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31 de dezembro de 2020

Cidades de Miguel Rio Branco


 

 

Na maioria das vezes as fotografias recentes

que encontro não me dizem nada. Só nas fotos

do século passado eu encontro um certo frescor.

–– Miguel Rio Branco.   


O ano da pandemia chegou ao fim com uma importante homenagem a Miguel Rio Branco, um dos principais nomes da fotografia contemporânea no Brasil e, por coincidência, um fotógrafo que há mais de meio século atua registrando o isolamento social involuntário que a sociedade de consumo impõe a pessoas que, por diversos motivos, estão proscritas do sistema, às margens das grandes cidades. A homenagem veio do Instituto Moreira Salles (IMS) com a apresentação, em sua sede imponente da Avenida Paulista, da maior e mais abrangente mostra já realizada sobre a trajetória do fotógrafo. Com um título também imponente, abrangente e paradoxal, “Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”, a exposição, organizada pelo próprio Miguel Rio Branco em parceria com Thyago Nogueira, curador da área de Fotografia Contemporânea do IMS, reúne mais de 200 imagens em grandes painéis que, literalmente, ampliam detalhes para destacar novos sentidos de uma obra singular, marcada pelos registros documentais e pela experimentação do suporte fotográfico no cruzamento de diferentes linguagens como a pintura, o cinema, a música.

Miguel Rio Branco, que completou 74 anos neste ano da pandemia, revê, pela primeira vez, seu arquivo da vida inteira nas imagens em cores e em preto e branco selecionadas para a exposição – um evento que, em sintonia com os novos tempos, será apresentado com rígidos protocolos de segurança, horário restrito e visitação em número reduzido, somente autorizado a partir de agendamento prévio. Além da visitação presencial com restrições e da versão on-line no site do IMS, o acervo fotográfico também está reunido em um catálogo completo de 208 páginas, na verdade uma narrativa visual editada pelo próprio fotógrafo e pela curadoria. Na apresentação ao catálogo, Thyago Nogueira destaca que Miguel Rio Branco tornou-se mundialmente conhecido por seus fotolivros – livros fotográficos construídos através de edições com critérios minuciosos e rigor técnico que conquistaram, no Brasil e no exterior, o status de obras de arte.










Cidades de Miguel Rio Branco: fotografias
selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”
,
apresentada pelo Instituto Moreira Salles. No alto,
imagem da série de 1973 Azul e Vermelho com Cavalo.
Acima, fotografia de Maria Clara Villas na abertura da
exposição no IMS da Avenida Paulista. Também acima,
fotografia de Miguel Rio Branco em homenagem à
cantora de jazz Billie Holiday no rosto de uma mulher
anônima em Salvador, Bahia, uma das três imagens
da série Billy's Triptychy, de 1984.

Abaixo, outras fotografias de Miguel Rio Branco
reunidas na exposição do IMS: Cinema Glória,
de 1975; uma imagem da série Coração,
Espelho da Carne
, de 1980; e uma imagem
da série Mona Lisa, de 1973














O artista Miguel Rio Branco exibe sua maneira pessoal de encarar a fotografia”, aponta o curador. “Aqui (na exposição ‘Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas’), a imagem não é apenas o registro de uma realidade vivida ou observada, mas um momento capaz de oferecer uma nova experiência. O que está em foco é a vivência do artista diante das cidades e sua maneira própria de escrever com imagens. A ideia do projeto era pensar a fotografia como escrita e investigar a sintaxe própria deste universo fotográfico. Ela tem a ver com um cruzamento de imagens de diferentes contextos e diferentes épocas para formar novas palavras, novas frases”, completa. Além da apresentação de Thyago Nogueira, o catálogo da exposição também apresenta um texto da crítica de arte Luisa Duarte que destaca, na experiência urbana que o fotógrafo registra, uma série de contradições comoventes e violências forjadas por “carne, pele, saliva, suor, sangue, nervo, gemidos, vertigens, provenientes de pugilistas, prostitutas, meninos, idosos, cachorros, que vivem entre facas, bebidas, cigarros, cicatrizes e tatuagens, e habitam as regiões onde as cidades ainda pulsam.



