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30 de setembro de 2023

Pessoas do deserto

 





Gauri Gill, uma fotógrafa que há duas décadas registra imagens de pessoas em situação de pobreza, em vilarejos da área rural e no deserto do Rajastão, ao norte da Índia, foi anunciada vencedora da edição 2023 do Prix Pictet, prêmio internacional de fotografia e sustentabilidade, considerado um dos mais importantes da atualidade. A organização do prêmio, que nesta 10ª edição teve o tema “Humano”, havia divulgado uma lista com ensaios dos 12 fotógrafos finalistas de 11 países, selecionados por um júri independente nomeado pelo grupo financeiro Pictet, com sede na Suíça, que criou a premiação em 2008. O prêmio é entregue a cada dois anos e, em seguida à premiação, há uma extensa programação itinerante que inclui exposições e eventos paralelos com conferências, cursos, debates e mostras audiovisuais em 10 países.

O ensaio vencedor do Prix Pictet, “Notes from the Desert” (Notas do Deserto), reúne uma série de fotografias em preto e branco com pouco contraste, o que dá a elas um tom envelhecido, com uma temática na qual Gauri Gill trabalha desde 1999 e se concentra em pessoas das escolas rurais do Rajastão, na Índia. A fotógrafa define seu trabalho como “escuta ativa” sobre comunidades marginalizadas para representar o espectro de suas vidas. No dossiê de imprensa da premiação, Gauri Gill faz um relato comovente sobre a pobreza e sobre as dificuldades da região e declara que sua meta foi dar continuidade ao trabalho de fotógrafos que admira. Ela cita três mestres como suas maiores influências: o norte-americano Alfred Stieglitz (1864-1946); o alemão August Sander (1876-1964); e Robert Frank (1924-2019), nascido na Suíça. Os três são referências na história da fotografia por seus célebres portifólios com retratos de pessoas comuns e pela aproximação com as causas sociais.

 

 



Pessoas do deserto: acima, a fotógrafa Gauri Gill na
cerimônia de premiação do Prix Pictet, em Londres,
em 28 de setembro de 2023. No alto e abaixo,
Urma e Nimli, duas meninas da escola do distrito
de Lunkaransar. Também abaixo, Sumri, filha
do pastor de cabras no distrito de Barmer; e outras
fotografias do ensaio premiado de Gauri Gill







 


  


 



Na última edição da premiação, em 2021, que teve como tema “Fire” (Fogo), a vencedora foi a norte-americana Sally Mann, com uma série de fotografias, também em preto e branco, sobre incêndios florestais no estado da Virgínia, na região sudeste dos Estados Unidos. Intitulada “Blackwater, 2008-2012”, a série de fotografias de Sally Mann registrou imagens do que restou depois da destruição pelo fogo nos pântanos da Virgínia, mesma região que foi devastada e incendiada nos séculos passados por fazendeiros em busca de seus escravos fugitivos que tinham aquele território selvagem como refúgio e esconderijo. Sally Mann usou equipamentos e técnicas que eram usados nos primeiros tempos da fotografia, no século 19 (veja também Semióticas – Imagens de fogo e revolta).


Desigualdade social e crise ambiental


Gauri Gill, a fotógrafa premiada na edição 2023, recebeu um prêmio em dinheiro equivalente a US$ 109 mil e terá seu trabalho editado em um fotolivro de luxo, além do destaque na exposição itinerante que estará aberta ao público no Victoria & Albert Museum, em Londres, até 22 de outubro, e que depois deverá seguir para outras capitais de vários países. Nesta edição, o Prix Pictet também anunciou a novidade de uma premiação pela escolha do público (People’s Choice Award), com votações pelo site oficial do prêmio que também apresenta todas as fotografias dos 12 ensaios pré-selecionados (veja o link no final desta postagem). A votação está aberta e o resultado será anunciado no encerramento da exposição em Londres.

