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20 de março de 2012

Fractais em Athos Bulcão






Sendo uma linguagem, a matemática pode
ser usada não apenas para informar, mas
também, entre outras coisas, para seduzir.

–– Benoît Mandelbrot (1924-2010).  


A lógica dos fractais – aqueles objetos ou imagens geométricas gerados por um padrão repetido que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhantes ao objeto original e independentes da escala – é presença constante na natureza. Conhecidos desde a mais remota Antiguidade, os fractais sempre foram referência para matemáticos e artistas célebres, mas o conceito só foi aceito na comunidade científica internacional a partir de 1975, quando o matemático francês Benoît Mandelbrot passou a desenvolver a geometria fractal. Apontado como inventor e primeiro teórico do novo conceito, Mandelbrot tomou a definição de empréstimo ao termo em latim "fractus", que significa "quebrar".

Em outra seara, abaixo da linha do Equador, poeta de formas e cores, esteta e criador de obras que ultrapassam a dimensão decorativa na integração da arte com as mais diversas funções arquitetônicas, o pintor, escultor, desenhista, mosaicista e arquiteto Athos Bulcão (1918-2008) também dedicou esforços ao longo da vida à lógica dos fractais, antecedendo em pelo menos três décadas o conceito que o matemático francês tornaria universal na arte e na ciência. Artista muito à frente de seu tempo, Athos Bulcão e as formas gráficas e perspectivas inconfundíveis por ele criadas, marcos da arquitetura e das artes plásticas, vêm sendo cada vez mais atualizados.

Ele nunca saiu de cena, desde o reconhecimento de seus primeiros trabalhos, ainda na década de 1940. Mas foi recentemente que as formas e cores da arte de Athos Bulcão tomaram de assalto várias frentes ao mesmo tempo: coleções de moda de várias grifes na São Paulo Fashion Week, homenagens e releituras de artistas diversos em exposições no Brasil e em outros países, novos projetos em paisagismo, urbanismo e arquitetura, peças de design de jóias e relógios, objetos utilitários, gravuras e até sapatos, sandálias e chinelos. Athos Bulcão está em todas. 











Fractais em Athos Bulcão: obras e
padronagens personalíssimas do
arquiteto e artista plástico ganham
coleções nas passarelas da moda.
 No alto e abaixo, painel com imagem de
Athos Bulcão trabalhando no ateliê
e em frente à instalação de seus painéis na
Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima,
em Brasília. Acima, coleção de Ronaldo
Fraga em desfile da São Paulo Fashion Week.

Também abaixo, coleções de peças e objetos
industriais que são comercializados pela
Fundação Athos Bulcão







 .  



Arquitetura e Urbanismo



Carioca de nascença e considerado o maior artista a atuar em Brasília desde a fundação do projeto-piloto, parceiro de frente dos projetos de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, conviva e amigo fiel de ilustres das mais diversas áreas da cultura brasileira, de Burle Marx e Portinari a Fernando Sabino, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes, entre outros, o gênio de Athos Bulcão recebeu um inventário de peso com a publicação de um catálogo completo sobre as interfaces de seu trabalho em painéis, pisos, azulejaria, fachadas e obras em ateliê.

Em edição bilíngue, inglês e português, com mais de 400 páginas que incluem uma seleção de ensaios especialíssima, pontuada por grafismos e vasta iconografia que explora os suportes trabalhados pela ourivesaria do mestre, o livro produzido pela fundação que tem o nome do artista, criada em 1993, mereceu a honraria máxima no mercado editorial: venceu o Prêmio Jabuti na categoria "Arquitetura e urbanismo, fotografia, comunicação e artes".











Com edição a cargo de Valéria Maria Lopes Cabral, secretária executiva da Fundação Athos Bulcão, com sede em Brasília, e projeto gráfico inspirado de Paulo Humberto Ludovico de Almeida e Carlo Zuffellato, a publicação sobre o artista reúne em um único volume a imaginária do seu extenso e valioso acervo, incluindo pintura, desenhos, azulejos, instalações, fotomontagens, máscaras, objetos e obras tridimensionais.

Mais que um catálogo, trata-se de um inventário que oferece uma visão abrangente das mais de cinco décadas por ele dedicadas à arte integrada à arquitetura. Textos e imagens narram os momentos marcantes da trajetória artística e pessoal – destacando, de Belo Horizonte a Brasília e daí a outros continentes, cada um dos 101 espaços que receberam intervenção do artista no Brasil e no mundo.


