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23 de março de 2016

Sagrado e Profano em Chagall





A Bíblia é um drama mundano o mundo é uma parábola religiosa. 
 
––  Marc Chagall (1887-1985).   
...........

Arte e Religião sempre estiveram muito próximas – desde o mais remoto da experiência humana. É desta constatação que parte Walter Benjamin em seu ensaio fundamental “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, publicado pela primeira vez em 1936, para destacar que as mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. Benjamin, passo a passo com importantes historiadores e filósofos dos últimos séculos, aponta que as relações entre Arte e Religião conduziram a vida em sociedade em uma simbiose por vezes implacável, fortalecida em momentos capitais como o Renascimento e, posteriormente, com o Barroco.

Arte e Religião também se fundem nas obras-primas de alguns dos grandes artistas no último século – com um florescimento dos mais especiais na obra de Marc Chagall, um dos artistas incomparáveis do século 20. Considerado por muitos o maior de todos os mestres da cor na Arte Moderna, pintor, ceramista, gravurista, artista gráfico, desenhista e com uma trajetória que sempre buscou novos suportes e formatos para a arte, Chagall está recebendo uma grande celebração na Espanha com a abertura de uma mostra retrospectiva inédita sobre sua extensa obra com temática de inspiração religiosa.

Intitulada “Chagall. Divino y Humano”, a exposição está aberta ao público na Fundação Canal (veja link para uma visita virtual no final deste artigo), em Madri, reunindo mais de uma centena de obras originais em técnicas de litografia, xilogravura e gravura, incluindo obras sobre papel, criadas entre as décadas de 1940 e 1980. Com curadoria a cargo de Ann-Katrin Hann, conservadora chefe do museu Pablo Picasso de Münster, que tem sede na Alemanha e de onde vêm muitas das obras reunidas na exposição, “Chagall. Divino y Humano” lança luzes sobre esta que talvez seja a parte mais evidente e também menos estudada sobre o grande mestre da cor.







Sagrado e Profano em Chagall:
no alto, o artista no ateliê em Paris, em
1955, em frente a Le roi David, pintura
em óleo sobre tela de 1952. Acima, em
família, com a esposa, Bella Rosenfeld,
e a filha, Ida, fotografados em 1933,
em Paris, por André Kertész.

Abaixo, uma amostras das primeiras
obras de Chagall produzidas sob
influência das vanguardas, em 1911,
que foram batizadas por seu amigo
Blaise Cendrars: Moi et le Village
(Eu e a Vila) e Le soldat boit
(O soldado bebe). Também abaixo,
duas das primeiras obras-primas de
Chagall com temática de inspiração
religiosa, Tentation (Adam et Eve)
e Calvaire, pinturas em óleo
sobre tela de 1912


 












Judeu da Bielorrússia



Sempre lembrado e homenageado por sua pintura de formas alegóricas e multicoloridas em óleo sobre tela, Marc Chagall também merece lugar de destaque entre os principais artistas gráficos do século 20 – como comprova o recorte temático sobre suas obras-primas de inspiração religiosa reunidas em Madri. Com frequência rotulado como “surrealista”, por conta de sua obra difícil de classificar, só comparável a outros grandes mestres e pontuada de referências oníricas, Chagall nasceu em Vitebsk, nordeste da Bielorrússia, no antigo Império da Rússia, em uma família de fortes tradições judaicas – detalhe biográfico que ilumina a interface religiosa tão presente em sua obra.

Na juventude, uma década antes da Revolução Russa de 1917, Marc Chagall era um aluno dedicado e promissor da tradicional Academia de Arte de São Petersburgo quando uma bolsa de estudos para duas semanas em Paris mudou radicalmente o destino. Na capital da França, depois de entrar em contato com os artistas e escritores das vanguardas, Chagall decidiu não retornar à Rússia no prazo previsto. Encantado com as experiências radicais dos movimentos modernistas e com a vida boêmia de Montmartre, permaneceu por anos em Paris, onde tornou-se amigo de nomes como Picasso, Kandinsky, Cendrars, Modigliani e, especialmente, Guillaume Apollinaire.