 





Pessoas do deserto: acima, Jannat, menina da
escola de Barmer. Abaixo,
Hanuman Nath com seus
filhos na cerimônia do Holi Day, em Lunkaransar.
Também abaixo, paciente em um exame médico no
posto de saúde mantido pelo governo em Barmer




         




No dossiê de imprensa, Isabelle von Ribbentrop, diretora executiva da premiação, explica que, neste nosso mundo que enfrenta desafios sem precedentes, desde a desigualdade social às crises ambientais, era crucial que o Prix Pictet virasse a lente para a própria humanidade. “O tema Humano fornece uma plataforma de possibilidades sobre as complexidades, vulnerabilidades e pontos fortes da condição humana. Permite aos artistas capturar e comunicar as histórias de indivíduos e de comunidades”, ressalta. Vulnerabilidade, de fato, parece ser o tema central da condição humana nas imagens de Gauri Gill. Ela revela que começou a fotografar as escolas das vilas do Rajastão em abril de 1999, depois de presenciar uma cena que a deixou emocionada: uma menina pequena sendo violentamente espancada na sala de aula pela professora.

Territórios do deserto

“Depois de assistir aquela cena chocante, que parecia normal para todos que estavam presentes, retornei a Delhi e propus a um jornal onde trabalhei a realização de uma fotorreportagem sobre como era ser uma menina em uma escola de aldeia, mas me disseram que minha pauta carecia de interesse para que os leitores urbanos pudessem se identificar. Então decidi começar o trabalho por conta própria e comecei a viajar pelas escolas da zona rural e pelos territórios do deserto, pelos distritos de Jaipur, Jodhpur, Osiyan, Bikaner, Barmer, Phalodi, Baran e Churu, fotografando crianças e adultos, principalmente nas pequenas aldeias e nos vilarejos. Este trabalho já dura mais de duas décadas e uma seleção das imagens formam este ensaio agora premiado”, recorda Gauri Gill.

 

           
 


Pessoas do deserto: acima, Izmat, moradora de
Barmer. Abaixo,
Jogiyon ka Dera, morador de
Lunkaransar; e um momento de lazer que
resultou em um flagrante surreal de
pai e filha também em Lunkaransar




 




 

Nascida em Delhi, em 1970, e com formação no curso superior pelo Delhi College of Arts, Gauri Gill reconhece que sua inspiração vem, principalmente, dos fotógrafos que admira, os mestres August Sander, Alfred Stieglitz e Robert Frank, pela ternura que cada um deles demonstrou ao registrar pessoas anônimas e quase sempre marginalizadas. Tendo como modelo de trabalho os portifólios dos três fotógrafos, ela explica que começou organizando as fotografias das escolas como se fossem álbuns de família, e que depois de anos de trabalho viajando pelas áreas rurais acabou formando laços afetivos com vários personagens que fotografou e reencontrou tempos depois. Nos últimos anos ela também fez viagens internacionais a trabalho e suas fotos foram publicadas em veículos importantes de imprensa, como o jornal inglês The Guardian.


Arte e fotojornalismo


Uma de suas séries fotográficas de Gauri Gill que tiveram repercussão foi “The Americans”, registro de sua primeira viagem aos Estados Unidos, com fotografias que tentam estabelecer um diálogo com a célebre obra homônima de Robert Frank que teve grande destaque, com exposições e um fotolivro publicado no final dos anos 1950, com texto de apresentação do escritor Jack Kerouac. Na versão de Gauri Gill para “The Americans”, ela fotografou apenas os remanescentes de povos indígenas, nas aldeias das áreas rurais e na periferia das grandes cidades, em cenas de trabalho da vida urbana e também nos rituais que celebram e recordam seus antepassados dizimados pelos colonos na ocupação do território.



              

Pessoas do deserto: acima, um poço de água
(no detalhe à esquerda da foto) na imensidão do
deserto do Rajastão. Abaixo,
Mir Hasan com seu
avô Haji Saraj ud Din, moradores de Barmer;
e a fotógrafa em um autorretrato.