Melodia visual



Completam o acervo de duas centenas de imagens ampliadas da trajetória do fotógrafo uma instalação, “Out of Nowhere”, que foi criada para a Bienal de Havana em 1994 e agora surge remontada em nova versão concebida para o espaço da exposição no IMS. Na instalação, um fio condutor de colagens reúne fotografias de uma academia de boxe da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, e retratos de temas sobre a a violência, a miséria, a solidão, a sexualidade – fragmentos de imagens de suportes diversos, à maneira das pranchas do Atlas do historiador alemão Aby Warburg (1866-1929), em um fundo de tecido negro com espelhos antigos em formatos variados. O título da instalação vem de uma antiga canção norte-americana de 1931, época da Grande Depressão, uma composição em tons nostálgicos e melancólicos de Johnny Green e Edward Heyman que virou “standard” do jazz presente no repertório de Bing Crosby, Billie Holiday, Lena Horne, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Frank Sinatra e outros. Como ressalta o curador Thyago Nogueira, Miguel Rio Branco usa as fotografias como notas musicais que associa em dípticos, trípticos, polípticos, como quem compõe os acordes de uma melodia visual.












Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
três imagens da série Neve em Nova York,
de 1973. Abaixo, duas fotografias da série
Parede Vermelha, realizada entre 1992 e 2020,
todas presentes na exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas,
sangradas”
apresentada pelo IMS








Filho de diplomatas de origem brasileira, Miguel Rio Branco nasceu em 1946 em um cenário exótico: Las Palmas de Gran Canária, uma das cidades autônimas das Ilhas Canárias, território espanhol situado no Oceano Atlântico, próximo aos arquipélagos de Açores e de Cabo Verde, a oeste da costa africana do Marrocos. Depois da infância e da adolescência que viveu em trânsito entre Espanha, Brasil, Portugal, Suíça, Estados Unidos e outros países, Miguel veio definitivamente para o Brasil em 1967 e reconhece que descobriu, no Rio de Janeiro, uma realidade social que provocou nele um impacto tão forte, tão duradouro, que mudou definitivamente sua vida e sua visão de mundo. Segundo Miguel Río Branco, as fotografias que ele produz tentam reproduzir e traduzir, ainda hoje, aquele mesmo impacto de seus olhares em trânsito: entre a proximidade da beleza das cores que predominavam nas praias da zona sul carioca e a miséria também colorida das favelas que se espalhavam e se alongavam morro acima.

Seu interesse pelo mundo das artes começou muito cedo, com dedicação de autodidata às cores do desenho e da pintura. Sua primeira exposição como pintor, quando ele era ainda adolescente, aconteceu em uma galeria em Berna, na Suíça, no ano de 1964. Dois anos depois, enquanto morava em Nova York, foi estudar não a pintura, mas a fotografia, na condição de aluno matriculado no Instituto de Fotografia de Nova York. Também dois anos depois, já como morador da cidade do Rio de Janeiro, passou a estudar na ESDI, a Escola Superior de Desenho Industrial, simultaneamente fazendo séries fotográficas, diárias e intermináveis, sobre as ruas e favelas do Rio de Janeiro e seus habitantes e trabalhando como diretor de fotografia e como cinegrafista para cineastas como Gilberto Loureiro, Antonio Calmon, Alberto Ruschel Filho, Jom Tob Azulay e Júlio Bressane.









Cidades de Miguel Rio Branco
: fotografias
selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”
,
apresentada pelo IMS. No alto, imagem da série de
2005 
Babel Blues
. Acima, Homem na janela da
parede rosa
, imagem da série realizada em
1979 no Pelourinho, em Salvador.

