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24 de março de 2013

Pink Floyd na Lua







As pessoas não sabem, mas fazer parte de uma
grande banda de rock é como estar em uma jaula.

–– Roger Waters.  




Uma unanimidade: trata-se de um dos discos mais estranhos, belos e cultuados do século 20. A alquimia entre beleza e estranhamento começa na capa, com aquele fundo preto e o facho de luz que atravessa um prisma em formato de triângulo, tornando-se arco-íris, para prosseguir nas melodias – hipnóticas, psicodélicas, sofisticadas, em letras sobre a vida cotidiana, o amor, as perdas, tristeza, ambição, dinheiro, demência, medo de envelhecer e, principalmente, o valor da amizade.

Em 24 de março de 1973, foi lançado aquele que muitos consideram o melhor álbum de uma lenda no panteão do rock e da cultura pop chamada Pink Floyd – um disco que se mantém há décadas, desde o lançamento, entre os mais vendidos da história, primeiro no formato LP e agora em CD e arquivos digitais. 'The dark side of the Moon' merece ser definido como 'emblemático' – palavra que muitos usam, nem sempre com propriedade. Emblemático e obra-prima – com novidades musicais e técnicas que seriam rapidamente incorporadas pela maioria de outras bandas e outros artistas que viriam depois, todas em referência explícita ao guitarrista e vocalista Syd Barrett (1946–2006), mentor do grupo, criador das ideias musicais e estilísticas, autor do nome da banda e de todas as canções dos primeiros discos.

Barrett deixou o Pink Floyd em 1968 – mas os integrantes sempre afirmaram que, mesmo ausente, ele permaneceu como a mais forte influência na concepção e nos arranjos dos discos lançados por Roger Waters (compositor, baixista e vocalista), Nick Mason (compositor e baterista) e Richard Wright (compositor e tecladista), que desenvolveram arranjos e adaptações para as principais ideias sobre música e estilo inventadas por Barrett desde que os quatro eram estudantes em Cambridge, em meados da década de 1960.










 


Formação original do Pink Floyd 
no dia da comemoração da assinatura
do contrato com a gravadora EMI para o
lançamento do primeiro álbum da banda.
Nas fotos (acima e abaixo), a formação
original com Roger Waters, Nick Mason,
Syd Barrett Richard Wright em Londres,
no início de 1967. No alto, fotografia e arte
para celebrar o 40º aniversário do lançamento
de The dark side of the Moon: o designer
Storm Thorgerson, criador da imagem
original do prisma da capa do álbum de
1973, criou 40 variações que estão
disponíveis para download no
site oficial do Pink Floyd













O nome do grupo, abreviação de The Pink Floyd Sound, foi criado por Barrett em homenagem aos músicos de blues Pink Anderson e Floyd Council. Os amigos de escola começaram a ensaiar juntos em 1965 e, no ano seguinte, contaram com um lance de sorte logo na estreia do nome Pink Floyd: o cineasta Michelangelo Antonioni assistiu a um dos primeiros shows do grupo, em Londres, num intervalo das filmagens de outra obra-prima, “Blow Up”, e convidou os quatro para compor a trilha sonora de “Zabriskie Point”, seu próximo filme.



De 'Blow Up' a 'Zabriskie Point'



Com o aval de Antonioni destacado na imprensa e o sucesso de “Blow Up”, o Pink Floyd lança as primeiras canções ('Arnold Layne' e 'See Emily Play') e se torna o favorito do Underground. Quando surgiu o primeiro álbum, em 1967, 'The piper at the gates of dawn', a plateia já disputava ingressos para seus shows em casas que, por conta da banda, se tornariam lendárias – The Roundhouse, The Marquee Club, UFO Club.
 








Pink Floyd na Lua: no alto, a banda
 no camarim, na última apresentação com
Syd Barrett, em janeiro de 1968, no palco
do Hastings Piers, Inglaterra, e na fotografia
escolhida para a capa de Ummagumma,
com David Gilmour (em primeiro plano)
como mais um integrante oficial da banda.

