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16 de janeiro de 2012

O Livro de Ana






Sou frágil o suficiente para uma palavra me machucar, 
e sou forte o suficiente para uma palavra me ressuscitar. 

–– Bartolomeu Campos de Queirós.   



Hoje acordei com uma notícia triste: acabo de saber da morte, aos 68 anos, do escritor Bartolomeu Campos de Queirós. Nos telejornais e nos sites de jornalismo, as primeiras notícias não foram além de duas ou três frases, dizendo que ele era membro da Academia Mineira de Letras, que recebeu prêmios brasileiros e internacionais pela excelência do seu trabalho literário e que seus livros foram traduzidos para diversos países.

Nenhuma das notícias, entretanto, nem listaram os tais prêmios nem explicaram o porquê do autor ter alcançado lista tão surpreendente que incluiu os cobiçados Jabuti e premiações da Associação Paulistas dos Críticos de Arte, da Academia Brasileira de Letras, Ibero-Americano (México), Nestlé de Literatura, Bienal de São Paulo, Selo de Ouro da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Medalha da Inconfidência Mineira e Medalha Santos Dumont (Governo do Estado de Minas Gerais), Rosa-Blanca (Cuba), Quatrième Octogonal (França), Chevalier de l'Ordre des Arts et des Lettres (França) e IBBY (Inglaterra), entre muitos outros.

Conheci Bartolomeu há mais de 10 anos, primeiro pelos livros que minha irmã, professora do ensino fundamental em Barbacena, sempre leu com atenção de fã e adotou como material de referência para a sala de aula. Depois fui conhecê-lo pessoalmente, quase por acaso, quando fomos apresentados por um amigo jornalista, Alécio Cunha, outro sábio no manejo das palavras, que também morreu recentemente.

Estávamos em um café, próximo ao jornal em que eu trabalhava. Era o mês de março de 2010 e Bartolomeu estava às vésperas de lançar “O Livro de Ana” (Global Editora), e como sempre estava otimista, bem-humorado e de bem com a vida, apesar de há algum tempo enfrentar graves problemas de saúde. Ainda em processo de recuperação da última crise que o levara a uma temporada de internação hospitalar, o escritor e educador dizia que comemorava com felicidade a grandeza de estar no mundo com mais um lançamento na sua extensa e premiada trajetória de 65 livros publicados. 





O escritor Bartolomeu Campos de Queirós
fotografado durante sessão de autógrafos
em 2010. No alto, uma das imagens barrocas
da Sant'Ana Mestra esculpida em madeira
policromada no século 18 e atribuída a
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
 Abaixo, a Sant'Ana Mestra na versão de
Pablo Picasso, Dos chicas leyendo, pintura
em óleo sobre tela de 1934; e um detalhe
da primeira capa de O Livro de Ana









Bartolomeu tinha nas mãos “O Livro de Ana”, que me deu de presente e autografou no ato com uma dedicatória emblemática. Comentei sobre a dedicatória, dizendo que era surpreendente demais para ser tão espontânea. Questionei se ela já estava pensada, ele achou graça na pergunta e a conversa de imediato transformou-se em entrevista, que foi publicada no dia seguinte. 

Folhei o livro de Bartolomeu e elogiei as belas ilustrações e projeto gráfico incomum, que ao incluir no miolo da brochura várias folhas recortadas multiplicava as possibilidades de leitura e convidava a reflexões e exercícios de metalinguagem. Ele, todo modesto, atribuiu o mérito da beleza e inteligência do novo livro à parceria com o designer Marconi Drummond, com quem também tinha desenvolvido outros projetos recentes.



O afeto: objeto livro


Gosto demais do objeto livro", confidenciou Bartolomeu, como se não fosse um segredo de polichinelo o amor declarado de todo escritor pelo objeto livro . "Mas gosto mesmo é dos livros de literatura, que trazem para o leitor, seja ele criança ou adulto, um convite à reflexão. O livro de brinquedo, que só propõe joguinhos ou informações triviais, de passatempo, não tem para mim nenhum interesse”, explicava, apontando na estante de lançamentos de livros infanto-juvenis que a maior parte estava incluída na categoria de passatempo ou de trivialidades, longe da literatura. 