Abaixo, fotografia da série Thunderdog, de 1998;
e duas imagens da série New York Sketches,
realizada em 1972-1972: uma cena das ruas
e um flagrante de Hélio Oiticica, também
em Nova York, à espera do metrô


















Cores saturadas



Não é por acaso que uma das primeiras experiências de Miguel Rio Branco no cinema tenha sido como assistente do diretor de fotografia Affonso Beato em “Pindorama”, filme que Arnaldo Jabor realizou em 1970, no auge da ditadura militar. Pindorama, nome dado ao Brasil pelos povo Tupi (a palavra, na língua tupi-guarani, significa “terra das árvores altas”), no filme de Jabor traduz uma alegoria sobre a formação de uma grande cidade brasileira no século 16, reunindo imagens da beleza dos cenários tropicais em contrastes de guerras e destruição com negros, índios e aventureiros europeus. Nos anos 1970, a trajetória do fotógrafo incluiu outra longa temporada em Nova York, onde trabalhou e conviveu com nomes de referência da arte brasileira contemporânea, entre eles Hélio Oiticica (1937-1980), Rubens Gerchman (1942-2008) e Antonio Dias (1942-2018). No final da década, em 1979, as fotografias experimentais e documentais que Miguel Rio Branco registrava, pelas ruas e pelas periferias do Rio de Janeiro e de Nova York, o levaram a ser contratado como correspondente internacional da prestigiada e lendária Agência Magnum de Paris, uma atividade em que atuou até 1982.

É desse período uma de suas séries fotográficas mais conhecidas, realizada durante uma longa temporada em Salvador, Bahia: “Pelourinho”, registro de 1979 sobre a parte mais antiga e mais degradada do bairro tradicional da capital baiana, em que se destacam as imagens dos corpos da prostituição e os rostos na penumbra, com detalhes em destaque de cicatrizes na pele e nos enquadramentos de velhas construções arruinadas pelo tempo. As características das imagens que o fotojornalista Miguel Rio Branco produziu sob encomenda para a Agência Magnum reúnem, em síntese, as qualidades mais abrangentes de sua concepção de arte e fotografia: cores saturadas em variações de contrastes cromáticos, experimentos com foco e movimento, diluição dos contornos, jogos de espelhamentos e de texturas, a temática de impacto para as denúncias sobre os contrastes sociais das cidades, a exclusão dos marginais, a violência, a pobreza, as atmosferas ao mesmo tempo sensuais e melancólicas.









Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
duas imagens da série Maldicidade #3,
realizada entre 1970 e 1990. Abaixo:
1) três jovens mulheres do povo Kayapó,
na Amazônia brasileira, em fotografia
de 1983; 2) imagens de Amaú, 1983-2016,
projeto iniciado em 1983 com a instalação
Diálogos com Amaú, que foi apresentada
na Bienal Internacional de São Paulo,
com a experiência da fotografia em interface
com a pintura e o cinema; e 3) fotografias da
série "Blue tango", sobre os movimentos e
a dança da capoeira, realizada na Bahia no
período entre 1984 e 2003. Também abaixo,
duas fotografias da montagem da exposição
apresentada no IMS da Avenida Paulista
























Em 1983, depois de interromper sua colaboração com a Agência Magnum e de realizar uma experiência incomum como cineasta (com um documentário realizado em 1981, “Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno”), uma participação na Bienal Internacional de São Paulo, com a instalação Diálogos com Amaú, iria inaugurar uma nova etapa na trajetória do fotógrafo, pintor, artista multimídia e cineasta, com instalações que reúnem fotografia, pintura, escultura, música e cinema, levando Miguel Rio Branco a realizar diversas exposições no exterior. Com as novas investidas em instalações e obras de formas híbridas também vieram as publicações de livros de catálogo e premiações importantes, entre elas o Prêmio Kodak da Crítica Fotográfica (1982), a Bolsa de Artes da Fundação Vitae (1994) e o Prêmio Nacional da Funarte, Fundação Nacional de Artes (1995). Entre os livros com registros sobre séries fotográficas e instalações, com recursos gráficos e editoriais incomuns de transparências e uma diversidade de suportes de impressão estão “Dulce sudor amargo” (1985), “Nakta, uma reflexão sobre a parte animal do homem” (1986), “Silent book” (1996), “Entre olhos, o deserto” (2001), “Você está feliz?” (2012), “Out of nowhere” (2013) e “Mechanics of women” (2018).