Abaixo, o cartaz original para a turnê no
Japão, em 1972; Waters, Mason, Wright
Syd Barrett fotografados em 1967
no Hyde Park, em Londres, cenário
do filme Blow Up, de Michelangelo
Antonioni; a formação original da banda
em agosto de 1968, após a saída definitiva
de Syd Barrett (na foto em rosa, a partir da
esquerda, Nick Mason, David Gilmour,
Richard Wright e Roger Waters) – e uma
seleção das versões criadas por
Storm Thorgerson para a capa original
de The dark side of the Moon






pink-floyd-dark-side-of-the-moon-cover-art-fine-pointillism






Depois do primeiro álbum do Pink Floyd, viriam outros clássicos imbatíveis da era do rock, todos dedicados a Barrett e com letras e canções criados a partir de suas ideias originais: 'A saucerful of secrets' (1968), 'More' (1969), 'Ummagumma' (1969), 'Atom heart mother' (1970), 'Meddle' (1971), 'Obscured by clouds' (1972) e, finalmente, 'The dark side of the Moon' (1973).

A trajetória do Pink Floyd e as reverências ao talento inaugural de Barrett ainda incluiriam 'Wish you were here' (1975), 'Animals' (1977), 'The Wall' (1979). Há ainda os singles, as participações em trilhas sonoras de filmes, as coletâneas, os registros de shows ao vivo e um concerto impressionante, “Live at Pompeii”, transformado em documentário que chegou aos cinemas em 1972, com a banda tocando seis longas composições no Piazza Anfiteatro, nas ruínas de Pompeia, na Itália, dirigido por Adrian Maben e gravado em 1971 sem ninguém na platéia. 














 

David Gilmour, que havia sido professor de guitarra de Barrett, chegou depois dele ao Pink Floyd – a princípio para atuar como guitarrista e backing vocal, mas também passou a protagonizar o papel de 'pomo da discórdia' em todas as gravações de estúdio e nas turnês, em conflitos que terminaram por levar ao fim da banda. Wright deixou o grupo em 1979 e Waters, que assumiu o posto de líder depois da saída de Barrett, declarou em 1985 o fim do Pink Floyd. Mas a história teria ainda um triste capítulo: inconformado com o fim da banda, Gilmour promoveu uma longa e intensa batalha na Justiça para continuar usando o nome e o repertório do Pink Floyd. 



Processos e reprises diluídas



Por fim, David Gilmour acabou ganhando a causa, com um arsenal de liminares e advogados. Em seguida, montou uma nova banda (com participação ocasional de Mason e Wright) e lançou dois álbuns usando o nome Pink Floyd, com reprises diluídas e previsíveis dos grandes sucessos da banda – "A momentary lapse of reason” (1987) e “The division bell” (1994). A maioria dos críticos e dos fãs, entretanto, preferem considerar discos e shows de Gilmour como trabalho solo, da mesma forma que muitos consideram “The final cut” (1983) um trabalho solo de Roger Waters, mesmo que ele seja na temática e na técnica um disco do Pink Floyd e tenha contado com participação de todos os músicos da banda original, à exceção de Richard Wright. 

 




.








Pink Floyd na Lua: no alto, um inflável gigante
chega ao Central Park, em Nova York, para o
cenário do show Animals, do Pink Floyd, em
maio de 1977. Acima, o reencontro do Pink Floyd
no Hyde Park: David Gilmour, Roger Waters,
Nick Mason e Richard Wright no palco para o
show em Londres, em 2005, no concerto beneficente
Live 8”. Abaixo, David Gilmour, Nick Mason,
Roger Waters e Richard Wright no deserto de
Zabriskie Point, na Califórnia, cenário do
filme de 1970 de Michelangelo Antonioni,
fotografados em 1973 por Storm Thorgerson
para o encarte de The Dark Side of the Moon










 
Em 2005, depois de quase duas décadas, os integrantes do Pink Floyd voltariam a se reunir para uma única apresentação no concerto beneficente 'Live 8'. Depois disso, Wright morreu em 2008 e somente em 12 de maio de 2011 Roger Waters, Mason e Gilmour voltaram a se encontrar no palco, em Londres, para um show de Waters na 'The Wall Tour'. Tocaram juntos dois clássicos do Pink Floyd: 'Comfortably numb' e 'Outside the Wall' – não por acaso outra homenagem a Syd Barrett – cuja presença, ideias e personalidade levaram Waters à criação de Pink, personagem central em 'The Wall', o disco e o filme, autêntica ópera-rock escrita por Waters e dirigida por Allan Parker em 1982.

