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23 de março de 2016

Sagrado e Profano em Chagall





A Bíblia é um drama mundano o mundo é uma parábola religiosa. 
 
––  Marc Chagall (1887-1985).   
...........

Arte e Religião sempre estiveram muito próximas – desde o mais remoto da experiência humana. É desta constatação que parte Walter Benjamin em seu ensaio fundamental “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, publicado pela primeira vez em 1936, para destacar que as mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. Benjamin, passo a passo com importantes historiadores e filósofos dos últimos séculos, aponta que as relações entre Arte e Religião conduziram a vida em sociedade em uma simbiose por vezes implacável, fortalecida em momentos capitais como o Renascimento e, posteriormente, com o Barroco.

Arte e Religião também se fundem nas obras-primas de alguns dos grandes artistas no último século – com um florescimento dos mais especiais na obra de Marc Chagall, um dos artistas incomparáveis do século 20. Considerado por muitos o maior de todos os mestres da cor na Arte Moderna, pintor, ceramista, gravurista, artista gráfico, desenhista e com uma trajetória que sempre buscou novos suportes e formatos para a arte, Chagall está recebendo uma grande celebração na Espanha com a abertura de uma mostra retrospectiva inédita sobre sua extensa obra com temática de inspiração religiosa.

Intitulada “Chagall. Divino y Humano”, a exposição está aberta ao público na Fundação Canal (veja link para uma visita virtual no final deste artigo), em Madri, reunindo mais de uma centena de obras originais em técnicas de litografia, xilogravura e gravura, incluindo obras sobre papel, criadas entre as décadas de 1940 e 1980. Com curadoria a cargo de Ann-Katrin Hann, conservadora chefe do museu Pablo Picasso de Münster, que tem sede na Alemanha e de onde vêm muitas das obras reunidas na exposição, “Chagall. Divino y Humano” lança luzes sobre esta que talvez seja a parte mais evidente e também menos estudada sobre o grande mestre da cor.







Sagrado e Profano em Chagall:
no alto, o artista no ateliê em Paris, em
1955, em frente a Le roi David, pintura
em óleo sobre tela de 1952. Acima, em
família, com a esposa, Bella Rosenfeld,
e a filha, Ida, fotografados em 1933,
em Paris, por André Kertész.

Abaixo, uma amostras das primeiras
obras de Chagall produzidas sob
influência das vanguardas, em 1911,
que foram batizadas por seu amigo
Blaise Cendrars: Moi et le Village
(Eu e a Vila) e Le soldat boit
(O soldado bebe). Também abaixo,
duas das primeiras obras-primas de
Chagall com temática de inspiração
religiosa, Tentation (Adam et Eve)
e Calvaire, pinturas em óleo
sobre tela de 1912


 












Judeu da Bielorrússia



Sempre lembrado e homenageado por sua pintura de formas alegóricas e multicoloridas em óleo sobre tela, Marc Chagall também merece lugar de destaque entre os principais artistas gráficos do século 20 – como comprova o recorte temático sobre suas obras-primas de inspiração religiosa reunidas em Madri. Com frequência rotulado como “surrealista”, por conta de sua obra difícil de classificar, só comparável a outros grandes mestres e pontuada de referências oníricas, Chagall nasceu em Vitebsk, nordeste da Bielorrússia, no antigo Império da Rússia, em uma família de fortes tradições judaicas – detalhe biográfico que ilumina a interface religiosa tão presente em sua obra.

Na juventude, uma década antes da Revolução Russa de 1917, Marc Chagall era um aluno dedicado e promissor da tradicional Academia de Arte de São Petersburgo quando uma bolsa de estudos para duas semanas em Paris mudou radicalmente o destino. Na capital da França, depois de entrar em contato com os artistas e escritores das vanguardas, Chagall decidiu não retornar à Rússia no prazo previsto. Encantado com as experiências radicais dos movimentos modernistas e com a vida boêmia de Montmartre, permaneceu por anos em Paris, onde tornou-se amigo de nomes como Picasso, Kandinsky, Cendrars, Modigliani e, especialmente, Guillaume Apollinaire.