Também abaixo, o cartaz na abertura da
exposição do Prix Pictet 2023 no Victoria &
Albert Museum em Londres; uma das fotografias
em destaque na exposição; duas fotografias da
série publicada no fotolivro "Atos de aparência";
a fotógrafa Gauri Gill em Delhi, na Índia; uma
fotografia da série Jannat 1999-2007; e duas
imagens do fotolivro "Campos de Visão", que
reúne fotografias de Gauri Gill e intervenções
gráficas de Warli Rajesh Vangad









Durante a temporada em que morou nos Estados Unidos, Gauri Gill também fez cursos de pós-graduação na Parsons School of Design, em Nova York, e na Stanford University, na Califórnia. Recentemente, ela publicou dois fotolivros pela Patrick Frey Editions com seleções de seu trabalho nas últimas décadas, "Acts of Appearance" (Atos de aparência),  de  2022, sobre artistas populares da Índia que produzem máscaras e objetos de papel machê para festas tradicionais, e “Fields of Sight" (Campos de visão),  de  2023, em parceria com o artista indiano Warli Rajesh Vangad, com retratos de paisagens ligadas a rituais sagrados e a histórias míticas da Índia. Ela também teve diversas exposições de suas fotografias em museus dos Estados Unidos e na Europa, incluindo participações na Documenta de Kassel, na Alemanha, e na Bienal de Veneza, na Itália.

Atualmente Gauri Gill vive exclusivamente de seu trabalho como fotógrafa. Em Delhi, onde mora, ela fundou em 2006 uma revista mensal editada no formato tradicional, em papel, e também na versão on-line, dedicada a divulgar a obra de fotógrafos profissionais e de iniciantes. O nome da revista é “Camerawork Delhi”, em homenagem ao lendário “Camera Work”, jornal de vanguarda fundado por Alfred Stieglitz em Nova York que teve 50 edições, entre 1903 e 1917, e que se tornou a primeira grande referência da fotografia como arte.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Pessoas do deserto. In: Blog Semióticas, 30 de setembro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/09/pessoas-do-deserto.html (acessado em .../.../…).



Para uma visita virtual à exposição do Prix Pictet 2023,  clique aqui.

 

 

Imagem


















 

30 de junho de 2023

Fotografia e canções de amor

 



Eu não me importava com a "boa" fotografia.
Eu me importava com a honestidade completa.

––  Nan Goldin. 


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A história é muito conhecida por quem se interessa por fotografia contemporânea: no início da década de 1970, surgiu em Nova York uma fotógrafa, Nan Goldin, que nos anos seguintes se tornaria uma das mais celebradas e polêmicas artistas da fotografia. O adjetivo “polêmica” veio por conta do tema mais frequente abordado por ela: a fotógrafa quase sempre está presente nas fotos, interagindo com amigos e amantes que, muitas vezes, são figuras anônimas da comunidade LGBT, com seus corpos em momentos de intimidade. As primeiras exposições das fotos de Nan Goldin foram em espaços do “underground”, sempre com imagens em cores fortes e sempre com um ritual de fazer as exposições tendo, como trilha sonora, as canções do Velvet Underground, árias de ópera na voz de Maria Callas ou baladas românticas de James Brown. Um declaração dela em uma entrevista, nos anos 1970, ficou célebre: "minhas fotografias", ela explicou, "são como um diário, mas um diário que permito que as pessoas leiam".