A experiência de ouvir 'The dark side of the Moon' pode ser quase transcendental. Conheci o disco quase uma década depois do lançamento, quando ganhei o LP de presente de aniversário. Foi uma descoberta e tanto – que ainda perdura com toques de nostalgia a cada vez que ouço o disco ou apenas uma ou outra de suas dez canções. Sua mistura de beleza e estranhamento, com o passar do tempo, tem reforçado as lendas, que vão da simetria impressionante dos acordes do disco com as cenas do filme 'O mágico de Oz', de 1939, à inserção quase mística de mensagens cifradas e frases inteiras com ruídos bizarros do programa de TV do grupo de comediantes Monty Python, idolatrado pelos integrantes do Pink Floyd e por sua legião de fãs.










Imagens raras: todos os integrantes
do Pink Floyd com Syd Barrett (no alto)
David Gilmour (sentado), reunidos
na mesma foto, em 1973. Abaixo,
David Gilmour e Syd Barrett de pé e
a nova formação da banda, também
em 1973, na primeira foto promocional
após a decisão de afastar Syd Barrett.

Também abaixo, na foto em cores,
uma das últimas imagens promocionais do
grupo produzidas por Storm Thorgerson
em Londres, no início dos anos 1980



















O lugar de Syd Barrett



As lendas sobre o disco e suas versões saborosas são alimentadas por suas sucessivas reedições em novos formatos e suportes – entre elas a recente "The dark side of the Moon – Immersion box set", com seis CDs e DVDs que incluem remasterizações, demos, documentários e muitas entrevistas com o grupo e com técnicos que participaram das gravações no estúdio Abbey Road, entre junho de 1972 e janeiro de 1973, com participação importante do produtor Alan Parsons. Também não faltam itens de colecionador na memorabilia da banda – com destaque para o documentário 'Classic Albums: Pink Floyd and the making of The dark side of the Moon' (DVD, 2003), de Matthew Longfellow, e duas biografias, semelhantes e complementares.

Os dois livros, que receberam títulos quase idênticos no Brasil, foram escritos por jornalistas reconhecidos como especialistas: 'Os bastidores de The dark side of the Moon' (Editora Zahar), de John Harris, e 'Nos bastidores do Pink Floyd' (Editora Évora), biografia do grupo assinada por Mark Blake. Tanto Harris como Blake vão fundo nos detalhes da história da banda, reunindo depoimentos surpreendentes, mas ambos coincidem no destaque e no carisma de Syd Barrett, que contagiava a todos de imediato.












"Syd Barrett era um jovem com imenso e estranho carisma. Quando saiu da banda, inicialmente seus amigos acharam muito difícil continuar sem ele”, escreve Mark Blake, para quem o criador e mentor do Pink Floyd foi um poeta brilhante e um guitarrista dos melhores e mais inovadores, dos primeiros a explorar por completo as capacidades sonoras da distorção, as variações da técnica do instrumento e novidades que estavam surgindo, entre elas a máquina de eco. Syd Barrett, conclui Blake, influenciou em definitivo não só todo o som personalíssimo e incomum do Pink Floyd, mas também tudo o que foi feito por diversos músicos, diversas bandas e diversos artistas depois dele. Não é pouco.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Pink Floyd na Lua. In: _____. Blog Semióticas, 24 de março de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/03/pink-floyd-na-lua.html (acessado em .../.../...).



Para visitar o site oficial do Pink Floyd, clique aqui.
 















2 de fevereiro de 2013

Bodas do 'boom'






Tenho me perguntado muitas vezes: escreveria
ainda se me dissessem, hoje, que amanhã uma
catástrofe cósmica destruirá o universo, de modo
que ninguém poderá ler aquilo que hoje escrevo?
–– Umberto Eco, "Sobre a literatura" (2002).  

 
Foi no início da década de 1960 que leitores do mundo inteiro tiveram as primeiras notícias sobre uma nova safra de grandes escritores de países da América Latina. Surgiam nomes que pelas afinidades ou pelas semelhanças de estilo e temática pareciam formar um grupo organizado, como os argentinos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares; o colombiano Gabriel García Márquez; os peruanos Carlos Castaneda, José María Arguedas e Mario Vargas Llosa; os cubanos José Lezama Lima, Alejo Carpentier e Guillermo Cabrera Infante; os mexicanos Juan Rulfo, Octavio Paz e Carlos Fuentes; os chilenos Pablo Neruda, Violeta Parra e José Donoso; o guatemalteco Miguel Ángel Asturias; os bolivianos Gastón Suárez e Marcelo Quiroga Santa Cruz; os venezuelanos Salvador Garmendia e Miguel Otero Silva; o nicaraguense Ernesto Cardenal; o paraguaio Augusto Roa Bastos; os uruguaios Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti e Eduardo Galeano; ou os brasileiros Guimarães Rosa, Jorge Amado, Clarice Lispector, Murilo Rubião e José J. Veiga, entre outros – alguns deles presentes em todas as listas que se referem ao "boom", outros sem alcançar o lugar de classificação unânime ou só incluídos a partir das décadas seguintes.