Sagrado e Profano em Chagall:
beijos e casais em cenas amorosas
segundo a arte do mestre da cor
nas pinturas em óleo sobre tela de
sua primeira fase, produzidas antes
da Primeira Guerra Mundial – acima,
Les amoureux, de 1913, e Les
amants en bleus, de 1914.
Abaixo, Aniversaire, de 1915,
Amateurs en Rouge (1916)









Nesta época surgem suas primeiras obras produzidas sob a inspiração dos novos amigos de vanguarda – três pinturas em óleo sobre tela de 1911 que foram batizadas por Blaise Cendrars: “Moi et le Village” (Eu e a Vila), “Le soldat boit” (O soldado bebe) e “La Pluie” (A Chuva). Depois de Cendrars, foi Appollinaire quem assumiu o papel de mentor do jovem Chagall, sendo o primeiro a destacar o talento do estreante entre os grandes da Arte Moderna – e também foi Appollinaire quem selecionou obras do jovem quase desconhecido para uma importante mostra das vanguardas em Berlim, em 1914, pouco antes da explosão da Primeira Guerra Mundial. A guerra na Europa forçou o retorno de Chagall a seu país, onde ele se casaria com Bella Rosenfeld, que conheceu quando ainda era adolescente em sua aldeia.



Comissário para as Belas Artes



Bella, segundo os biógrafos, foi o grande amor de Chagall e sua inspiração da vida inteira. Com a Primeira Guerra mudando rapidamente o cenário da Europa, vem a Revolução de 1917 na Rússia e novos desafios para Chagall, que foi nomeado comissário do povo para as Belas Artes em sua cidade natal Vitebsk. Empossado no cargo oficial, Chagall teve a iniciativa de inaugurar a primeira escola de Arte Moderna na Rússia – com a meta de que ela estivesse aberta à variedade das tendências modernistas que conheceu em sua temporada na França. Porém, desentendimentos com outro gigante das vanguardas, Kasimir Malevich, levaram Chagall a desistir do cargo e a voltar em definitivo para Paris.









        




Sagrado e Profano em Chagall:
acima, os amigos Pablo Picasso e
Marc Chagall em 1955, em St. Paul
de Vence, França, fotografados
por Philippe Halsman; e Chagall
no ateliê em Paris, em 1934, em
fotografia feita no processo de
autochrome por Roger Violett.

Abaixo, uma pintura em óleo sobre
tela de 1938 com tema bíblico,
La crucifixion blanche (A crucificação
branca), e La résurrection, aquarela
sobre papel de 1948. Também abaixo,
uma seleção de três imagens da
série de gravuras produzidas sob
encomenda para ilustrar edições da
Bíblia Sagrada apresentadas na
exposição em Madri: Moisés e a
Serpente (1956); Moisés e as
Tábuas Sagradas (1952);
A Crucificação (1952)



















O trabalho fantástico e colorido de Chagall, que talvez somente encontre paralelos em alguns poucos de seus contemporâneos – especialmente no espanhol Pablo Picasso, no francês Henri Matisse e em outro russo, Vassily Kandinsky – avançou para outras técnicas, outros suportes, depois de suas primeiras experiências com pintura em óleo sobre tela nos movimentos de vanguarda do início do século passado. A partir da década de 1920, passaria também a incluir em seu trabalho as ilustrações, desenhos e gravuras produzidos sob encomenda para reprodução em livros e revistas.

Nesta dedicação às ilustrações e artes gráficas sob encomenda, a Bíblia Sagrada iria ocupar um lugar de destaque. De 1931 a 1939, Chagall criou 66 gravuras sobre temas bíblicos, encomendadas pelo comerciante de arte e editor francês Ambroise Vollard – mas o trabalho foi interrompido quando explodiu a Segunda Guerra Mundial. Com a tomada da França pelas tropas nazistas de Adolf Hitler, Chagall parte em 1942 para o exílio nos Estados Unidos. Desde a década de 1930, com a perseguição aos judeus pelo Nazismo, sua obra já havia incorporado a questão política em tons sombrios: judeu convicto, Chagall começou a denunciar com sua arte as tensões e depressões sociais e religiosas que sentia na pele. Assim que a guerra foi deflagrada, em 1939, o regime Nazista classificou oficialmente as obras de Chagall como arte degenerada.







Sagrado e Profano em Chagall:
gravuras apresentadas na mostra
sobre Chagall em Madri – acima,
a cena dos namorados românticos
em Les Amoureux de la Tour Eiffel
(Amantes da Torre Eiffel, de 1960),
em que o monumento de Paris vem
substituir a cruz em cena que remete
ao sofrimento após a Crucificação.