Compositor do espaço


Diversas cidades e capitais do Brasil, França, Itália, Cabo Verde, Argentina... A lista é extensa, mas Brasília reúne o maior conjunto de criações de Athos Bulcão, acessíveis em espaços públicos como Palácio da Alvorada, Congresso Nacional, Palácio Itamaraty, Teatro Nacional, Setor Comercial Sul, Parque da Cidade e Quadra Residencial 308 Sul, entre outros. "Athos Bulcão", o livro, também pode ser considerado um inventário do patrimônio do artista, apresentado em ensaios inéditos e em uma bibliografia selecionada de textos descritivos e analíticos assinados por nomes como Oscar Niemeyer, André Correa do Lago e Paulo Herkenhoff, entre outros críticos e curadores.

A definição de inventário poderia até constar na capa, já que em sua maioria os artigos e as imagens que registram o trabalho de Athos Bulcão estavam dispersos por catálogos de uma centena de exposições individuais e coletivas promovidas no Brasil e no exterior. Na edição, um total de 187 obras são registradas em 235 fotografias. E mesmo quem conhece de longa data algumas obras referenciais do trabalho do artista vai se surpreender com boa parte do acervo que permanecia inédita.















Feliz com o reconhecimento laureado pelo Prêmio Jabuti, Valéria Cabral explica em entrevista por telefone que a publicação em livro do acervo de Athos Bulcão dá continuidade ao trabalho realizado pela fundação – de preservar e divulgar a obra do artista – e que receber o prêmio máximo do mercado editorial foi uma demonstração do valor que as obras-primas de Bulcão representam.

"Fomos muito aplaudidos e elogiados pela imprensa. Deu para perceber que o público gostou muito da escolha do júri do Prêmio Jabuti", destaca Valéria Cabral. "Estamos muito felizes. Ter vencido nesta categoria reforça ainda mais o quanto o nosso trabalho é importante". Além de inventariar o passo a passo dos mais conhecidos projetos de integração com a arquitetura, desenvolvidos de forma pioneira e surpreendente pelo artista, o livro apresenta a permanência de seu legado personalíssimo.






A arte de Athos Bulcão em cenários
religiosos dos cartões-postais de Brasília:
acima, paredes externas da igrejinha de
Nossa Senhora de Fátima. Abaixo,
porta em metal e vidro criada para a
Capela do Palácio da Alvorada.

Também abaixo, Athos Bulcão na entrada
do Teatro Nacional Cláudio Santoro,
uma das construções de Brasília que
integram patrimônio de arte e arquitetura;
Athos com Oscar Niemeyer, com
quem trabalhou durante anos nos
projetos da construção de Brasília; e um
encontro raro de artistas na década de 1980
em Brasília: a vitralista e única mulher na equipe
de criação da Nova Capital, Marianne Peretti;
Athos Bulcão; o escultor Alfredo Ceschiatti;
Oscar Niemeyer; o então presidente da República,
José Sarney, e Roberto Burle Marx, criador
dos projetos de paisagismo para o
Eixo Monumental da Capital Federal







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No acervo das muitas preciosidades que o livro reproduz estão ainda as obras de ateliê – entre elas, uma sequência de 32 fotomontagens de inspiração surrealista e uma seleta que reúne 26 desenhos, 27 pinturas, 12 máscaras e 15 mini-esculturas, algumas delas batizadas de "bichos" por Athos Bulcão. A edição organizada por Valéria Cabral conta ainda com fotos inéditas, recolhidas dos álbuns do próprio artista e de coleções particulares.



Técnicas e suportes



Além das reproduções e listagem das obras, também há espaço para a intimidade do ateliê e da vida pessoal, incluindo aí uma série comovente de 31 imagens do artista trabalhando em primeiro plano, em diversas épocas, entre amigos e com a família. Apresentado em sua extensão e diversidade, o acervo de Athos Bulcão revela sua abrangência tanto na arquitetura como em outros domínios insuspeitados.

Reunida pela primeira vez em um conjunto organizado, a trajetória histórica do artista deixa em relevo técnicas, temas e materiais de suporte. A obra surpreendente acena em dimensões de grande arte, resultado de cada elaboração sofisticada e testemunho das relações humanas que fazem uso em primeiro lugar da arquitetura – como destaca o foco analítico de Paulo Sérgio Duarte em "Sentido e Urbanidade", ensaio que abre a edição.










Fractais em Athos Bulcão: acima, detalhes
da fachada do Edifício Niemeyer (1960)
na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte.

 Abaixo, detalhes dos painéis da Igrejinha
de Nossa Senhora de Fátima e
painéis de azulejos instalados no
Aeroporto Internacional de Brasília













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.


"As mais presentes e disseminadas obras de Athos Bulcão aplicadas à arquitetura são os relevos em interiores e os murais de azulejos em painéis e fachadas", defende Duarte, lembrando que tais obras representam um acervo disperso em Brasília, cidade escolhida pelo artista para viver, em BH e no Rio de Janeiro, Salvador, Aracaju, Recife, Natal, Teresina, São Paulo, Cuiabá e em Milão, na Itália, ou em várias outras cidades da Europa e do mundo.