Há quem diga que as fotografias de Nan Goldin foram tão importantes para o florescimento do orgulho LGBT como as paradas e desfiles que surgiram para lembrar o levante histórico do bar Stonewall Inn, também em Nova York. Localizado no Greenwich Village, bairro boêmio que foi um epicentro da contracultura, Stonewall, que era conhecido por abrigar abertamente a comunidade gay, foi invadido de forma violenta pela polícia na madrugada de 28 de junho de 1969, durante uma festa em homenagem a Judy Garland, que havia morrido em 22 de junho. Os frequentadores se recusaram a irem presos e começaram a rebelião que se tornaria um marco histórico na luta pelos Direitos Humanos e pelos direitos dos homossexuais, gerando uma série de protestos que levaram ao fortalecimento de movimentos da luta pelos direitos LGBT não somente nos Estados Unidos, mas também em outros países. A referência a "Over the Rainbow" (Além do Arco-íris), tema do filme de 1939 "O Mágico de Oz", maior sucesso de Judy Garland, levaria a imagem do arco-íris a ser adotada como principal símbolo e bandeira do movimento LGBT.










Fotografias e canções de amor
: no alto da página,
"Lovers in a field", foto de 2019 de Clifford Prince King,
uma das imagens selecionadas para a exposição e o
fotolivro "Love Songs, Photography and Intimacy",
organizados pelo Centro Internacional de Fotografia (ICP)
de Nova York. Acima, "Nan & Brian in bed", foto de 1983
de Nan Goldin, da série "The Ballad of Sexual Dependency";
e uma das raras imagens que registram a invasão policial ao
bar Stonewall Inn, na madrugada de 28 de junho de 1969,
em fotografia de
Joseph Ambrosini. Também acima,
a fachada do Stonewall Inn em fotografia de 2012.

Abaixo, "Rise & Monty kissing" e "Nan One Month
After Being Battered”
, fotografias de 1980 e de 1984
de Nan Goldin; e duas fotos da série "Poster boys",
publicada em 2019 por Clifford Prince King.
Todas as imagens desta postagem fazem parte do
catálogo da exposição "Love Songs, Photography
and Intimacy"
, exceto as imagens do Stonewall Inn,
publicadas pela Hollywood Forever TV






      



      



         


Depois das primeiras exposições que se tornaram objeto de culto em Nova York, as fotos que fizeram de Nan Goldin uma celebridade ganharam mostras em outras cidades e outros países e, em 1986, foram publicadas no livro “The Ballad of Sexual Dependency”, reunindo aos autorretratos da intimidade da fotógrafa, e de homens e mulheres de Nova York, outras imagens capturadas em cidades dos Estados Unidos e de países da Europa. O livro de Nan Goldin tornou-se um marco incontornável e teve novos capítulos nos anos e décadas seguintes, com novas exposições e novos livros da fotógrafa, entre eles “The Other Side” (1993), “Ten Years After” (1997) e “The Beautiful Smile” (2008), conquistando prêmios e retrospectivas no Whitney Museum de Nova York (1997), no Centro Pompidou de Paris (2001) e no Museu do Louvre (2010).

Agora, décadas depois das primeiras exposições revolucionárias de Nan Goldin, uma grande exposição no Centro Internacional de Fotografia (ICP) de Nova York e um fotolivro, com uma seleção de 16 fotógrafos contemporâneos de vários países, dialogam com as experiências estéticas e documentais lançadas em “The Ballad of Sexual Dependency”. Em “Canções de Amor – Fotografia e Intimidade” (Love Songs, Photography and Intimacy), título da exposição e do fotolivro, estão reunidas amostras de 70 anos da história da fotografia: são retratos, autorretratos e ensaios temáticos com imagens que registram relacionamentos amorosos em suas formas mais cotidianas ou incomuns, complexas e contraditórias. A exposição permanecerá aberta de 1º de junho a 11 de setembro de 2023 e depois segue um roteiro itinerante por museus e centros de cultura nos Estados Unidos e em outros países.