Abaixo, Paysage bleu (Paisagem azul,
1958), referência direta a Maria que tem
nos braços Jesus Cristo, na tradicional
cena da “Pietá”; La descente de croix
(O descimento da cruz), a Paixão de
Cristo na versão surrealista, em pintura
de 1976; e a alegoria representada com
os Três Reis Magos que assumem
feições de animais em
Les trois acrobates (1957)












Folclore, sonhos, fragmentos do real



De volta a Paris, depois da Segunda Guerra, Marc Chagall concluiu a série sobre a Bíblia que soma 105 trabalhos incomuns, sempre com animais e figuras circenses, festivas, mais humanistas do que exatamente “religiosas”. Da série sobre a Bíblia, 20 figuras estão na exposição em Madri – entre elas “Moisés e a Serpente” (1956), “Da Criação do Homem” (1958) e A Crucificação” (1952). Das centenas de ilustrações e artes gráficas produzidas sob encomenda por Chagall, também estão reunidas na mostra gravuras de várias edições sobre as Fábulas de La Fontaine e 15 das 96 ilustrações em preto e branco da série “Les Âmes Mortes”, criada para ilustrar o romance “Almas Mortas”, de Nikolai Gogol, publicado pela primeira vez em 1848 e considerado uma das obras mais marcantes da literatura russa do século 19.

Chagall começou a trabalhar nas ilustrações para as cenas e personagens de “Almas Mortas” na década de 1920, mas o projeto foi adiado com a morte do editor Ambroise Vollard e a publicação só se concretizou em 1948, com o lançamento de uma luxuosa edição comemorativa do centenário do livro de Gogol. A edição, com pouco mais de 300 exemplares, que se tornaria uma obra de arte disputada por colecionadores e museus do mundo inteiro, foi patrocinada pela casa editorial Tériade, fundada pelo grego Stratis Eleftheriades. A colaboração entre Chagall e Tériade deu origem a cinco livros ilustrados com litografias e gravuras que são apontados com frequência como marcos das artes gráficas na segunda metade do século 20: são eles, além de “Almas Mortas”, as “Fábulas de La Fontaine” (1952); a “Bíblia Sagrada” (1956); o romance “Dáfnis e Cloé” (1961), do escritor grego Longo, que viveu no século 2 antes de Cristo; e “Circus”, coleção de gravuras, pinturas e desenhos de Chagall sobre a temática do circo, publicado em 1972.    

Outras vertentes de temática com inspiração religiosa na obra extensa de Chagall estão representadas em Madri através de fotografias – caso dos objetos em cerâmica, das tapeçarias, das séries em vitrais, dos mosaicos e dos painéis murais que produziu para catedrais e sinagogas na França (incluindo o design, pinturas e detalhes em relevo do novo teto para a Ópera de Paris, em 1964), nos Estados Unidos e em Israel, sob encomenda para a Universidade Hebraica e o Parlamento de Jerusalém, entre vários outros trabalhos – além dos projetos de cenários, figurinos e adereços que desenvolveu para espetáculos de teatro e balé. O resultado é uma fascinante policromia que une, fora de qualquer contexto racional, fontes folclóricas, citações religiosas, lembranças, cenas oníricas, premonições, fragmentos do real – em abordagens que ainda hoje impressionam.
















.






Sagrado e Profano em Chagall:
a partir do alto, detalhe do teto da
Ópera de Paris, em design, pinturas
e relevos criados em 1964 por Chagall;
o mosaico em técnica mista que representa
Profeta Elias, criado em 1970 e instalado
no Museu Marc Chagall em Nice, França;
e quatro das 96 gravuras de Chagall criadas
sob encomenda para ilustrar um clássico
da literatura russa, o romance de
Nikolai Gogol, Almas Mortas.

Abaixo, La Saint Famille: Maria, o menino
Jesus e José de Nazaré, a Sagrada Família,
em litografia de 1970 de Chagall; Four Seasons
(Quatro estações), mural em cerâmica construído
em mosaico por Chagall em 1972 e instalado na
Chase Tower Plaza, em Chicago (EUA);
seguido de Les amoureux de Vence, de
1957, e a religiosidade traduzida em
duas obras-primas de 1966: Noé et l'Arc en
Ciel (Noé e o Arco-Íris) e Abraham et les
Trois Anges (Abraão e os Três Anjos).
No final da página, imagens da exposição
na Fundação Canal, em Madri, e Chagall
fotografado em janeiro de 1964 por
Lee Lockwood em frente aos vitrais
criados pelo artista para a sede
da ONU em Nova York











Se um artista como Marc Chagall combina tão bem, como poucos, o divino, o mito, as tradições, muitos poderiam esperar que ele fosse alguém muito apegado à religião – mas não era. Chagall sempre declarou que nunca foi um homem religioso nem devoto ou praticante de nenhuma fé específica, e sim muito preocupado com o transcendente em cada experiência vivida e com a liberdade para todas as religiões. Tal distanciamento sobre os dogmas e doutrinas por certo contribui para que a arte personalíssima de Chagall encontre alegorias, analogias e equivalentes visuais que traduzem de forma surpreendente os textos bíblicos em suas metáforas, hipérboles, parábolas.