Imagens-poemas, ruínas do mundo



Dois fotolivros lançados em 2020 vêm somar complexidades às publicações de acervos de imagens de Miguel Rio Branco. O primeiro é uma nova versão, revista e atualizada, para “Maldicidade”, catálogo fotográfico que teve primeira edição pela Cosac Naify em 2014, em parceria com o curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff, diretor do MAR, Museu de Arte do Rio de Janeiro. O segundo é um catálogo em edição bilíngue, francês e inglês, em lançamento pela editora parisiense especializada em livros de artista, Toluca Éditions, com uma retrospectiva que vai dos seus primeiros trabalhos em fotografia, no final dos anos 1960, até o começo dos anos 1990.

Enquanto o catálogo da Toluca Éditions, com o título “Miguel Rio Branco: Oeuvres Photographiques / Photographic Works, 1968-1992”, apresenta o acervo que foi reunido para uma exposição em cartaz em Paris, no espaço LE BAL (de 16 de setembro de 2020 a 14 de março de 2021), que os curadores Alexis Fabry e Diane Dufour definem como “realismo exorbitante” e “imagens-poemas nas ruínas do mundo”, o acervo reunido em “Maldicidade”, na definição do próprio fotógrafo, é um inventário com cenas urbanas e justaposições de imagens capturadas de 1970 a 2010 para retratar diferentes partes do mundo, como Japão, Estados Unidos, Cuba, Peru e Brasil.








Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
fotografias da montagem da exposição
apresentada no IMS da Avenida Paulista.
Abaixo, o fotógrafo em entrevista via Zoom






Em outro catálogo, que teve como título o nome do fotógrafo, “Miguel Rio Branco”, publicado em primeira edição pela Companhia das Letras em 1998, um outro nome de referência da fotografia contemporânea, Sebastião Salgado, escreve no posfácio uma definição bastante precisa e preciosa, em artigo co-assinado por sua esposa Lélia Wanick Salgado:

Como brasileiros que somos, também vemos Miguel Rio Branco como um fotógrafo profundamente brasileiro. Ele capta a umidade das cores tropicais do Brasil, a fera luz que transfigura rosas, verdes e azuis. Ele entra no espírito da cor, penetrando seu âmago como nenhum outro fotógrafo de hoje que trabalha com a cor. Talvez se beneficie do fato de ser também artista plástico e cineasta: Miguel Rio Branco usa a cor como um pintor e a luz como quem faz cinema. Um outro Brasil também está presente aqui. Não tanto em imagens específicas, porque Rio Branco também trabalha em outros lugares, mas no espírito. É como se o fato de ter nascido fora de seu país, numa família de diplomatas, tenha despertado nele uma ânsia, um sentimento quase de urgência, de descobrir suas próprias raízes. Ao captar a beleza e a brutalidade de sua terra, ele descobriu a alegria e a tristeza de ser brasileiro. Em seu trabalho, vemos o coração do Brasil. Olhamos esse livro e nos vemos em suas páginas.”

Nos dois fotolivros recentes, publicados em 2020, assim como no catálogo da exposição que está em cartaz no IMS, ou no catálogo que mereceu o artigo de elogios de Sebastião Salgado e Lélia Wanick, ou mesmo nos demais fotolivros da trajetória incomum de Miguel Rio Branco, não se trata tão somente de livros de luxo e de arte sobre belezas exóticas de paisagens urbanas, nem de registros que exaltam monumentos históricos e arquitetônicos. Também não se trata de cenários de cartão postal emoldurados para enfeitar ambientes comerciais de grifes de interiores ou publicações sobre turismo e roteiros de viagens. Para além da beleza das cores e dos contrastes nos flagrantes sobre as ruínas do mundo, uma outra definição sobre a arte da fotografia segundo Miguel Rio Branco talvez possa acrescentar que suas imagens registram a catástrofe de nossa época – registros sobre os abismos sociais de nossas cidades, ainda que cada flagrante que ele captura também seja, de alguma forma, o resgate de algo estranhamente poético, de algo que guarda alguma empatia pelas pessoas mais simples e excluídas, algo que resta do sentimento humano nos cenários da miséria, da violência, da melancolia.


por José Antônio Orlando


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Cidades de Miguel Rio Branco. In: _____. Blog Semióticas, 31 de dezembro de 2020. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2020/12/cidades-de-miguel-rio-branco.html (acessado em .../.../...).