Feliz e orgulhoso por ter sido eleito, havia pouco tempo, como objeto de estudos por Ebe Maria de Lima, professora de Goiás que escreveu uma tese acadêmica sobre sua obra, Bartolomeu reconheceu durante a entrevista que aquele tinha sido o maior elogio de todos os que tinha recebido na vida. A tese defendida por Ebe, segundo Bartolomeu, apontou que sua literatura representava uma obra sem fronteiras entre o público infantil, adulto ou juvenil.

Fiquei muito emocionado com o elogio, mas como escritor e como ser humano tenho fascínio é pela infância e pelo universo da criança. A infância sempre me deixa atento”, explicou, lembrando "Alice" de Lewis Carroll e alguns dos clássicos de Monteiro Lobato. Também recordou em seguida uma máxima atribuída ao pensador alemão Carl Jung (1875-1961) que Bartolomeu considerava uma lição de vida.

Jung, que sabia das coisas, dizia que a gente nasce original e morre cópia. O que é uma grande verdade, já que muitos de nós vão perdendo pelo caminho as emoções mais fortes da infância”, disse, com lágrimas nos olhos, enquanto destacava questões sobre si mesmo e sobre sua literatura que acabou descobrindo com certa surpresa, através da tese de Ebe Maria de Lima.





Bartolomeu trabalhava como funcionário do Ministério da Educação em Belo Horizonte, no começo da década de 1970, quando começou a abraçar a literatura como missão. “Descobri que para me dedicar à literatura só preciso de papel, lápis e solidão. O que é meio mágico e maravilhoso, quando o resultado consegue tocar a emoção das pessoas”. 



A lembrança de Papagaio


Naquela breve entrevista de quinze minutos, ele recordou cenas de sua infância em Papagaio, cidade localizada no Centro-Oeste de Minas, e destacou uma ou outra história e personagens que conheceu quando menino e que terminaram por influenciar seu gosto pelos livros e pelas histórias da tradição de sua cidade natal, quase todas ligadas aos costumes de Papagaio, lugarejo ainda hoje voltado para a exploração de cristal, carvão e ardósia.

Lembro de ter feito um gracejo sobre o nome “papagaio” e o hábito que o pássaro domesticado tem de repetir as palavras e frases que mais ouve. Bartolomeu celebrou o comentário com uma gargalhada feliz e estende a piada, dizendo que a vida toda ele próprio tentava repetir nos livros que escrevia as emoções mais sinceras que aprendeu lendo outros autores e recordando histórias de sua infância em Papagaio.




Ao comentar suas lembranças mais antigas, disse que desde sempre se interessou pela leitura. A maior influência ele reconhecia no avô, que fazia de rabiscos nas paredes da casa suas listas de caderno de anotações. Por meio dos rabiscos do avô nas paredes da casa humilde, com chão de terra batida, recortando e colando sílabas, o menino Bartolomeu acabou por descobrir o encanto contido nas palavras. Praticando a soma das letras, Bartolomeu sentiu a riqueza contida em cada vocábulo nas paredes.

Ele veio adulto para BH, depois de viver a infância em Papagaio. “O Peixe e o Pássaro”, foi seu primeiro livro, publicado em 1974. “Não tenho filhos, mas tenho 65 livros publicados”, ironizou, explicando que não adiantava de nada eu pedir para que ele apontasse, entre tantos livros tão diferentes entre si, qual o seu preferido.

Ah, não. Prefiro fugir dessa tarefa de eleger o meu favorito entre todos. Cada um a seu modo tem uma qualidade ou uma história que lhe atribui um certo valor. A escolha dos preferidos depende do dia, da hora, da época”, explicou, com uma certa modéstia à flor da pele. Mas não evitou destacar suas preferências em música, listando antigas modas de viola caipira e duas ou três canções do canadense Leonard Cohen, para surpresa do entrevistador.