Fotografias e canções de amor: acima, a capa do
fotolivro e catálogo da exposição. Abaixo, uma imagem
de "Personal Letters", série fotográfica do ano 2000
de 
Rong Rong&inri. Também abaixo, uma foto
de "Sentimental Journey" (1971) e uma sequência
de "Winter Journey" (1990), de Nobuyoshi Araki
  













Cenas de amor


Exposição e fotolivro têm curadoria de Sara Raza, que durante anos foi curadora dos museus Guggenheim de Nova York e Tate Modern de Londres. Em colaboração com a Maison Européenne de la Photographie (MEP) de Paris, Sara Raza apresenta sua abordagem sobre o tema das histórias de amor com fotos selecionadas dos portfólios de Nan Goldin e dos fotógrafos Nobuyoshi Araki e Motoyuki Daifu (Japão), Ergin Çavuşoğlu (Bulgária), Fouad Elkoury (Líbano), Aikaterini Gegisian (Armênia/Grécia), René Groebli (Suíça), Hervé Guibert (França), Sheree Hovsepian (Irã), Clifford Prince King (EUA), Leigh Ledare (EUA), Lin Zhipeng (também conhecido como Nº 223 – nascido na China), Rong Rong&inri (China), Sally Mann (EUA), Collier Schorr (EUA) e Karla Hiraldo Voleau (República Dominicana).

“Canções de Amor – Fotografia e Intimidade”, a exposição e o fotolivro, são apresentados no formato de uma coletânea musical, como se fossem uma seleção de canções que pessoas apaixonadas ou amigos escolheram e gravaram para dar de presente. No lado A da seleção, fotos do período 1952-1980; no lado B, fotos do final dos anos 1980 até 2022. O olhar mais observador poderá perceber, com ou sem o auxílio das legendas, as histórias de amor capturadas em sequências de fotos, do mesmo fotógrafo ou com os mesmos personagens fotografados – casais em cenas de festas, de bares, em público ou clandestinas, de mais intimidade e sensualidade, imagens da felicidade doméstica ou da solidão que a ausência da pessoa amada provoca.














Fotografias e canções de amor: acima, imagens
das séries de Lin Zhipeng (também conhecido
como Nº 223) extraídas de "Fish Hop"de 2009;
"Ben's Contourn Lines", de 2012; e
"Kissing under Qilian Mountains", de 2009.

Abaixo, imagens extraídas de "Handbook of the
Spontaneous Other" (Manual do outro espontâneo),
série de 2019 de Aikaterini Gegisian









Um traço marcante em todo o conjunto de fotografias e de fotógrafos selecionados, como destaca a curadora no dossiê de imprensa, é o registro autobiográfico: o envolvimento pessoal de cada fotógrafo com cenas e personagens fotografados, em alguns casos com revelações de sua intimidade e de suas histórias de amor. Assim como Nan Goldin, referência da curadoria, sempre declarou que suas fotos registram sua vida, sua tribo, seus amigos e seus afetos mais íntimos, o aspecto confessional também envolve os demais fotógrafos reunidos por Sara Raza. No caso de Nobuyoshi Araki, as fotos vêm de dois fotolivros: “Sentimental Journey” (Jornada sentimental), de 1971, que revela um diário do fotógrafo e de sua amada, Yoko, desde a lua de mel e durante duas décadas; e “Winter Journey” (Jornada de inverno), de 1990, sobre os últimos meses de vida de Yoko, que morreu aos 42 anos.


Memórias românticas


Rong Rong&inri está presente com a série “Personal Letters” (Cartas pessoais), publicada no ano 2000. O nome artístico identifica dois fotógrafos, dois amantes que mantiveram o romance em segredo na China e registraram uma correspondência apaixonada, compartilhada entre os meses de setembro a novembro, com fotos de cenas urbanas e domésticas, planos de detalhe e recortes diversos que expressam emoções, questões da sexualidade e juras de amor. Hervé Guibert, com “Thierry” (1976-1991), também revela sua história de amor com Thierry Jouno, desde o dia em que se conheceram até a morte de Thierry, em 1991. As fotos de Guibert lembram fotogramas de cinema, com os dois amantes juntos ou separados, em quartos de hotel e em cenas de viagens, vestindo fantasias e em poses carregadas de erotismo.