Sagrado e Profano em Chagall:
beijos e casais em cenas amorosas
segundo a arte do mestre da cor
nas pinturas em óleo sobre tela de
sua primeira fase, produzidas antes
da Primeira Guerra Mundial – acima,
Les amoureux, de 1913, e Les
amants en bleus, de 1914.
Abaixo, Aniversaire, de 1915,
Amateurs en Rouge (1916)









Nesta época surgem suas primeiras obras produzidas sob a inspiração dos novos amigos de vanguarda – três pinturas em óleo sobre tela de 1911 que foram batizadas por Blaise Cendrars: “Moi et le Village” (Eu e a Vila), “Le soldat boit” (O soldado bebe) e “La Pluie” (A Chuva). Depois de Cendrars, foi Appollinaire quem assumiu o papel de mentor do jovem Chagall, sendo o primeiro a destacar o talento do estreante entre os grandes da Arte Moderna – e também foi Appollinaire quem selecionou obras do jovem quase desconhecido para uma importante mostra das vanguardas em Berlim, em 1914, pouco antes da explosão da Primeira Guerra Mundial. A guerra na Europa forçou o retorno de Chagall a seu país, onde ele se casaria com Bella Rosenfeld, que conheceu quando ainda era adolescente em sua aldeia.



Comissário para as Belas Artes



Bella, segundo os biógrafos, foi o grande amor de Chagall e sua inspiração da vida inteira. Com a Primeira Guerra mudando rapidamente o cenário da Europa, vem a Revolução de 1917 na Rússia e novos desafios para Chagall, que foi nomeado comissário do povo para as Belas Artes em sua cidade natal Vitebsk. Empossado no cargo oficial, Chagall teve a iniciativa de inaugurar a primeira escola de Arte Moderna na Rússia – com a meta de que ela estivesse aberta à variedade das tendências modernistas que conheceu em sua temporada na França. Porém, desentendimentos com outro gigante das vanguardas, Kasimir Malevich, levaram Chagall a desistir do cargo e a voltar em definitivo para Paris.









        




Sagrado e Profano em Chagall:
acima, os amigos Pablo Picasso e
Marc Chagall em 1955, em St. Paul
de Vence, França, fotografados
por Philippe Halsman; e Chagall
no ateliê em Paris, em 1934, em
fotografia feita no processo de
autochrome por Roger Violett.

Abaixo, uma pintura em óleo sobre
tela de 1938 com tema bíblico,
La crucifixion blanche (A crucificação
branca), e La résurrection, aquarela
sobre papel de 1948. Também abaixo,
uma seleção de três imagens da
série de gravuras produzidas sob
encomenda para ilustrar edições da
Bíblia Sagrada apresentadas na
exposição em Madri: Moisés e a
Serpente (1956); Moisés e as
Tábuas Sagradas (1952);
A Crucificação (1952)



















O trabalho fantástico e colorido de Chagall, que talvez somente encontre paralelos em alguns poucos de seus contemporâneos – especialmente no espanhol Pablo Picasso, no francês Henri Matisse e em outro russo, Vassily Kandinsky – avançou para outras técnicas, outros suportes, depois de suas primeiras experiências com pintura em óleo sobre tela nos movimentos de vanguarda do início do século passado. A partir da década de 1920, passaria também a incluir em seu trabalho as ilustrações, desenhos e gravuras produzidos sob encomenda para reprodução em livros e revistas.

Nesta dedicação às ilustrações e artes gráficas sob encomenda, a Bíblia Sagrada iria ocupar um lugar de destaque. De 1931 a 1939, Chagall criou 66 gravuras sobre temas bíblicos, encomendadas pelo comerciante de arte e editor francês Ambroise Vollard – mas o trabalho foi interrompido quando explodiu a Segunda Guerra Mundial. Com a tomada da França pelas tropas nazistas de Adolf Hitler, Chagall parte em 1942 para o exílio nos Estados Unidos. Desde a década de 1930, com a perseguição aos judeus pelo Nazismo, sua obra já havia incorporado a questão política em tons sombrios: judeu convicto, Chagall começou a denunciar com sua arte as tensões e depressões sociais e religiosas que sentia na pele. Assim que a guerra foi deflagrada, em 1939, o regime Nazista classificou oficialmente as obras de Chagall como arte degenerada.