Ciganos, espetáculo do grupo de teatro
Ponto de Partida, de Barbacena, baseado
na história do menino que ficava observando
os ciganos que apareciam em sua cidade e
torcia para ser roubado por eles, obra
de Bartolomeu Campos de Queirós







Entre seus livros mais premiados estão aqueles que já passaram à condição de clássicos – caso de “O Olho de Vidro do Meu Avô”, publicado em 2005 pela Editora Moderna e um de seus “campeões de venda”, vencedor dos prêmios Nestlé de Literatura, Jabuti e Fundação Nacional do Livro, entre outros. De sua trajetória ele destacou com orgulho que fez o curso de Pedagogia, que teve textos adaptados para o teatro (pelo grupo Ponto de Partida, de Barbacena) e que ocupou cargos públicos importantes, entre eles a presidência da Fundação Clóvis Salgado em Belo Horizonte, além de ter sido membro, por muitos anos, do Conselho Estadual de Cultura. Sobre os prêmios, contudo, Bartolomeu evitou falar durante a entrevista:

Os prêmios são um reconhecimento, uma honra, mas só tem o mérito se conseguem ajudar a reunir novos e bons leitores. Se não conseguem isso, não têm muita razão de ser. E no fundo, no fundo, sempre que recebo um prêmio fico pensando se a escolha foi justa, se não havia outros concorrentes que fossem mais merecedores do que eu”, apontou, sempre lúcido no bom-senso e volta e meia retornando aos sábios ensinamentos do avô que marcou a infância e a vida toda.





Meu avô foi, de fato, uma grande influência. Só isso dele me apresentar à leitura usando as paredes de casa como caderno de anotações já é em si algo maravilhoso, mágico, parece até história inventada do mundo de Alice”, disse, feliz com a própria experiência. Sobre o novo livro, ele revelou que foi o resultado de uma ideia que ficou na cabeça durante muito tempo. Segundo Bartolomeu, o projeto para “O Livro de Ana” nasceu depois de uma visita à casa da empresária Ângela Gutierrez – a quem o livro é dedicado. 
 


A Sant'Ana Mestra


As amizades levam a gente a pensar em pessoas, em coisas, na vida. Minha amiga Ângela Gutierrez coleciona imagens de Sant'Ana Mestra, tem mais de 70 delas, de épocas e estilos diferentes. Observando toda aquela beleza resolvi imaginar o que estaria escrito no livro que a santa traz consigo”, explicou Bartolomeu, fazendo pausas entre breves comentários de encanto com cada uma das imagens que recorda, naquele momento da entrevista.

Intercalada às diversas lembranças, ele também ressalta uma série de detalhes mais conhecidos do culto à santa católica pela gente mais humilde. A principal: pela tradição religiosa, são chamadas de Sant'Ana Mestra as imagens que representam uma mulher que carrega um livro nas mãos acompanhada por uma criança – a criança seria a Virgem Maria, a Nossa Senhora do catolicismo; a mulher, sua mãe, conhecida por Sant'Ana ou Santa Ana. A imagem é considerada um símbolo da pedagogia.












Depois de confessar que é um leitor permanente de poesia (“dependendo do dia, varia entre Lorca, Cecília Meireles, João Cabral, Pessoa, Drummond...”), Bartolomeu contou que decidiu recriar com o novo livro o texto que poderia estar nas imagens de Sant'Ana Mestra e terminou chegando ao relato de “O Livro de Ana” – que aborda a beleza da criação do mundo e dos exercícios do criador.

A melhor literatura é a que segue na trilha da liberdade, que segue as invenções da ficção e do sonho”, defendeu, nomeando a si próprio como leitor contumaz e perdidamente apaixonado pelos clássicos. “É pela fantasia que primeiro o escritor e depois seus leitores procuram desvendar o segredo. Em paralelo aos melhores textos, os mais autênticos e iluminados, pode-se ler toda a teoria da arte e também sua impossibilidade. Daí a função integradora e profundamente reveladora do melhor da raça humana que toda grande arte proporciona, com sua capacidade de aproximar as pessoas e os povos, com sua perspectiva de gerar compartilhamentos”.

Bartolomeu também destacou que para ele, tanto no papel de leitor como no de escritor, a literatura tem exigências, como todo processo criativo: “A melhor literatura exige o novo, exige rompimento, exige cumplicidade do autor com seus possíveis leitores”. Ou, como dizem as palavras que abrem seu livro, objeto da sorte daquela entrevista apressada: “Jamais li o livro de Ana. Mas se fico atento ao mundo e sua festa, posso adivinhar a escritura”.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. O Livro de Ana. In: Blog Semióticas, 16 de janeiro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/o-livro-de-ana.html (acessado em .../.../…).


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