A novidade: a literatura que estes autores apresentavam a leitores da Europa, dos Estados Unidos e de outros países era bastante diferente do lugar comum e imprevisível em suas variações de romances, novelas, contos, poemas. Mas, ao mesmo tempo, trazia semelhanças com clássicos da Literatura Universal, com recursos do fantástico e do mundo das fábulas a conduzir narrativas primorosas sobre a vida real nos trópicos, na periferia do capitalismo, nos confins da América Central e da América do Sul. Com seus impasses rurais e urbanos de toda ordem, seus fantasmas e assombrações muito peculiares e suas interfaces de magia, de insólito, de sobrenatural, de crueldade, a nova literatura da América Latina surgia com um inesperado sucesso de crítica e de vendas, surpreendendo até os mais céticos e seduzindo uma multidão de novos leitores pelo mundo afora.

O inumano, a metalinguagem e seres do mundo da imaginação invadiam de forma poética narrativas que muitas vezes fugiam às categorias estanques de gênero ou tornavam relativas estas fronteiras, quase sempre com destaque no viés de crítica aos dramas da realidade social – daí a definição que abarcaria grandes autores e obras da América Latina daquele momento: o “boom” do Realismo Mágico ou Realismo Fantástico ou Realismo Maravilhoso, nomenclatura sujeita a sutilezas de classificação e que também não alcança unanimidade entre críticos e teóricos da literatura ou dos estudos culturais. Sobre todos, há pelo menos um consenso: Borges, que foi um dos patronos e antecessores do grupo. Com seus textos híbridos entre ensaio e ficção, em que o assunto é quase sempre a própria literatura, reunidos em livros como “Ficciones” (1944) e “El Aleph” (1949), Borges é o primeiro nome do “boom” a alcançar o leitor médio e a crítica acadêmica do Primeiro Mundo (veja também "Semióticas: Outros Borges").












Gigantes no "boom" do Realismo Mágico:
no alto e acima, Cortázar em Paris, em 1964,
no quarto de trabalho e às margens do
Rio Sena, fotografado por Pierre Boulat.
Acima, Borges em Buenos Aires. Abaixo,
os amigos se encontram: Julio Cortázar,
Carlos Fuentes e o cineasta Luis Buñuel;
Cortázar com José Lezama Lima em Cuba;
Gabriel García Márquez com Cortázar;
e Ernesto Cardenal e Eduardo Galeano
com Cortázar no México, em 1980.

Também abaixo, Borges em Nova York,
em 1969, fotografado por Diane Arbus;
e a capa de Los Nuestros, livro de 1966
de Luis Harss relançado em 2012, em
espanhol, pela Editora Alfaguara




 
 
 
 
 











Mais de quatro décadas depois das primeiras edições de seus livros em espanhol, Borges finalmente seria publicado em francês, em inglês, em italiano, em português e em outros idiomas pelo mundo afora. Sua literatura, encadeada em textos breves e da maior complexidade, surge para seus compatriotas e para seus leitores estrangeiros com a originalidade de uma “obra aberta”  como definiria com propriedade Umberto Eco, referindo-se a certas possibilidades de cooperação interpretativa nas trilhas da "semiose ilimitada" fundadas pela semiótica de Charles Sanders Peirce.

Borges e sua literatura cativam os principais expoentes do Estruturalismo e levam Michel Foucault declarar, em 1966, no prefácio de “As Palavras e as Coisas”, publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes: Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”.



Meio século de história



Talvez Borges seja um dos consensos possíveis sobre aquele grupo de autores, mas sempre houve muitas controvérsias sobre as origens e as motivações do “boom”. Sabe-se que o termo, para se referir à literatura latino-americana, foi usado pela primeira vez por um escritor e jornalista chileno, Luis Harss. No mesmo ano em que Foucault publicava na França “As Palavras e as Coisas”, Harss lançava seu livro “Los Nuestros”, em que mistura depoimentos, reportagem e crítica para investigar o fenômeno da repercussão internacional de certas obras e certos autores, algo sem precedentes na literatura da América Latina.