Sagrado e Profano em Chagall:
gravuras apresentadas na mostra
sobre Chagall em Madri – acima,
a cena dos namorados românticos
em Les Amoureux de la Tour Eiffel
(Amantes da Torre Eiffel, de 1960),
em que o monumento de Paris vem
substituir a cruz em cena que remete
ao sofrimento após a Crucificação.

Abaixo, Paysage bleu (Paisagem azul,
1958), referência direta a Maria que tem
nos braços Jesus Cristo, na tradicional
cena da “Pietá”; La descente de croix
(O descimento da cruz), a Paixão de
Cristo na versão surrealista, em pintura
de 1976; e a alegoria representada com
os Três Reis Magos que assumem
feições de animais em
Les trois acrobates (1957)












Folclore, sonhos, fragmentos do real



De volta a Paris, depois da Segunda Guerra, Marc Chagall concluiu a série sobre a Bíblia que soma 105 trabalhos incomuns, sempre com animais e figuras circenses, festivas, mais humanistas do que exatamente “religiosas”. Da série sobre a Bíblia, 20 figuras estão na exposição em Madri – entre elas “Moisés e a Serpente” (1956), “Da Criação do Homem” (1958) e A Crucificação” (1952). Das centenas de ilustrações e artes gráficas produzidas sob encomenda por Chagall, também estão reunidas na mostra gravuras de várias edições sobre as Fábulas de La Fontaine e 15 das 96 ilustrações em preto e branco da série “Les Âmes Mortes”, criada para ilustrar o romance “Almas Mortas”, de Nikolai Gogol, publicado pela primeira vez em 1848 e considerado uma das obras mais marcantes da literatura russa do século 19.

Chagall começou a trabalhar nas ilustrações para as cenas e personagens de “Almas Mortas” na década de 1920, mas o projeto foi adiado com a morte do editor Ambroise Vollard e a publicação só se concretizou em 1948, com o lançamento de uma luxuosa edição comemorativa do centenário do livro de Gogol. A edição, com pouco mais de 300 exemplares, que se tornaria uma obra de arte disputada por colecionadores e museus do mundo inteiro, foi patrocinada pela casa editorial Tériade, fundada pelo grego Stratis Eleftheriades. A colaboração entre Chagall e Tériade deu origem a cinco livros ilustrados com litografias e gravuras que são apontados com frequência como marcos das artes gráficas na segunda metade do século 20: são eles, além de “Almas Mortas”, as “Fábulas de La Fontaine” (1952); a “Bíblia Sagrada” (1956); o romance “Dáfnis e Cloé” (1961), do escritor grego Longo, que viveu no século 2 antes de Cristo; e “Circus”, coleção de gravuras, pinturas e desenhos de Chagall sobre a temática do circo, publicado em 1972.    

Outras vertentes de temática com inspiração religiosa na obra extensa de Chagall estão representadas em Madri através de fotografias – caso dos objetos em cerâmica, das tapeçarias, das séries em vitrais, dos mosaicos e dos painéis murais que produziu para catedrais e sinagogas na França (incluindo o design, pinturas e detalhes em relevo do novo teto para a Ópera de Paris, em 1964), nos Estados Unidos e em Israel, sob encomenda para a Universidade Hebraica e o Parlamento de Jerusalém, entre vários outros trabalhos – além dos projetos de cenários, figurinos e adereços que desenvolveu para espetáculos de teatro e balé. O resultado é uma fascinante policromia que une, fora de qualquer contexto racional, fontes folclóricas, citações religiosas, lembranças, cenas oníricas, premonições, fragmentos do real – em abordagens que ainda hoje impressionam.
















.