Para comprar o catálogo da mostra de Miguel Rio Branco,  clique aqui.





11 de abril de 2015

Olhar estrangeiro no Candomblé







O que me interessa é o papel que tem o Candomblé ao conferir
dignidade aos descendentes dos escravos. Aqui eles chegaram a
ser gente mesmo, gente respeitada por suas próprias tradições.

––  Pierre Verger (1902-1996).   


Um acervo surpreendente com cerca de 200 fotografias inéditas que registram o Candomblé da Bahia nas décadas de 1930 e 1940 foi localizado esta semana em Pernambuco. O valor da descoberta impressiona ainda mais depois da revelação da identidade do autor das fotografias – o alemão Thomás Kockmeyer, que era frei da Ordem dos Franciscanos da Igreja Católica e foi ordenado em 1938 no Brasil, onde viveu durante cinco décadas. 

Kockmeyer, entusiasta da fotografia, driblou a intolerância racial e religiosa da época e registrou as belas imagens de comunidades negras e seus rituais de Candomblé no Recôncavo Baiano. Fotografias, objetos e outros documentos foram encontrados no Recife, em Pernambuco, pela equipe do Arquivo Provincial Franciscano que desde 2014 trabalha no projeto Resgate Documental da Província Franciscana de Santo Antônio do Nordeste do Brasil.

As 200 fotografias no formato 5 x 7 cm, ao que tudo indica, estavam guardadas há décadas no Recife, no Convento de Santo Antônio, em uma pequena caixa de madeira com os dizeres “Candomblé – Fotografias de Frei Thomás Kockmeyer”. São imagens de grande valor documental que registram os moradores de comunidades negras da região do Recôncavo Baiano, alimentos, indumentárias e rituais religiosos de matriz africana. O projeto Resgate Documental, que tem patrocínio da Petrobras, pretende recuperar arquivos históricos de documentos e objetos relacionados aos quatro séculos da história da Ordem Franciscana da Igreja Católica no Brasil.










Olhar estrangeiro no Candomblé da Bahia:
no alto, uma das fotografias registradas na
década de 1930, no Recôncavo Baiano,
pelo frei franciscano Thomás Kockmeyer
(acima, no retrato publicado no necrológio
da Revista de Santo Antônio, e em
fotografia de 1958 na região de Santarém,
na floresta amazônica, durante uma temporada
de sete meses com Protásio Frikel, um
ex-franciscano que viveu muitos anos
com as tribos Tiriyó). Abaixo, Convento
de Santo Antônio, no Recife, onde foram
descobertas as fotografias de frei Kockmeyer










O trabalho da equipe do projeto Resgate Documental teve início em 2014 por iniciativa do coordenador de Patrimônio da Província Franciscana, frei Roberto Soares. O objetivo do projeto é reunir os acervos de raridades históricas que incluem imagens, manuscritos, cartas, certidões, livros, fotografias, fitas cassetes, discos em vinil, partituras e filmes que retratam a vivência religiosa, social, cultural e administrativa dos franciscanos no Brasil. 



Cenas e personagens anônimos



A pesquisa e coleta do material, que resultou na descoberta das fotografias feitas pelo frei Kockmeyer, acontece em mais de 40 localidades que, desde o início do século 16, abrigam ou abrigaram conventos e igrejas da Ordem Franciscana nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Alagoas, Sergipe, Bahia e Pará. A previsão é que nos próximos meses o acervo esteja restaurado, organizado e aberto ao público para consulta no Recife, no Arquivo Provincial Franciscano, e também através da Internet.
 









Olhar estrangeiro no Candomblé: acima
e abaixo, fotografias surpreendentes feitas
pelo frei franciscano Thomás Kockmeyer
nas décadas de 1930 e 1940 na
região do Recôncavo Baiano







.





As cenas e personagens anônimos fotografados pelo frei Thomás Kockmeyer, além de despertar interesse por seu ineditismo e pela identidade inusitada do fotógrafo, revelam detalhes importantes sobre a religião e os hábitos cotidianos de comunidades negras da Bahia, suas festas, vestimentas, objetos sagrados e movimentação nos rituais. Além dos registros sobre o Candomblé, durante os quase 50 anos em que esteve no Brasil o frei franciscano também se dedicou a pesquisas sobre história e sobre os povos indígenas.