O livro de Harss, relançado em 2012 pela Editora Alfaguara, foi o resultado de uma série de entrevistas do autor com 10 escritores latino-americanos por ele considerados os mais representativos daquele momento: Jorge Luis Borges, Miguel Ángel Astúrias, Guimarães Rosa, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, García Márquez e Vargas Llosa. Houve controvérsias, já que a lista de entrevistados deixou de fora e sequer mencionou nomes que expoentes da crítica em países da Europa já destacavam como protagonistas do renascimento da literatura na América Latina, entre eles Clarice Lispector, José Donoso, Ernesto Sabato, José María Arguedas, Augusto Roa Bastos ou Guillermo Cabrera Infante. Contudo, desde então formou-se um certo consenso entre pesquisadores para o reconhecimento de que Harss exerceu papel pioneiro na criação do cânone e da primeira carta de navegação relevante sobre o "boom".
 












Harss destaca entre os autores do grupo uma nova relação com a linguagem da forma literária, francamente experimental e política, e propõe um marco inaugural: várias foram as publicações que prepararam o terreno, incluindo as primeiras edições de Borges na França, na segunda metade da década de 1950, além de títulos importantes de outros autores nos anos seguintes, mas ele situa em 1963 o primeiro grande momento do “boom” latino-americano, com a publicação simultânea em espanhol, francês e inglês de um livro ímpar: “Rayuela” (no Brasil, “O jogo da amarelinha”), de Cortázar. Pelas coordenadas traçadas por Harss, o “boom” completa, em 2013, 50 anos de história.

Do Terceiro Mundo para o Velho Mundo: a partir de uma reflexão sobre a situação política e social da América Latina, autores em países diferentes, e que sequer se conheciam, transformaram em literatura da melhor qualidade, na mesma época, os absurdos e o insólito da vida cotidiana. Povoada de tradições exóticas e de cenários desconhecidos, repleta de apelos ao sobrenatural, a literatura da América Latina pela primeira vez ganharia projeção internacional, passando a exercer considerável influência sobre a obra de importantes pensadores e ficcionistas até nossos dias, incluindo, entre muitos outros, Italo Calvino, José Saramago, Susan Sontag, Umberto Eco, Homi Bhabha, Salman Rushdie, Roberto Bolaño.










Viagem a Paris: três expoentes do “boom”

e suas esposas, em foto de 1969 – a partir

da direita, Mario Vargas Llosa e Patricia;

José Donoso e Pilar; Mercedes e Gabriel

Garcia Márquez. Também acima, a capa

de junho de 1967 da revista Argentina

Primera Plana, publicação pioneira ao

destacar os autores do boom e o

lançamento de Cem anos de solidão.


Abaixo: 1) um encontro de García Márquez e

Vargas Llosa em fevereiro de 1976, época

em que os dois romperam relações por conta

de ciúmes conjugais e pelas posições políticas

de Vargas Llosa de apoio a políticos de direita

e às ditaduras militares na América Latina;

2) Pablo Neruda e García Márquez brincam

com a pose de uma estátua na Normandia,

em visita à França, em 1969; 3) Pablo Neruda

em visita ao Brasil em 1945, fotografado na

praia de Ipanema, no Rio de Janeiro;

4) Vinicius de Moraes e Pablo Neruda em

visita a Ouro Preto, Minas Gerais, em 1968;

5) García Márquez com Jorge Amado em

Salvador, Bahia, na década de 1970, fotografados

por Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado;

6) García Márquez em Barcelona, em 1970;

7) García Márquez e Carlos Fuentes na

Feira do Livro de Barcelona em 2008;

e 8) García Márquez no Méxicofotografado por

Daniel Mordzinski em 2009, quando declarou

em entrevista ao jornal El País que havia se

aposentado e que não pretendia mais escrever






















 





 
Contudo, do lado de dentro das fronteiras de cada país do continente latino-americano, o contexto político daquele momento histórico era explosivo e dos mais sombrios. A resposta à Revolução Cubana em 1959 foram, nos anos seguintes, os regimes de exceção e as ditaduras militares, instaladas simultaneamente na maior parte dos países da região com apoio dos Estados Unidos. Esta nova realidade, que despertou uma mistura de sentimentos de utopia e desejo de justiça, também gerou alegorias transformadas em obras-primas da Literatura Universal.