Sagrado e Profano em Chagall:
a partir do alto, detalhe do teto da
Ópera de Paris, em design, pinturas
e relevos criados em 1964 por Chagall;
o mosaico em técnica mista que representa
Profeta Elias, criado em 1970 e instalado
no Museu Marc Chagall em Nice, França;
e quatro das 96 gravuras de Chagall criadas
sob encomenda para ilustrar um clássico
da literatura russa, o romance de
Nikolai Gogol, Almas Mortas.

Abaixo, La Saint Famille: Maria, o menino
Jesus e José de Nazaré, a Sagrada Família,
em litografia de 1970 de Chagall; Four Seasons
(Quatro estações), mural em cerâmica construído
em mosaico por Chagall em 1972 e instalado na
Chase Tower Plaza, em Chicago (EUA);
seguido de Les amoureux de Vence, de
1957, e a religiosidade traduzida em
duas obras-primas de 1966: Noé et l'Arc en
Ciel (Noé e o Arco-Íris) e Abraham et les
Trois Anges (Abraão e os Três Anjos).
No final da página, imagens da exposição
na Fundação Canal, em Madri, e Chagall
fotografado em janeiro de 1964 por
Lee Lockwood em frente aos vitrais
criados pelo artista para a sede
da ONU em Nova York











Se um artista como Marc Chagall combina tão bem, como poucos, o divino, o mito, as tradições, muitos poderiam esperar que ele fosse alguém muito apegado à religião – mas não era. Chagall sempre declarou que nunca foi um homem religioso nem devoto ou praticante de nenhuma fé específica, e sim muito preocupado com o transcendente em cada experiência vivida e com a liberdade para todas as religiões. Tal distanciamento sobre os dogmas e doutrinas por certo contribui para que a arte personalíssima de Chagall encontre alegorias, analogias e equivalentes visuais que traduzem de forma surpreendente os textos bíblicos em suas metáforas, hipérboles, parábolas.

“O artista verdadeiramente grande busca o universal que está presente em todas as práticas da fé” – assinala uma das frases de Chagall, afixada na abertura da mostra em Madri, que de certo modo contribui para que o observador, seja ele laico ou religioso, possa penetrar na essência do que o imaginário do artista representa em relação a questões do sagrado e também do profano. Em outra frase, também destacada na exposição, Chagall afirma que “a Bíblia é um drama mundano e o mundo uma parábola religiosa”.











O acervo de Chagall apresentado na Fundação Canal, com um ambiente cenográfico que reproduz o interior de uma sinagoga, está dividido em três seções. Na primeira, “Divino e Humano”, obras de diversas séries e fases do artista fundem a profundidade humana de seus autorretratos e a alegria do mundo do circo a cenas religiosas, expressando tanto suas memórias da terra natal quanto referências diretas e indiretas ao Antigo e ao Novo Testamento – tema de tal recorrência e abrangência na arte produzida por Chagall que levou a França a homenageá-lo com a criação do Museu da Mensagem Bíblica de Marc Chagall, instalado desde 1973 na cidade de Nice. Na segunda, “Almas Mortas”, cenas, tramas e personagens do romance de Nikolai Gogol estão representados em um apelo onírico e monocromático que mistura e revela, em matizes de papel envelhecido que vão do negro ao cinza, camponeses, rabinos, estalagens, artistas de circo e vacas que tocam violinos.

Na terceira seção, dedicada às ilustrações criadas sob encomenda de Ambroise Vollard para as edições da Bíblia Sagrada, as referências judaicas e cristãs de Chagall dividem o mesmo espaço pictórico, construindo uma iconografia completamente diferente daquela construída pela tradição do Ocidente deste a Idade Média. Em imagens sempre instigantes e surpreendentes, Chagall traduz versículos sobre passagens, profetas, patriarcas, mas deixa à margem representações mais conhecidas como Adão e Eva, Abel e Caim, Babel, as parábolas de Cristo, entre outras, para destacar aspectos menos reverenciados pelos artistas que o precederam. Não por acaso, um verso extraído de um poema que ele dedicou a sua amada Bella na década de 1920, citado na última seção da exposição em Madri, define à perfeição sua obra de inspiração religiosa, criativa e visionária, tão estranha quanto particular e incomparável: “Como Cristo, estou crucificado, pregado ao cavalete...”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Sagrado e Profano em Chagall. In: Blog Semióticas, 23 de março de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/03/sagrado-e-profano-em-chagall.html (acessado em .../.../...).