Mestre visionário


Outro especialista que assina um dos ensaios, André Correa do Lago destaca a presença das artes plásticas na arquitetura e os movimentos de cores e motivos fractais que acentuam ritmos e contrastes em fachadas, projetos e obras monumentais. "Ele insere-se numa ampla lista de artistas que realizaram obras para projetos arquitetônicos de prestígio e marcou obras-chave do movimento moderno brasileiro", destaca.

Na abordagem de Lago, o lugar da arte nas criações e intervenções de Athos Bulcão supera qualquer reducionismo que pretenda enquadrá-lo nos limites da demanda funcional que está nas interfaces de seu trabalho. Athos, de acordo com a avaliação de Lago, faz parte, sobretudo, de um pequeno grupo de artistas que chegaram a contribuir de tal forma para o aspecto final de edifícios que acabaram sendo tão decisivos para o resultado quanto os próprios arquitetos.














Autodidata e aprendiz de Burle Marx, Cândido Portinari e Oscar Niemeyer, Athos Bulcão metamorfoseou pinturas, máscaras, gravuras, desenhos. Aos 20 anos, tomou a decisão radical de abandonar o curso de Medicina para se dedicar à pintura. A partir daí, cada vez mais cultivou a amizade com poetas, músicos e artistas plásticos. Uma primeira grande reviravolta aconteceu depois de 1945: terminada a Segunda Guerra, Athos foi morar em Paris, França, onde conquistou uma bolsa de estudos. 

De volta ao Brasil, foi funcionário público no Serviço de Documentação do Ministério da Cultura – cargo que abandonaria em pouco tempo, cada vez mais envolvido com a dedicação à arte. Convidado em 1952 a trabalhar na Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), abraçaria com entusiasmo os projetos em arquitetura – área na qual realizaria a maior parte de sua obra e que foi a maior beneficiada por seu talento de artista visionário. O amor à arquitetura é destacado por Athos Bulcão em uma das últimas entrevistas que concedeu, publicada em 1998, no "Jornal de Brasil", e reproduzida entre os anexos reunidos no livro.








Fractais em Athos Bulcão: acima,
painel de azulejos no Brasília Palace
Hotel. Abaixo, painel de cerâmica no 
Instituto Rio Branco, em Brasília,
e Athos Bulcão em fotografia da
época da inauguração de Brasília













Habitante do silêncio



Na entrevista, Athos Bulcão expõe em detalhes seu processo de criação e considera algumas das questões relacionadas à arquitetura de um ponto de vista emblemático. Questionado sobre sua escolha definitiva por Brasília e se o processo de globalização poderia prejudicar sua individualidade criativa de artista, o mestre visionário ironiza e surpreende. 

"Muda muito a orientação, mas acho que não prejudica", avalia, citando suas referências mais marcantes e uma diversidade de casos em que poderia ter se espelhado se não tivesse a determinação e o desprendimento de seu trabalho autoral. "Atualmente fica tudo meio preso àquela máxima inventada pelo Andy Warhol, de que todo mundo quer ter seus 15 minutos de fama. É um pouco isso. Mas quando a coisa é muito boa, ela aguenta em qualquer circunstância". 

 






Obras do ateliê do artista: acima, detalhes
de composição e estudo em guache.
Abaixo, estudo para painel em desenhos
finalizados com lápis de cor e uma
serigrafia produzida em 1980.

Também abaixo, painel de azulejos na
Embaixada do Brasil em Buenos Aires,
na Argentina; Athos Bulcão com os operários
durante as obras do Hospital Sarah Kubitschek,
em Brasília, em 1960; e uma de suas últimas
fotografias, no ano de sua morte, 2008


















A certa altura do texto, Carmem Moretzshon, que realizou a entrevista para o "Jornal do Brasil", define Athos Bulcão como "habitante do silêncio em Brasília". Nada mais acertado: a definição, poética e algo melancólica, localiza das dimensões épicas à minúcia burilada de cada fragmento fractal que o artista deixou nos cartões-postais do Distrito Federal e em tantos outros logradouros em muitas cidades e países.

Nascido no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, o estudante que um dia trocou a medicina pelas artes plásticas e depois pela arquitetura, encontrou seu lugar de permanência quando deixou tudo para seguir com Niemeyer e Lucio Costa para a criação da capital dos sonhos do presidente Juscelino Kubitschek. Uma equipe numerosa de profissionais, contratados em muitas áreas, concebeu o projeto e a instalação da cidade planejada, mas nunca morou nela. Diferente da maioria, Athos Bulcão, "habitante do silêncio", depois que chegou nunca mais deixou Brasília.



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fractais de Athos Bulcão. In: _____. Blog Semióticas, 20 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/fractais-em-athos-bulcao.html (acessado em .../.../...).










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