Da América Latina à Europa



O estudo publicado em 1966 por Luis Harss já apontava para as semelhanças e diferenças – tanto entre obras e autores incluídos no “boom” do Realismo Mágico, quanto entre este movimento e as vanguardas modernistas nas primeiras décadas do século 20. Se é inquestionável que o “boom” produziu obras-primas que permanecem há mais de meio século como influência e referência, também é certo que ele nunca teve qualquer padrão estético coeso. Em outras palavras, parodiando um célebre aforismo sobre Minas Gerais de Guimarães Rosa, também ele um expoente entre estas referências: no “boom”, são vários.













Em sua grande maioria, os autores do “boom” sempre estiveram comprometidos com apoio aos movimentos populares de resistência à censura e à repressão instaladas pelas ditaduras militares em seus países de origem. Alguns deles foram exilados e outros, como Cortázar, chegaram a empreender jornadas internacionais pela Anistia e pelos Direitos Humanos, mas nenhum deles chegou a apresentar algum manifesto ou programa de ação – prática frequente da militância entre as vanguardas da arte no começo do século 20.

Pelo contrário. Não houve nenhum “alinhamento”, nenhuma “meta programática”. Tanta variedade e liberdade acabou fornecendo fôlego às críticas: os detratores do “boom” existem, ainda que sem grande influência ou ressonância, e costumam se apegar ao argumento de que o grupo não tinha coesão e que tudo não passou de marketing editorial. Mas talvez tal argumento seja mesmo um equívoco: afinal, as obras-primas lançadas naquele período são um contraponto inquestionável.

A diversidade de autores e obras nomeados com o rótulo de Realismo Mágico é evidente. Basta lembrar que um dos destaques incluídos no “boom” foi o cânone maior da literatura do Brasil, Machado de Assis (1839–1908), um mestre do século 19, traduzido e publicado nos Estados Unidos e na Europa na mesma época e no mesmo pacote editorial que reunia, entre outros “estreantes”, Borges, Cortázar, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Vargas Llosa, García Márquez, Guimarães Rosa, Jorge Amado (veja também "Semióticas: O Bruxo e a crítica internacional").






Machado de Assis: cânone brasileiro
do século 19 surge em destaque no
"boom" do Realismo Fantástico









Contracultura, o contexto libertário



Também há controvérsias quanto ao tempo de duração do “boom”, mas com frequência se destaca o período que vai de 1963, com a publicação de “Rayuela”, até, para alguns, a data de 11 de setembro de 1973, com o golpe militar contra o governo de Salvador Allende no Chile, enquanto para outros o período se estende até 1982, ano em que se concede o Prêmio Nobel de Literatura a García Márquez. Não por acaso, é também no ano de 1982 que muitos países da América Latina começam o retorno a regimes democráticos, depois dos tempos sombrios de violência e censura das ditaduras militares. Mas este período historiográfico também não deixa de ser uma demarcação aleatória, sujeita a variáveis – há quem defenda também outros eventos para a demarcação inicial, entre eles o marco em 1962, ano da publicação de “Historias de cronopios y de famas”, de Cortázar, ou em 1959, ano da Revolução Cubana.

As controvérsias e questionamentos fazem todo sentido, ainda mais que os nomes principais do “boom” haviam publicado muito antes de 1963 e continuaram a produzir e publicar até muito depois do ano de 1982. Outras datas com frequência apontadas como marcos de importância para assinalar o fim, ou mesmo para um novo renascimento do “boom”, incluem o ano de 1986, quando morreu Borges, decano do grupo, ou o ano de 2010, quando outro baluarte do movimento que destaca a literatura da América Latina, o peruano Vargas Llosa, também seria condecorado com o Prêmio Nobel de Literatura.







D




Três obras de Borges que foram adaptadas
com sucesso para o cinema: acima, uma cena
de A Estratégia da Aranha, filme de 1970
com direção de Bernardo Bertolucci; e
Borges durante as filmagens de Invasión,
filme de 1969 de Hugo Santiago com roteiro
de Borges e Adolfo Bioy Casares (na foto,
a partir da esquerda, o diretor de fotografia
Ricardo Aronovich, o cineasta Hugo Santiago,
Jorge Luis Borges e o ator Lautaro Murúa);
no alto, cartaz de A Intrusaco-produção
entre Brasil e Argentina, de 1979, com
direção de Carlos Hugo Christensen.
Abaixo, uma cena do filme de 1965
A hora e a vez de Augusto Matraga,
versão do cineasta Roberto Santos
para o conto que encerra "Sagarana",
livro de João Guimarães Rosa.