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20 de dezembro de 2014

Natal surreal de Salvador Dalí






Não há nenhum vestígio real, bem entendido, de
anjos, de riqueza ou de liberdade. Apenas imagens.
.....
––  Walter Benjamin em "O surrealismo, último  
instantâneo da inteligência europeia" (1929) 


Uma série de aquarelas com cenas bíblicas que permaneceu inédita por mais de meio século e duas coleções de cartões de Natal criadas por Salvador Dalí (1904-1979) são as mais recentes novidades do acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí com sede na Espanha. As obras foram incluídas no Catálogo Raisonné, que é a publicação completa dos trabalhos oficiais do artista, depois de aprovadas por especialistas em minuciosas avaliações comparativas e laudos técnicos. A série de 105 aquarelas foi pintada entre 1963 e 1964, sob encomenda para uma edição de luxo da Bíblia Sagrada em espanhol. Mas uma série de desentendimentos entre o artista e os editores interrompeu o projeto e só recentemente as aquarelas foram localizadas e autenticadas pelos técnicos da fundação.

Quanto às coleções de cartões de Natal, uma delas, com as aquarelas criadas por Salvador Dalí sob encomenda, no final década de 1950, para a editora norte-americana Hallmark, permanecia inédita. Quando recebeu a encomenda, Dalí exigiu um pagamento antecipado de 15 mil dólares para 10 cartões de felicitações com temas de Natal. O pagamento foi feito e a encomenda foi entregue no prazo previsto, mas os cartões foram considerados perturbadores e polêmicos demais para alcançarem sucesso comercial, motivo pelo qual a direção da empresa apresentou a série em uma exposição em sua galeria de arte, mas produziu apenas uma tiragem restrita. A outra coleção, com obras que em sua maioria também permaneciam inéditas, reúne aquarelas e ilustrações feitas entre 1958 e 1976 para os cartões que a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica enviava a um seleto grupo de clientes a cada final de ano. 

As obras que chegaram ao Catálogo Raissoné são surpreendentes e polêmicas, como sempre, em se tratando da arte de Dalí. “A diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista” – costumava dizer, em estado de provocação, o mestre Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol. Dalí sempre teve a seu favor uma técnica de pintura extraordinária, com habilidade e domínio criativo tão grandes quanto sua loucura e originalidade, e atravessou o último século influenciando artistas das mais diversas áreas, das mais diversas tendências e nacionalidades, da brasileira Tarsila do Amaral ao norte-americano Andy Warhol, entre muitos e muitos outros.










As imagens do Natal surreal segundo
Salvador Dalí: no alto e acima, o artista
fotografado em seu castelo em Cadaqués,
Espanha, no Natal de 1970, pelo turco
Ara Güller. Também acima, Dalí e Gala,
sua musa e agente que direcionou sua carreira
durante décadas, fotografados na cerimônia do
casamento civil, em 1934, por Eric Schaal.

Abaixo, Crucifixión, Cristo en la cruz,
aquarela criada sob encomenda para uma
edição de luxo da Bíblia Sagrada, em 1964.
Também abaixo, dois cartões de Natal
criados sob encomenda: o primeiro para
a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica
(Anjo de Natal, 1967) e o segundo para
editora Hallmark na década de 1950












Dalí também merece destaque, entre os mestres da arte no século 20, como um dos que mais produziram, segundo apontam seus mais importantes biógrafos, Robert Descharnes e Gilles Néret. Suas obras, disputadas pelos grandes museus, estão em sua maioria nas coleções do Museu Salvador Dalí em Saint Petersbourg, na Flórida, Estados Unidos, e na Fundação Gala-Salvador Dalí, na Espanha. A fundação, criada pelo próprio Dalí, em 1983, administra três museus na Catalunha: a sede, em Figueras, e as duas residências de Dalí e Gala, sua esposa e musa inspiradora desde 1929, transformadas, após a morte do artista, no Teatro-Museu Dalí, também em Figueras, e no Museu Port Lligat, em Cadaqués.