“O artista verdadeiramente grande busca o universal que está presente em todas as práticas da fé” – assinala uma das frases de Chagall, afixada na abertura da mostra em Madri, que de certo modo contribui para que o observador, seja ele laico ou religioso, possa penetrar na essência do que o imaginário do artista representa em relação a questões do sagrado e também do profano. Em outra frase, também destacada na exposição, Chagall afirma que “a Bíblia é um drama mundano e o mundo uma parábola religiosa”.











O acervo de Chagall apresentado na Fundação Canal, com um ambiente cenográfico que reproduz o interior de uma sinagoga, está dividido em três seções. Na primeira, “Divino e Humano”, obras de diversas séries e fases do artista fundem a profundidade humana de seus autorretratos e a alegria do mundo do circo a cenas religiosas, expressando tanto suas memórias da terra natal quanto referências diretas e indiretas ao Antigo e ao Novo Testamento – tema de tal recorrência e abrangência na arte produzida por Chagall que levou a França a homenageá-lo com a criação do Museu da Mensagem Bíblica de Marc Chagall, instalado desde 1973 na cidade de Nice. Na segunda, “Almas Mortas”, cenas, tramas e personagens do romance de Nikolai Gogol estão representados em um apelo onírico e monocromático que mistura e revela, em matizes de papel envelhecido que vão do negro ao cinza, camponeses, rabinos, estalagens, artistas de circo e vacas que tocam violinos.

Na terceira seção, dedicada às ilustrações criadas sob encomenda de Ambroise Vollard para as edições da Bíblia Sagrada, as referências judaicas e cristãs de Chagall dividem o mesmo espaço pictórico, construindo uma iconografia completamente diferente daquela construída pela tradição do Ocidente deste a Idade Média. Em imagens sempre instigantes e surpreendentes, Chagall traduz versículos sobre passagens, profetas, patriarcas, mas deixa à margem representações mais conhecidas como Adão e Eva, Abel e Caim, Babel, as parábolas de Cristo, entre outras, para destacar aspectos menos reverenciados pelos artistas que o precederam. Não por acaso, um verso extraído de um poema que ele dedicou a sua amada Bella na década de 1920, citado na última seção da exposição em Madri, define à perfeição sua obra de inspiração religiosa, criativa e visionária, tão estranha quanto particular e incomparável: “Como Cristo, estou crucificado, pregado ao cavalete...”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Sagrado e Profano em Chagall. In: Blog Semióticas, 23 de março de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/03/sagrado-e-profano-em-chagall.html (acessado em .../.../...).


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Para uma visita virtual à exposição Chagall. Divino y Humano,  clique aqui.














27 de dezembro de 2012

Inventando a Abstração





Não devemos então renunciar ao objeto,
jogá-lo aos ventos, desnudar o abstrato?

(Wassily Kandinsky, 1911).   



Qual foi a grande revolução da arte no último século? Provavelmente a resposta vai apontar para a ruptura nos padrões artísticos inaugurada pelas vanguardas europeias na passagem do século 19 para o século 20. O que vem à frente são os impressionistas, Paul Cézanne, Claude Monet, Édouard Manet, Pierre-Auguste Renoir, Edgar Degas; as primeiras mulheres a alcançar reconhecimento e projeção, como Berthe Morisot, Marie Bracquemond, Mary Cassatt e Natalia Goncharova; o fauvismo de Vincent van Gogh e Henri Matisse; o primitivismo romântico de Paul Gauguin e Toulouse-Lautrec, entre outros grandes mestres das artes plásticas, artistas radicais que tornaram a percepção do espaço pictórico um contraponto ao realismo da imagem que a evolução das novas técnicas da fotografia proporcionava.

A partir do Impressionismo, paisagem e figuras nítidas, realistas, aos poucos cedem espaço a novas experiências: com a luz, com a cor, com a perspectiva. A obra de arte passa a expressar a imaginação, o mundo interior do artista, a distorção, a metalinguagem, o conceito abstrato. É o nascimento da Arte Moderna. O Impressionismo daria origem a séries de movimentos, de escolas e de estilos similares, nos anos seguintes e décadas, incluindo o Fauvismo, o Cubismo, o Primitivismo, o Expressionismo, o Futurismo, o Suprematismo, o Dadaísmo, o Surrealismo e suas variantes.