De acordo com o informe publicado pela coordenação do projeto Resgate Documental, também foram localizados no Recife documentos diversos e outras fotografias relacionados aos estudos de frei Kockmeyer, incluindo registros de duas expedições de pesquisa de campo que o religioso realizou, em 1950 e em 1958 – quando ele passou uma temporada de sete meses com os índios Tiriyó, no estado do Pará. Frei Thomás Kockmeyer morreu em 1978, aos 65 anos, em um acidente de carro, e foi enterrado em Rio Formoso, cidade do interior de Pernambuco onde ele exercia as funções de vigário.

















América Negra



Antes desta descoberta do acervo no Recife, as únicas referências sobre as pesquisas etnográficas e as fotografias do frei Thomás Kockmeyer estavam nos livros publicados pelo sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), que a partir de 1938 fez parte da missão de professores europeus na então recém-criada Universidade de São Paulo (USP). Roger Bastide morou durante 20 anos no Brasil, atuando na USP, em substituição ao professor Claude Lévi-Strauss, e também morou no Rio de Janeiro e em estados do Norte e do Nordeste.

Dedicado a estudos sobre religiosidade e misticismo, Bastide é reconhecido como um dos principais pesquisadores sobre as religiões afro-brasileiras e chegou a se tornar um iniciado no Candomblé. Na década de 1940, conheceu na Bahia o trabalho do frei Kockmeyer sobre o Candomblé e os rituais religiosos de matriz africana, que posteriormente seria descrito e citado como referência na tese de doutorado de Bastide na Universidade de Paris-Sorbonne, “O Candomblé da Bahia – Transe e Possessão no Ritual do Candomblé” (1957), e também em “Brasil, Terra dos Contrastes” (1957), “As Religiões Africanas no Brasil” (1958) e “As Américas Negras” (1967), entre outros livros publicados pelo sociólogo.

Outro cidadão francês que ficou impressionado com os rituais religiosos de origem africana no Brasil foi o escritor Albert Camus, Prêmio Nobel de 1957. Em visita ao Brasil, em 1949, tendo por companhia dos escritores Oswald de Andrade e Murilo Mendes, Camus assistiu as festas em louvor ao Senhor Bom Jesus em Iguape, no litoral de São Paulo, e também visitou o Rio de Janeiro, a Bahia e o Ceará. O escritor ficou especialmente interessado nas questões religiosas: acompanhou procissões católicas e participou de rituais de umbanda e candomblé, nos quais encontrou semelhanças com sua terra natal, a Argélia, país também habitado por europeus e africanos. As lembranças do Brasil são citadas com frequência na obra de Camus, com destaque em "Diário de Viagem" e em "A pedra que cresce", do livro "O Exílio e o Reino", com a história de um engenheiro europeu que viaja ao Brasil para construir uma represa em Iguape.


























Olhar estrangeiro no Candomblé da Bahia:
a partir do alto, o sociólogo francês Roger Bastide
em visitas Salvador, fotografado na década
de 1950; também acima o escritor Albert Camus
em visita à festa religiosa em Iguape, no
litoral de São Paulo, tendo ao fundo as torres
da Basílica do Bom Jesus, fotografado por
Oswald de Andrade
e a festa consagrada
ao Senhor do Bonfim em Salvador,
em 1947, em fotografia de Pierre Verger.

Abaixo, Zélia Gattai e Jorge Amado em
Salvador, com Mãe Senhora e os franceses
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre,
em 1960; Jorge Amado com o português
José Saramago nas ruas de Salvador,
em 1996; e dois encontros em Salvador
de Caetano Veloso e Jorge Amado com
José Saramago também em 1996









        








O babalaô “Fatumbi”



Além de Roger Bastide e Albert Camus, outro cidadão francês que conheceu em meados do século 20 as pesquisas e fotografias de frei Thomás Kockmeyer foi Pierre Verger (1902-1996), fotógrafo e antropólogo francês que adotou Salvador como residência a partir da década de 1940. Verger dizia em entrevistas que se apaixonou pela Bahia ao ler “Jubiabá”, romance de Jorge Amado publicado em 1935. Jorge Amado e o artista plástico Carybé, anos depois, fariam parte do grupo dos grandes amigos de Verger em terras brasileiras.