Fotografias e canções de amor: acima, três imagens
de “L'Oeil de L'Amour”, ensaio autobiográfico de 1952
de René Groebli registrado durante sua lua de mel em
Paris. Abaixo, duas fotos de “Thierry” (1976-1991),
série em que Hervé Guibert revela momentos
de sua história de amor com Thierry Jouno 











A série de fotos mais antiga da exposição foi registrada por René Groebli com “L'Oeil de L'Amour” (O olho do amor), de 1952. Em imagens radicalmente intimistas, o olhar de Groebli transporta o observador para dentro do espaço romântico de uma lua de mel vivida pelo fotógrafo em Paris. As cenas, no quarto de hotel, são surpreendentes pelo que revelam de nudez e intimidade, com profunda e amorosa proximidade entre o fotógrafo e sua amada, como se Groebli quisesse registrar cada detalhe daquele momento fugaz que passaram juntos – com sua esposa se vestindo e se despindo, a cama desarrumada, uma peça de roupa, os reflexos no espelho, uma garrafa de vinho, a mesa, sua mão segurando um cigarro aceso.

“Lovesody” (2008), de Motoyuki Daifu, também mostra o período inicial de uma história de amor que teve a duração de seis meses: o fotógrafo captura com franqueza sua experiência de se apaixonar por uma mãe solteira de um menino de dois anos, grávida do segundo filho quando se conheceram. São retratos sem verniz, de um realismo sem tréguas, que mostram a vida cotidiana e as incertezas daquele momento no pequeno apartamento com poucos móveis, cheio de brinquedos e de roupas amontoadas. O brilho de beleza: um sorriso furtivo da amada no flagrante ligeiramente fora de foco.







Fotografias e canções de amor: acima, imagens
do ensaio autobiográfico “Lovesody” (2008),
de Motoyuki Daifu. Abaixo, Angel Zinovieff
em fotografia de 2021 de Collier Schorr.

Também abaixo, dois fotogramas de “Silent Glide”,
videoinstalação de 2008 de Ergin Çavuşoğlur






Imagens híbridas


O amor em meio à fragilidade e a incertezas também está no centro de “Proud Flesh” (Carne orgulhosa), de 2003-2009, de Sally Mann, que registra o diagnóstico e o avanço da distrofia muscular em seu marido Larry. A nudez, a vulnerabilidade, as imagens de ternura – as fotos de Sally Mann oscilam entre o brutal e o poético, mas são sempre comoventes. Há também as fotos que saem do realismo e vão para o território das sugestões oníricas e das colagens que formam imagens híbridas, como é o caso de "Handbook of the Spontaneous Other" (Manual do outro espontâneo), série de 2019 de Aikaterini Gegisian que mistura autorretratos com recortes e fetiches de revistas eróticas, anúncios publicitários e cenários da National Geographic.

Em outra série de 2019, Clifford Prince King encena suas versões para fotos conhecidas, acrescentando sua visão muito pessoal sobre o amor “queer” entre pessoas negras para abordar questões de gênero e de identidade. Sheree Hovsepian também apresenta montagens fragmentadas de imagens da cultura pop em uma série de 2021-2022, evocando o erotismo das formas femininas, com sua irmã como modelo na maioria das fotos, enquanto Collier Schorr, em “Angel Z.” (2020-22), registra cenas da intimidade de seu caso de amor com Angel Zinovieff durante o longo confinamento provocado pela pandemia de covid-19.








Em “Silent Glide” (Deslizamento silencioso), de 2008, Ergin Çavuşoğlu reúne imagens que no livro aparecem extraídas como fotogramas e na exposição são projetadas lado a lado em três telas simultâneas de uma videoinstalação (assista aqui). As cenas, que no início surgem como sequências aleatórias, têm diálogos inspirados em passagens da literatura do russo Liev Tolstói e mostram três momentos na vida de um casal de amantes: a aproximação, o amor intenso e a separação com a relação desfeita, sempre tendo ao fundo, como moldura, barcos cargueiros que atravessam sem parar o mar azul (nos momentos de harmonia) ou o contraste melancólico dos cenários poluídos de instalações industriais.