Para celebrar um século das grandes revoluções das vanguardas na arte, o MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, reuniu uma centena de artistas e 350 obras-primas que nunca haviam sido considerados em conjunto e que têm em comum um conceito multidisciplinar que perpassa todos os movimentos de vanguardas: a Abstração. São as obras-primas de um tipo novo e ousado de arte, que há 100 anos escandalizavam com formas abstratas os conservadores e o senso comum, habituados ao estilo realista e renascentista que perpetuava há séculos, como única possível, a arte greco-romana. 









Obras-primas de Kandinsky, pioneiro
da Abstração, em exibição no MoMA:
no alto, "Impression III (Konzert)",
de 1911, e dois estudos que precederam
a aquarela final. Abaixo, ilustração em
xilogravura de Kandinsky para a capa
de Der Blaue Reiter (O cavaleiro azul),
primeira edição de 1912 do almanaque
ilustrado e editado por Kandinsky e
por Franz Marc; e uma pintura de
Kandinsky com traços e cores abstratas
representando o cavaleiro e seu cavalo
criada em 1911 e que foi reproduzida
no mesmo almanaque. Todas as imagens

desta página foram extraídas do catálogo da
exposição Inventing Abstraction, 1910-1925









 
Ao reunir os primeiros passos da novidade radical, a mostra “Inventing Abstraction, 1910–1925” (Inventando a abstração) apresenta um roteiro diferente para a trajetória das vanguardas, fugindo ao lugar comum de selecionar certas obras como as mais representativas de cada movimento. No roteiro, a invenção da Arte Abstrata surge como uma rede que se move através de artistas e experiências, de Pablo Picasso e Georges Braque a Wassily Kandinsky, Duchamp, Mondrian, Malevich, Picabia, Kupka, Artaud, Man Ray e Georgia O'Keeffe, entre outros, em várias áreas de atuação e em nações diferentes. A rede converge para Paris no início do século 20.



Novo capítulo na História da Arte



Como o acervo de obras-primas, cedidas por diferentes museus e coleções de vários países, nunca havia sido antes reunido, a exposição representa um novo capítulo na História da Arte, no que se refere à Abstração – apontada como característica comum a todos os movimentos de vanguarda, mas nunca antes investigada como uma tendência singular a reunir esforços coletivos e experiências fundamentais à construção do que conhecemos por Arte Moderna. Muitos destes marcos estão no acervo que o MoMA apresenta ao público a partir de hoje (27 de dezembro) e até 15 de abril de 2013.










A arte de Kandinsky: no alto,
"Komposition V" (1911), seguida
de "Aquarell No. 13" e "Quadrate
mit konzentrischen Ringen" (Estudo
de cores em quadrados com anéis
concêntricos), ambas de 1913.
Abaixo, "Komposition IV", de 1911








O museu também oferece uma visita virtual à exposição e o catálogo completo que inclui reprodução das obras e ensaios de críticos e historiadores (veja o link no final deste texto). Além da visita on-line e do catálogo completo, também está disponível no portal do MoMA um aplicativo inovador: o mapa tridimensional da Abstração como trajetória dentro dos vários movimentos de vanguarda. Possível somente em suportes eletrônicos, o diagrama é móvel e, a cada passo ou a cada clique, oferece cadeias paralelas de links simultâneos para mapear as relações entre os artistas e suas principais obras.

Pela primeira vez, estão reunidos em uma única exposição os trabalhos mais antigos e mais influentes do abstracionismo e da não-figuração, incluindo pinturas, desenhos, livros, esculturas, filmes, fotografias, poemas sonoros, música atonal e apresentações ao vivo de dança e orquestra. Ao visitante está proposta uma imersão em imagens e sons de 350 obras monumentais e instalações originais em mídias simultâneas.





  






Um Kandinsky e dois Mondrian:
no alto, "Farbstudie mit Rauten"
(Estudo de cores com losangos),
de Kandinsky, de 1913, seguido de
"Compositie" (1916) e "Lozenge
Composition with Yellow, Black, Blue,
Red and Gray" (1921), de Piet Mondrian.

Abaixo, fragmentos de uma performance
libertária de Isadora Duncan nos ensaios
fotografados por Eadweard Muybridge
em 1898; e coreografias de Isadora
desenhadas a lápis em pranchas por
Valentine Lecomte em 1903










A abstração a partir dos primeiros registros em suportes e expressões das mais diversas: pinturas de Kandinsky e Picabia, esculturas de Vladimir Tatlin, gravuras de Mondrian e Malevich, os “ready made” (objetos relidos) de Duchamp, os móbiles, textos impressos e a reprodução do som, poemas de Guillaume Apollinaire rabiscados nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, o espontâneo nas performances libertárias de pés descalços de Isadora Duncan, experiências musicais ainda radicais de Debussy, Satie, Schoenberg e Stravinsky, o lirismo das manipulações e sobreposições da novidade das imagens em fotografia e cinema. 