A aproximação com Roger Bastide e Pierre Verger também levaria os amigos Jorge Amado e Carybé a receberem como convidados, em Salvador, outros importantes escritores, artistas e filósofos de outros países – entre eles os franceses Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Jorge Semprún; os argentinos Julio Cortázar e Ernesto Sabato; os italianos Umberto Eco e Alberto Morávia; e pelo menos três vencedores do Prêmio Nobel de Literatura: o colombiano Gabriel García Márquez, o chileno Pablo Neruda e o português José Saramago – todos de passagem pelo Brasil e interessados em conhecer a Bahia, o Candomblé e os cultos de matriz africana dedicados à fé nos orixás.   

Quando passa a morar em Salvador, em 1946, Pierre Verger inicia suas pesquisas sobre a religião e a cultura negra da África e do Brasil, o que o levaria aos primeiros contatos com o trabalho do frei Kockmeyer. Verger, que se tornaria um dos grandes estudiosos dos cultos aos Orixás, recebeu em 1953 o nome ritualístico “Fatumbi” e foi iniciado como babalaô, um adivinho através do jogo de búzios do Ifá, com acesso às sagradas tradições orais da cultura Iorubá.













Três amigos em Salvador, Bahia, fotografados
em meados da década de 1970: Pierre 'Fatumbi'
Verger, Jorge Amado e Carybé – nome artístico
do argentino naturalizado brasileiro Hector Julio
Páride Bernabó (1911-1997), pintor, desenhista,
escultor e historiador que trocou seu país pelo
Brasil em 1949, ao conhecer a Bahia, e que
dedicou-se durante décadas a registros sobre
o Candomblé, entre eles belos desenhos e
aquarelas como Cerimônia para Oxalufã
(reprodução acima).

Abaixo, Carybé com Mãe Senhora
no terreiro de Candomblé Ilê Axé Apô Afonjá
em Salvador; um encontro de Gilberto Gil
no palco com Pierre Verger e Carybé, em
fotografia de Arlete Soares; os três amigos
Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé;
Carybé junto com o chileno Pablo Neruda
e com Jorge Amado em Salvador, no
começo da década de 1970; Jorge Amado
fotografado por Zélia Gattai com Gabriel García
Márquez em 1974 e com José Saramago em 1985;
com Mãe Menininha do Gantois; um encontro de
Jorge Amado, Dorival CaymmiMãe Menininha
do Gantois em 1980, fotografados por Gildo Lima;
e os dois "estrangeiros" Carybé e Pierre Verger.
Também abaixo, uma seleção de fotografias de
Pierre Verger na Bahia: 1) o fotógrafo em
autorretrato no ano de 1952; 2) fotografia
de um ritual do Candomblé em 1946;
3) Festa de Iemanjá no Rio Vermelho
em Salvador, 1947; 4) Mãe Senhora, como
era conhecida a Iyalorixá Dona Maria Bibiana
do Espírito Santo, mãe do Terreiro Ilê Axé Opô
Afonjá, em 1948; e 5) duas imagens que
registram ritual do Candomblé
no ano de 1957 em Salvador













































Em 1988, o próprio Pierre Verger transformou a casa em que morava, na Ladeira da Vila América, em Salvador, na sede da Fundação Pierre Verger, que passou a abrigar uma preciosa biblioteca sobre as religiões africanas no Brasil, um acervo com obras de arte e mais de 60 mil fotos de sua produção, em grande parte dedicada ao Candomblé. Não por acaso, o antropólogo Raul Lody, atual curador da Fundação Pierre Verger, também faz parte da equipe de pesquisa do Arquivo Provincial Franciscano que localizou, no Convento de Santo Antônio, no Recife, o acervo de documentos e fotografias sobre o Candomblé registrados pelo frei Thomás Kockmeyer.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Olhar estrangeiro no Candomblé. In: Blog Semióticas, 11 de abril de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/04/olhar-estrangeiro-no-candomble.html (acessado em .../.../...).



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