ficou impressionado com os rituais religiosos de origem africana no Brasil foi o escritor Albert Camus, Prêmio Nobel de 1957. Em visita ao Brasil, em 1949, tendo por companhia dos escritores Oswald de Andrade e Murilo Mendes, Camus assistiu as festas em louvor ao Senhor Bom Jesus em Iguape, no litoral de São Paulo, e também visitou o Rio de Janeiro, a Bahia e o Ceará. O escritor ficou especialmente interessado nas questões religiosas: acompanhou procissões católicas e participou de rituais de umbanda e candomblé, nos quais encontrou semelhanças com sua terra natal, a Argélia, país também habitado por europeus e africanos. As lembranças do Brasil são citadas com frequência na obra de Camus, com destaque em "Diário de Viagem" e em "A pedra que cresce", do livro "O Exílio e o Reino", com a história de um engenheiro europeu que viaja ao Brasil para construir uma represa em Iguape.


























Olhar estrangeiro no Candomblé da Bahia:
a partir do alto, o sociólogo francês Roger Bastide
em visitas Salvador, fotografado na década
de 1950; também acima o escritor Albert Camus
em visita à festa religiosa em Iguape, no
litoral de São Paulo, tendo ao fundo as torres
da Basílica do Bom Jesus, fotografado por
Oswald de Andrade
e a festa consagrada
ao Senhor do Bonfim em Salvador,
em 1947, em fotografia de Pierre Verger.

Abaixo, Zélia Gattai e Jorge Amado em
Salvador, com Mãe Senhora e os franceses
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre,
em 1960; Jorge Amado com o português
José Saramago nas ruas de Salvador,
em 1996; e dois encontros em Salvador
de Caetano Veloso e Jorge Amado com
José Saramago também em 1996









        








O babalaô “Fatumbi”



Além de Roger Bastide e Albert Camus, outro cidadão francês que conheceu em meados do século 20 as pesquisas e fotografias de frei Thomás Kockmeyer foi Pierre Verger (1902-1996), fotógrafo e antropólogo francês que adotou Salvador como residência a partir da década de 1940. Verger dizia em entrevistas que se apaixonou pela Bahia ao ler “Jubiabá”, romance de Jorge Amado publicado em 1935. Jorge Amado e o artista plástico Carybé, anos depois, fariam parte do grupo dos grandes amigos de Verger em terras brasileiras.

A aproximação com Roger Bastide e Pierre Verger também levaria os amigos Jorge Amado e Carybé a receberem como convidados, em Salvador, outros importantes escritores, artistas e filósofos de outros países – entre eles os franceses Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Jorge Semprún; os argentinos Julio Cortázar e Ernesto Sabato; os italianos Umberto Eco e Alberto Morávia; e pelo menos três vencedores do Prêmio Nobel de Literatura: o colombiano Gabriel García Márquez, o chileno Pablo Neruda e o português José Saramago – todos de passagem pelo Brasil e interessados em conhecer a Bahia, o Candomblé e os cultos de matriz africana dedicados à fé nos orixás.   

Quando passa a morar em Salvador, em 1946, Pierre Verger inicia suas pesquisas sobre a religião e a cultura negra da África e do Brasil, o que o levaria aos primeiros contatos com o trabalho do frei Kockmeyer. Verger, que se tornaria um dos grandes estudiosos dos cultos aos Orixás, recebeu em 1953 o nome ritualístico “Fatumbi” e foi iniciado como babalaô, um adivinho através do jogo de búzios do Ifá, com acesso às sagradas tradições orais da cultura Iorubá.













Três amigos em Salvador, Bahia, fotografados
em meados da década de 1970: Pierre 'Fatumbi'
Verger, Jorge Amado e Carybé – nome artístico
do argentino naturalizado brasileiro Hector Julio
Páride Bernabó (1911-1997), pintor, desenhista,
escultor e historiador que trocou seu país pelo
Brasil em 1949, ao conhecer a Bahia, e que
dedicou-se durante décadas a registros sobre
o Candomblé, entre eles belos desenhos e
aquarelas como Cerimônia para Oxalufã
(reprodução acima).

Abaixo, Carybé com Mãe Senhora
no terreiro de Candomblé Ilê Axé Apô Afonjá
em Salvador; um encontro de Gilberto Gil
no palco com Pierre Verger e Carybé, em
fotografia de Arlete Soares; os três amigos
Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé;
Carybé junto com o chileno Pablo Neruda
e com Jorge Amado em Salvador, no
começo da década de 1970; Jorge Amado
fotografado por Zélia Gattai com Gabriel García
Márquez em 1974 e com José Saramago em 1985;
com Mãe Menininha do Gantois; um encontro de
Jorge Amado, Dorival CaymmiMãe Menininha
do Gantois em 1980, fotografados por Gildo Lima;
e os dois "estrangeiros" Carybé e Pierre Verger.
Também abaixo, uma seleção de fotografias de
Pierre Verger na Bahia: 1) o fotógrafo em
autorretrato no ano de 1952; 2) fotografia
de um ritual do Candomblé em 1946;
3) Festa de Iemanjá no Rio Vermelho
em Salvador, 1947; 4) Mãe Senhora, como
era conhecida a Iyalorixá Dona Maria Bibiana
do Espírito Santo, mãe do Terreiro Ilê Axé Opô
Afonjá, em 1948; e 5) duas imagens que
registram ritual do Candomblé
no ano de 1957 em Salvador













































Em 1988, o próprio Pierre Verger transformou a casa em que morava, na Ladeira da Vila América, em Salvador, na sede da Fundação Pierre Verger, que passou a abrigar uma preciosa biblioteca sobre as religiões africanas no Brasil, um acervo com obras de arte e mais de 60 mil fotos de sua produção, em grande parte dedicada ao Candomblé. Não por acaso, o antropólogo Raul Lody, atual curador da Fundação Pierre Verger, também faz parte da equipe de pesquisa do Arquivo Provincial Franciscano que localizou, no Convento de Santo Antônio, no Recife, o acervo de documentos e fotografias sobre o Candomblé registrados pelo frei Thomás Kockmeyer.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Olhar estrangeiro no Candomblé. In: Blog Semióticas, 11 de abril de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/04/olhar-estrangeiro-no-candomble.html (acessado em .../.../...).



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