 

A maior das inovações do Modernismo



Observando esta seleção de obras-primas que nunca havia sido reunida, percebemos que o conceito de Abstração pode ser de fato a maior das inovações do Modernismo. É o que defende a curadora do MoMA, Leah Dickerman, no ensaio que abre o catálogo da exposição. O argumento faz todo sentido, mesmo que hoje seja tão cotidiano e permanente nosso convívio com as imagens abstratas: chega a ser difícil conceber um momento em que uma obra de arte não-figurativa era inimaginável ao ponto de se tornar alvo de protestos e ofensas.








Duas obras-primas de 1912: no alto,
"Study for Le Modèle nu dans l'atelier",
de Fernand Léger. Acima, "Danses à la
source II" (Danças da primavera),
das obras-primas de Francis Picabia.

Abaixo, "Paysage à Cassis", pintura
em óleo sobre tela de 1911 de Picabia










No entanto, quando essas obras apareceram pela primeira vez, de repente, há cerca de 100 anos, levantaram muita surpresa e espalharam polêmicas. A obra mais antiga na exposição é de Picasso: “Trois femmes”, tela de 1908. Mas aqui ainda há o apelo da figura, mesmo que diluído por Picasso nas distorções e perspectivas intrigantes que ele mesmo levaria a extremos nas décadas seguintes.

O conceito inaugural da Abstração é atribuído aos estudos e aquarelas que Kandinsky desenvolveu em 1910. Pela primeira vez, intencionalmente, a arte dispensava um assunto reconhecível aos padrões realistas. Em 1911 e 1912, aconteceriam exposições em Paris em que a Abstração virou objeto de escândalo: Kandinsky, Léger, Picabia e outros lançaram obras que marcaram o início de algo radicalmente novo.
















Inventando a Abstração: no alto, “Mare = Ballerina”,
gravura de 1913 em técnica mista de Gino Severini.
Acima, arte de Sonia Delaunay para a capa da
primeira edição de “Poèmes, 1898-1913”, obra
de Guillaume Apollinaireseguida de fac-símile dos
caligramas de Apollinaire de 1915 "Poema para Lou"  
e de Lettre-Océan”poema visual de Apollinaire
publicado no “Les Soirée de Paris” (1914).

Abaixo, duas pinturas em óleo sobre tela de
Francis Picabia, "La source (The spring)"
(A fonte, a primavera), de 1912, "Je revois
en souvenir ma chère Udnie" (Eu me lembro
do meu querido Udnie), de 1914









Mesmo radicais em suas concepções, sem nenhum paralelo nos séculos anteriores de História da Arte, as implicações da ruptura das primeiras obras de tema abstrato se propagaram com uma rapidez surpreendente: em cinco anos, praticantes de Abstração podiam ser contados às dezenas, nas capitais da Europa e em diversos outros países – inclusive no Brasil, onde o amazonense Manuel Santiago (1897–1997), orientado por seus primeiros mestres em Belém do Pará, produziria séries de telas de inspiração abstrata a partir de 1916.



O ataque a Anita Malfatti



Entre nós, há também o escândalo provocado pela crítica demolidora de Monteiro Lobato à pintura de Anita Malfatti. Recém-chegada de temporada de estudos em artes plásticas na Europa e nos Estados Unidos, em 1917, Anita organiza uma exposição com seus trabalhos inspirados nas novas tendências, em oposição à arte tradicional. Logo na abertura do evento, trava contato com um grupo de amigos vanguardistas de São Paulo, entre os quais estavam Mario de Andrade e Oswald de Andrade, mas poucos dias depois é surpreendida com um escândalo: um artigo virulento e retrógrado, assinado por Monteiro Lobato, publicado em dezembro de 1917 no jornal "O Estado de S.Paulo”, ultrapassou os limites do bom-senso e provocou reações apaixonadas do público, favoráveis e contrárias ao seu veredito, apontado como estopim para a Semana de Arte Moderna de 1922. O resultado foi traumático para Anita, que ficou durante anos isolada de todos e demorou décadas a retornar aos trabalhos em artes plásticas.






Denominado “Paranoia ou Mistificação?”, o artigo de Monteiro Lobato sobre a exposição de Anita Malfatti destaca que a obra de Anita é “produto dos tempos decadentes, de cérebros deformados”, e que a única diferença entre sua pintura e aquela feita nos manicômios, como terapia, é que a dos loucos era "arte sincera". Confira um trecho da argumentação equivocada e raivosa de Monteiro Lobato:

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas. A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. Embora eles se deem como novos, precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação. Essas considerações são provocadas pela exposição da senhora Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia”. 