Cenas de momentos consecutivos de uma breve história de amor também estão em “On War and Love” (Sobre guerra e amor), de 2006, em que Fouad Elkoury registra um diário de 30 dias de guerra no Líbano, de 13 de julho a 14 de agosto. Nas imagens, que surgem como flagrantes ao acaso, os encontros amorosos de uma dupla com grande diferença de idade. Desenhos, palavras e frases manuscritas aparecem sobrepostas nas fotos ou apresentadas como legendas, acrescentando camadas de sentido imprevistas que em alguns casos revelam, em outros apenas sugerem, uma sintonia entre o sofrimento da vida pessoal e o drama coletivo de um cotidiano violento.








Fotografias e canções de amor: acima, as imagens
fragmentadas de Sheree Hovsepian, com detalhes
da anatomia do corpo feminino. Abaixo, duas fotos
de "Another Love Story", o ensaio de autoficção
da fotógrafa Karla Hiraldo Voleau.

No final da postagem, duas imagens de “Proud Flesh”,
ensaio fotobiográfico de 2003-2009, de Sally Mann,
que registra o diagnóstico e o avanço da distrofia
muscular em seu marido Larry; mais uma das fotos
de “L'Oeil de L'Amour”, ensaio autobiográfico
de 1952 
de René Groebli; e duas imagens
panorâmicas das galerias da exposição no
Centro Internacional de Fotografia (ICP)








As camadas de sentido imprevistas também vêm de situações como a comparação inevitável das sequências de fotos de Leigh Ledare em “Double Bind” (Ligação dupla), de 2010: na primeira sequência, sua ex-esposa é fotografada por ele durante uma temporada em uma cabana em uma área rural; na segunda, depois da separação, quando ela estava recém-casada, o novo marido e também fotógrafo Adam Fedderly foi convidado a refazer as fotos com a ex-mulher de Leigh Ledare nos mesmos cenários, nas mesmas poses e situações. O observador é levado a um jogo que contrapõe registros sobre uma relação que terminou e outra que começava, sobre o tempo passado e o tempo presente, a impossibilidade que levou ao rompimento e as promessas de futuro, as memórias e os afetos traduzidos em cada uma das imagens.

Karla Hiraldo Voleau também encena as memórias de uma relação em uma série de fotos que tem o título “Another Love Story”: em um texto breve, ela explica que reuniu fotos de um amor do passado que terminou, de forma dramática, quando ela descobriu que estava sendo traída e enganada porque seu namorado levava uma vida dupla e tinha uma outra família. Para sua performance autobiográfica, a fotógrafa decidiu encenar momentos marcantes de seu álbum de retratos com o artifício de um duplo: ela contratou um modelo parecido com seu antigo amor e reconstituiu nos mínimos detalhes cada uma das fotos, apenas substituindo o amante.

Mais do que contar experiências e histórias de amor de cada fotógrafo, as imagens selecionadas para a exposição e o fotolivro “Canções de Amor – Fotografia e Intimidade” sugerem questionamentos sobre a natureza da fotografia, sua condição de registro subjetivo e de reconstrução de uma realidade, mais do que uma reprodução objetiva do real. “As fotos selecionadas oferecem uma janela para os temas da arte e dos registros documentais que, muitas vezes, surgem entrelaçados ou em colisão, em contradição, como também são entrelaçados e contraditórios na vida cotidiana as questões do desejo e da realidade”, argumenta Sara Raza. Sobre a mesma questão, Nan Coldin declarou: “Toda fotografia está muito próxima do cinema. E também é uma forma de tocar alguém, é uma carícia. Acho que uma foto pode dar, a cada pessoa, acesso a sua própria alma”.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fotografia e canções de amor. In: Blog Semióticas, 30 de junho de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/06/fotografia-e-cancoes-de-amor.html (acessado em .../.../…).



Para visitar a exposição do 
Centro Internacional de Fotografia,  clique aqui.


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