Uma trajetória de polêmicas



O acervo do Catálogo Raissoné das obras de Dalí conta, entre suas peças mais valiosas, com mais de 1.500 quadros que se inscrevem entre as mais celebradas e reproduzidas pinturas do último século. Também fazem parte do acervo completo mais de uma centena de esculturas, milhares de desenhos e ilustrações feitas sob encomenda para livros e revistas, cartazes publicitários, obras realizadas em colaborações e parcerias para teatro e cinema, cartas e manuscritos autobiográficos, séries de performances em fotografias, entrevistas e vários outros projetos, todos com o traço e as formas inconfundíveis das criações de Salvador Dalí.










Os cartões de Natal criados por
Salvador Dalí: acima, a Sagrada Família
em aquarela criada para a empresa
Hallmark na década de 1950; e um cartão
de Natal criado para o UNICEF em 1981.

Abaixo, variações para as árvores
de Natal nas ilustrações criadas por Dalí
para a Hoechst Ibérica, as duas primeiras
em 1958 e as duas seguintes em 1968














No século passado, Salvador Dalí foi muito criticado por conta de sua dedicação ao “irracional” e por suas posições políticas reacionárias, entre elas o apoio ao general Francisco Franco, que chegou ao poder no rescaldo da Guerra Civil Espanhola. Contudo, passou ileso pelas incontáveis polêmicas e continua em evidência, como uma autêntica celebridade, quase 30 anos depois de sua morte, com as exposições de suas obras sempre atraindo multidões e batendo recordes de público pelo mundo afora.

A trajetória de controvérsias e provocações de Dalí teve início nas primeiras décadas do século 20, com a expressão radical de suas obras que firmou o conceito de Surrealismo nas artes plásticas. No final da década de 1930, entretanto, ele foi expulso do grupo dos surrealistas da Europa pelo poeta e mentor do “Manifesto Surrealista” (1924), André Breton – que passaria a se referir ao desafeto como “Avida Dólares” (ávido por dólares), um anagrama perfeito para o nome Salvador Dalí.






O Natal segundo Salvador Dalí em
aquarelas criadas para os cartões da
Hoechst Ibérica: acima, Felicitación
de Navidad Astronautica, de 1962,
reflete o impacto que as notícias
sobre os primeiros voos
espaciais exerceram no artista.

Abaixo, Dalí em seu ateliê em 
Paris,
em 1930, começando a pintar
La persistência de la memoria,
uma de suas obras mais célebres;
e três variações criadas por Dalí
para a tradição das árvores de Natal
em ilustrações para cartões que foram
impressos em 1967, 1971 e 1970













A grande arte: caos e criação



Depois do rompimento com os surrealistas, Dalí e Gala partiram em 1940, rumo aos Estados Unidos, para prestar serviços em Hollywood e “comercializar” sua produção em artes plásticas (veja mais em Semióticas: Alice volta ao futuro). A temporada de uma década na América foi brilhante e também polêmica, como tudo o que se refere à obra do mestre surrealista. De volta, com Gala, à sua terra natal, Figueras, na Catalunha, Espanha, na década de 1950, Dalí iria diversificar cada vez mais seus projetos – incluindo, entre eles, as séries de aquarelas e ilustrações para cartões de natal criadas sob encomenda.

Pelo que relatam Robert Descharnes e Gilles Néret, nas biografias e catálogos publicados pela Taschen (“Dalí – A Obra Pintada” e “Salvador Dalí – A Conquista do Irracional”), Dalí produziu 19 aquarelas e ilustrações para os cartões de Natal produzidos pela empresa farmacêutica Hoechst Ibérica, entre 1958 e 1976. A empresa, que tinha sede em Barcelona, decidiu imprimir uma grande tiragem em formato de 10,04cm X 6,93cm e os cartões eram enviados, a cada final de ano, para médicos e profissionais de saúde. Atualmente, estes cartões originais com as ilustrações de Dalí são relíquias valiosas, disputadas por colecionadores.