No alto, “Synchrony in Orange, To Form”
(Sincronia em laranja, para formar), pintura
de 1913-1914 de Morgan Russell. Acima,
“Mariage comique” (Comédia de casamento),
de 1914, obra de Francis Picabia. Abaixo,
"Le passage de la vierge à la mariée"
(A passagem de virgem a casada),
pintura em óleo sobre tela de 1912
de Marcel Duchamp





 
Além de Anita Malfatti, há também a presença marcante da arte de Tarsila do Amaral como representante brasileira nas frentes de vanguarda. Tarsila frequentou ateliês de mestres em Paris, travou amizade com Fernand Léger, Pablo Picasso e Blaise Cendrars, entre outros, e também flertou em diversos momentos com a arte abstrata, mas jamais abandonaria definitivamente na pintura suas figuras de moldes personalíssimos. No Brasil, a Abstração só faria escola a partir do final da década de 1940, quando se destacam trabalhos de pioneiros do não-figurativismo como Antônio Bandeira e Cícero Dias, além do Ateliê Abstração (1951), tendo à frente Samson Flexor. 

 

Do convívio à influência



A curadora da exposição do MoMA explica que o surgimento das primeiras imagens abstratas foi resultado da combinação de esforços pessoais de grandes gênios e dos avanços tecnológicos extraordinários que aquela época testemunhava. É o auge da Belle Époque, da popularização da fotografia e do cinema, dos novos meios de poesia sonora com a gravação do som e de uma profusão de imagens impressas em jornais, revistas, histórias em quadrinhos e anúncios publicitários. Neste cenário, a novidade da Abstração revolucionou o antigo conceito de arte baseado exclusivamente na imitação figurativa da realidade. 










Quatro abstrações de Georgia O'keeffe:
a partir do alto, “Blue II” (1916),
“Music – Pink and Blue N° 2” (1918)
“Grey Line with Lavender
and Yellow” (Linha cinza com lavanda
e amarelo), pintura de 1923.

Abaixo, "Inside red canna", pintura em
óleo sobre tela de 1919; e "Abstration",
escultura de bronze laqueada em
branco também de 1919






 

A trajetória da Abstração se confunde com a própria Arte Moderna, como comprova o diagrama apresentado pelo MoMA. É, também, uma trajetória de grandes amizades. Do convívio à influência: amigos apresentavam novos amigos por afinidades e a ideia do novo se propagava. Cada um apresenta contribuições da maior importância, mas o centro eram os nomes mais populares entre o grupo de amigos – caso do poeta Apollinaire, apontado pela curadora do MoMA como "o mais social, o mais conhecido, o homem de mais longo alcance em seu tempo".

Amigo “de todo mundo em Paris”, Apollinaire também travou relações com muitos para além das fronteiras da França. Ele está na origem de tudo: foi quem apresentou Picasso a Georges Braque – e, daquela nova amizade, surgiriam as bases e as obras-primas do Cubismo, que assombraram os amigos artistas e motivaram novas experiências radicais do grupo que incluía Duchamp, Picabia, Léger, Kupka, Kandinsky e vários outros.









No alto, “Spielende Formen”
 (Jogando formas), de 1914, por
Franz Marc. Acima, ilustração de
Sonia Delaunay para “La Prose
du Transsibérien et de la petite
Jehanne de France” (Prosa do
Transsiberiano e a Pequena Joana
da França), publicado em 1913
pelo poeta Blaise Cendrars.

Abaixo, encadernação criada por
Sonia Delaunay para a obra-livro
"Les pâques" (A páscoa), apresentada
em 1913 por Blaise Cendrars







Autor da primeira obra definida como abstrata (“Impression III, Konzert”, de 1911, exibida no MoMA com dois estudos que a precederam), Kandinsky tornou-se uma força na criação e na promoção da arte da Abstração. Entre os ensaios do catálogo, há quem o aponte como mentor da nova experiência, através de seus esforços ousados como pintor, teórico, editor, organizador de exposições, professor e anfitrião generoso para dezenas de artistas e escritores que viajaram, muitas vezes a grandes distâncias, para conhecê-lo, nas temporadas que viveu em Munique, Alemanha, e em Moscou, Rússia. Mas Kandinsky recusou o emblema de pioneiro e atribuía a outro mestre, o músico Arnold Schoenberg, a concepção do abstrato na arte. 