Também abaixo, o fotógrafo no estúdio
em Blow Upversão de 1967 de
Michelangelo Antonioni para o
Cortázar de Las Babas del Diablo;
Week-End à Francesa, versão também
de 1967 de Jean-Luc Godard para a
narrativa A auto-estrada do sulde
Cortázar; e uma cena de Erêndira,
filme de 1983 de Ruy Guerra com
roteiro de García Márquez baseado
em sua novela La increíble triste
historia de la cândida Erêndira
y de su abuela desalmada







A descoberta da literatura da América Latina por leitores do Primeiro Mundo vem no contexto libertário da Contracultura – tempos da Guerra Fria, da novidade da TV e da dominação cultural norte-americana avançando pelos cinco continentes. É também a época em que ganham força protestos da juventude, o recém-criado rock'n'roll, o movimento estudantil, mobilizações pelos direitos civis, as passeatas pacifistas, as rupturas lançadas pelo comportamento inconformista e pela literatura libertária da geração beat – por sua vez mentores e avatares da experiência em sociedades alternativas, em viagens esotéricas de autoconhecimento, em religiões orientais, em rituais de shamanismo e de alucinógenos.

Neste cenário, o “boom” da literatura latino-americana encontra terreno fértil. Rapidamente assimilado, desatou a imaginação de leitores e de outros autores, convocou o humor e a ironia em situações das mais alegóricas e criou novas formas narrativas que foram absorvidas pela Literatura Universal. Não é um legado pequeno, ainda que seja possível estabelecer toda uma rede de filiações dos escritores do “boom” a certas obras e autores como James Joyce, William Faulkner, Franz Kafka – com reflexos que transparecem como influência ou referência direta em “Rayuela”, em “Pedro Páramo”, em “Cien Años de Soledad” e em boa parte do que o Realismo Mágico produziu.






Week End (1967)

.



 

As narrativas do trio Faulkner-Joyce-Kafka são fundamentais à literatura do “boom”, mas há outras obras que prevalecem como referência direta, entre elas "As Vinhas da Ira" ("The Grapes of Wrath"), romance de 1939 de John Steinbeck. Virginia Woolf também ganha destaque como forte influência para alguns, caso de García Márquez, Cortázar e Clarice Lispector, assim são referências importantes para vários autores do “boom” os escritos experimentais lançados por Guillaume Apollinaire e todo o Modernismo dos surrealistas franceses. Porém, nem tudo é século 20.

Pairando sobre todos, inevitável, no “boom”, está a sombra de Edgar Allan Poe, além das clássicas novelas de ficção científica, enquanto Borges, Cortázar, Guimarães Rosa e outros também rendem tributo a Machado de Assis, mestre nas artimanhas do fantástico e nas alegorias construídas no jogo narrativo, não por acaso também leitor devotado e tradutor de Poe. Na lista de mentores e precursores em evidência ainda há Goethe, Byron, Baudelaire, Rimbaud, Flaubert, Swift, Shakespeare, Rabelais, o romance medieval de Cervantes, os contos árabes de Sherazade, a mitologia pagã da Antiguidade, a Torá e os evangelhos da Bíblia Sagrada, entre outros títulos enumerados nas estantes da Biblioteca. Sobre esta rede quase infinita de influências e de precursores, Borges, o visionário, guardou um comentário definitivo: os livros sempre falam entre si e isso não depende de os autores terem se conhecido.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bodas do “boom”. In: Blog Semióticas, 2 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/bodas-do-boom.html (acessado em .../.../…).



Clássicos do Realismo Fantástico nas livrarias:















No alto, "Música de banda" (1960),
fotografia de Juan Rulfo. Acima,
ilustração na capa da primeira edição
de “Cien años de soledad”, de
Gabriel García Márquez, publicada
em 1967 por Editorial Sudamericana.
Abaixo, fotografia de um antigo catálogo
de roteiro turístico da Colômbia indicando
a aldeia fictícia de Macondo criada pela
literatura de García Márquez










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