O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a homenagem a
Don Quijote em cartão criado
para a Hoechst Ibérica em 1960.

Abaixo, uma homenagem de Dalí
para Las Meninascélebre pintura de
1656 de Diego Velázquez, no cartão
criado em 1961; a árvore de Natal no
cartão criado em 1974; e o Papai Noel
em um dos cartões rejeitados pela
empresa Hallmark em 1960









As imagens da série sob encomenda para a Hoechst Ibérica não foram as únicas criadas por Salvador Dalí com temas de Natal. Ele também criou cartões de Natal exclusivos para amigos e colaboradores como Enrique Sabater, seu secretário particular a partir de 1969. Há ainda uma série de pinturas em óleo sobre tela, criada entre 1964 e 1967, com variações sobre imagens de São José e da Virgem Maria com o Menino Jesus. Como quase tudo que o mestre produziu, são pinturas que também impressionam, talvez porque, mesmo representando o tema religioso, a série, batizada de “Iesu Nativitas” (Natal, em latim), revela imagens que fogem ao lugar-comum da tradição das cenas de Natal.

O caso mais polêmico envolvendo Salvador Dalí e as encomendas para cartões de Natal parece ter sido mesmo a série produzida para a empresa norte-americana Hallmark. O fundador da empresa, Joyce Clyde Hall, desde o final da Segunda Guerra convidava artistas muito conhecidos para produzir imagens para os cartões de Natal da Hallmark. A iniciativa trouxe prestígio para a empresa e alavancou as vendas, com cartões criados por nomes como Pablo Picasso Georgia O'Keeffe, entre vários outros. Mas com a série criada em 1960 por Dalí surgiu um impasse.






O impasse com a encomenda a Dalí para a criação dos cartões de Natal aconteceu porque, assim que recebeu as imagens originais, pintadas a óleo e em guache sobre papel, a empresa passou a temer repercussão negativa ou até mesmo protestos do público. O pagamento de US$ 15 mil foi feito pelo Hallmark antecipadamente, por exigência do artista. Das 10 imagens criadas por Dalí, a maioria foi considerada pelos executivos da empresa “surreais” em excesso e terminaram rejeitadas e arquivadas, não sendo comercializadas no formato de cartões para produção em larga escala, como antes estava previsto. A série foi apresentada em uma exposição na galeria de arte da empresa, em Kansas City, Missouri, no Natal de 1960, e alguns cartões foram impressas para distribuição restrita. Desde então as imagens permaneceram inéditas.


Além dos cartões para a Hoechst Ibérica e para a Hallmark, Dalí também criou outras ilustrações natalinas sob encomenda para revistas e para anúncios publicitários. Alguns destes trabalhos já estavam no catálogo de suas obras-primas, caso das pinturas e aquarelas que tiveram versões publicadas em dezembro de 1948 na capa da revista “Vogue” norte-americana e dos anúncios de publicidade para as meias de nylon da marca Bryans, publicadas na edição de Natal da “Harper's Bazaar”, também em 1948, quando Dalí e Gala ainda moravam nos Estados Unidos.







Cartões de Natal segundo Salvador
Dalí: acima, o cartão criado em 1969
para presentear seu secretário
particular, Enrique Sabater

Abaixo, quatro cartões da série de Natal
criada por Dalí em 1960 para a Hallmark:
1) a árvore de Natal formada por borboletas;
2) a visita dos três reis magos; 3) o anjo
sem cabeça tocando alaúde para Maria
e o menino recém-nascido; e 4) a borboleta
noturna que visita a Madonna e seu filho.
Também abaixo, a Virgem Maria e Jesus
 em aquarela criada para o cartão
da Hoechst Ibérica em 1960



















As estranhas simetrias



Nas pinturas, desenhos e ilustrações com os temas de Natal criados por Salvador Dalí, existe a inevitável persistência de determinados símbolos que percorrem toda a sua trajetória: no lugar dos típicos cenários de neve, de pinheiros verdejantes, de laços e bolas coloridas, as imagens natalinas do mestre surrealista representam outros elementos, com sugestões arquitetônicas e formas geométricas em estranhas simetrias de corpos femininos, além dos adornos propositalmente incomuns que provocam saborosas ilusões de ótica e remetem a polêmicas que marcaram época.