 

Coleção de obras-primas



Entre 1910 e 1925, Kandinsky produziria uma sucessão de obras-primas em Abstração e influentes tratados teóricos que levaram a ideia da abstração à formação de gerações de artistas em diversos países, entre eles “Über das Geistige in der Kunst” (Sobre o espiritual na arte), de 1910. O caminho inicial de Kandinsky, seu estilo festivo muito pessoal de linhas e cores, ganharia derivações que ampliaram o conceito de abstrato, entre elas as figuras em decomposição de Picasso e as construções geométricas de Malevitch e Mondrian.








No alto, “Les Disques” (1918), de
Fernand Léger. Acima, “Zhivopisnye
massy v dvizhenii” (Massa pintada em
movimento), de 1915, pintura em óleo
sobre tela de Kazimir Malevich.

Abaixo, "Suprematizm: aeroplan
letit" (Suprematismo: aeroplano
voando), obra de 1914 de Malevich







Em seu papel de professor, Kandinsky propagou uma ideia muito particular da Abstração e da Arte Moderna, atuando como coordenador de programas de arte e design na Rússia, depois da Revolução de 1917, e posteriormente na Escola Bauhaus, na Alemanha. No círculo de amigos que gerou a Abstração e todos os grandes movimentos de vanguarda, no período anterior à Segunda Guerra Mundial, há ainda o centro que se estabeleceu a partir de Picasso e Braque, depois da invenção do Cubismo.

Genial e contraditório, Picasso também sempre recusou o emblema de inventor da arte abstrata. Contudo, seu papel na origem da concepção da Abstração na arte é, por certo, anterior às experiências de Kandinsky e outros pioneiros. Vem dos estudos e experiências que o artista espanhol arriscou desde 1900, ainda na Espanha, antes de seguir para tentar a sorte em Paris. Curiosamente, o flerte de Picasso com a Abstração esteve mais intenso em 1910 (mesma época das primeiras experiências abstratas de Kandinsky), durante a temporada de verão que ele passou em Cadaqués, na Catalunha.










Inventando a Abstração: no alto,
Rodchenko, “Bespredmetnaia
zhivopis No. 80” (Pintura não
objetiva N° 80), de 1918, seguida
de duas obras-primas de Hans Arp,
“Dada” (1920) e “Untitled” (1917).

Abaixo, uma fotografia de Alfred Stieglitz
da série intitulada "Music - A sequence
of ten cloud photographs" (Musica,
uma sequência de dez fotografias
de nuvem), de 1922






Mulher com bandolim



Femme à la mandoline” (Mulher com bandolim), presente na exposição do MoMA, e outras obras-primas que Picasso criou naquele verão de 1910 em Cadaqués, não deixam dúvidas sobre a autoria da novidade da Abstração: há traços, cores, formas em perspectiva, mas somente sobrevive na atenção do observador uma ideia, sua qualidade, que não confere nenhuma certeza de interpretação ou de realismo figurativo. No entanto, depois destas obras radicais, Picasso seguiria em outras experiências, outras direções. Mais tarde, declarou que a abstração era impossível.

"Não há arte abstrata, nunca houve”, registrou Picasso em célebre entrevista à revista “Time”, publicada no final da década de 1930, que rendeu legiões de desafetos ao artista espanhol. “Você sempre tem que começar com alguma coisa. Depois, você pode remover todas as aparências da realidade, mas não há perigo, então, de qualquer maneira, porque a ideia do objeto terá deixado uma marca indelével". 












Imagens de Picasso na mostra
do MoMA: em autorretrato de 1910, em
seu estúdio no Boulevard de Clichy, Paris,
tendo ao fundo o desenho “Femme nue
debout”, seguido de “Trois Femmes” 
(Três mulheres), de 1908, e “Femme à la
mandoline” (Mulher com bandolim), de 1910.

Abaixo, "Étude pour une constrution",
desenho de 1912 em papel transparente




 

As palavras radicais de Picasso, entretanto, não renderam indignação de outros mestres, como Kandinsky, Duchamp ou Mondrian. Muito pelo contrário. Como destaca a conclusão da curadora Leah Dickerman, na apresentação à exposição, entre os grandes nomes das vanguardas, Picasso talvez seja o que manteve as amizades mais duradouras ao longo da vida – e também quem levou a arte mais longe e antes de todos os outros, em experiências radicais e pioneiras, sempre revelando novidades imprevisíveis sobre os caminhos a seguir.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Inventando a Abstração. In: Blog Semióticas, 27 de dezembro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/12/inventando-abstracao.html (acessado em .../.../…).


Para uma visita à exposição Inventing Abstraction 1910-1925,  clique aqui.


Para acessar o catálogo completo da exposição do MoMA,  clique aqui.












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