O Natal surreal de Dalí é repleto de analogias que fogem dos limites da religiosidade e avançam em aproximações com o abstrato, o irreal, o sonho. Mesmo quando o que está representado é a Sagrada Família, formada por São José, a Virgem Maria e o Jesus Cristo recém-nascido, a imagem vai revelar outras simetrias – com cores imprevistas, com fragmentos de peixes e insetos, com anjos e árvores delineados em forma de ambiguidades, às vezes bizarras, e também com figuras lendárias da história da arte e da literatura, como a Infanta Margarita Teresa, imortalizada em “Las Meninas”, pintura de 1656 de Diego Velázquez, ou o Don Quijote de la Mancha criado por Miguel de Cervantes no livro de 1600.









O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a capa de Dalí para a
edição que comemorou o aniversário
de 50 anos da revista Vogue, em abril de
1944, e a adaptação da ilustração do artista
na capa da Vogue de dezembro de 1946.

Abaixo, a mesma ilustração nas
versões originais criadas por Dalí;
na terceira ilustração, a dobra que
permite outra visualização da figura











O próprio Dalí declarou muitas vezes que a irracionalidade e o apelo ao universo do pensamento onírico sempre foram os princípios condutores de todo o seu processo criativo. Em dois dos documentários que ele realizou, em parcerias com o fotógrafo Philippe Halsman (“Chaos and Creation”, 1960) e o cineasta Jack Bond (“Dalí in New York”, 1965), Dalí explica, com muitos exemplos e em mínimos detalhes, as etapas de seu processo de criação e as técnicas envolvidas dos primeiros esboços à finalização, condenando toda arte que esteja pautada sobre as regras da tradição e do “bom gosto”.







O Natal surreal segundo Dalí:
acima, o anúncio publicitário
para as meias de nylon da marca
Bryans, publicado em dezembro de
1948 pela revista Harper's Bazaar.

Abaixo, mais três pinturas sob encomenda
para estampar cartões de Natal, a primeira
de 1967 duas seguintes criadas em 1964, da
série intitulada Iesu Nativitas, com o nascimento
de Jesus na gruta em Belém e com a fuga da
Sagrada Família para o Egito. Também abaixo,
uma estampa em homenagem a Dalí,
instalada em dezembro de 2013 na escadaria
do Philadelphia Museum of Art (EUA)














A tradição da ruptura



No filme em parceria com o fotógrafo Philippe Halsman, seu mais fiel colaborador desde a década de 1940, Salvador Dalí volta às suas declarações polêmicas da época do rompimento definitivo com o grupo surrealista (“a diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista”) para avaliar os avanços que a Arte Moderna e o Surrealismo proporcionaram ao século 20. Segundo Dalí, toda a influência e as referências que a arte produzida por ele legou à História vão muito além das exposições em galerias e do destaque de suas obras nos acervos dos principais museus internacionais: elas atingiram o comportamento individual de muitos, muito antes da "atitude rock" de estrelas da música e da cultura pop, e marcaram presença até em questões de ciência e tecnologia.

Na sequência final do filme, o artista das controvérsias e das polêmicas apresenta sua conclusão profética que continua extremamente atual, depois de mais de 50 anos. "O Surrealismo irá, pelo menos, ter servido para provar que a esterilidade e as tentativas de automatizações foram longe demais e ainda correm o sério risco de conduzir toda arte e toda civilização a um único sistema totalitário", alerta. Não resta nenhuma dúvida: o provocador Salvador Dalí permanece como um daqueles grandes mestres, raros e visionários, que sempre conseguem surpreender.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Natal surreal de Salvador Dalí. In: Blog Semióticas, 20 de dezembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/12/natal-surreal-de-salvador-dali.html (acessado em .../.../...).

















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