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6 de outubro de 2013

De Humani Corporis Fabrica







Todo corpo de cada ser humano é algo sagrado porque 
tornou-se alojamento temporário e um instrumento da alma 
imortal, uma morada que em muitos aspectos corresponde ao 
universo, razão pela qual os seres humanos eram chamado
pelos antigos sábios de microcosmos [pequenos universos]. 

–– Andreas Vesalius (1514-1564).  


Fonte inesgotável dos mais vivos e duradouros prazeres, dos sofrimentos mais lancinantes e também das mais grandiosas volúpias sensuais ou filosóficas ou científicas, o corpo humano, em sua aparência e estrutura de ossos, músculos, pele, sangue, veias, nervos, membros, vísceras, secreções, coração e cérebro, tem um capítulo fundamental na obra-prima "De Humani Corporis Fabrica" (A estrutura do corpo humano), publicada originalmente em 1543 pelo sábio renascentista Andreas Vesalius (1514–1564). O livro, que tem uma trajetória lendária nos últimos séculos, finalmente ganhou uma edição no Brasil em parceria da Editora da Unicamp, Imprensa Oficial de SP e Ateliê Editorial, em parceria com a Editora Elsevier, da Holanda, uma das principais editoras internacionais especializadas em publicações científicas.
A versão nacional do livro de Vesalius também se tornou um fenômeno editorial, com tiragem esgotada poucos meses após o lançamento. Em sua época, a edição completa do livro que se tornaria uma relíquia lendária para colecionadores e especialistas, com a aura de ter sido a primeira obra a ilustrar em planos e posições perfeccionistas as diferentes partes do corpo humano, foi proibida e excomungada, para depois permanecer irremediavelmente perdida durante séculos. Um exemplar da primeira edição, de 1543, assim como a maioria das chapas em madeira das xilografias originais, reapareceriam quase por milagre quatro séculos mais tarde, na Inglaterra, na década de 1930.
Saudado, desde então, como obra de arte e marco incontestável da Ciência, o livro de Vesalius foi novamente editado em sua versão completa, com textos em inglês e alemão e fac-símile das anotações em latim. Esta edição completa ganhou agora, finalmente, sua primeira publicação no Brasil (veja link para a edição nacional no final deste artigo). Contemporâneo de artistas geniais como Michelangelo e Leonardo da Vinci, Vesalius passaria à História como fundador da Medicina e da Anatomia modernas, sempre citado por todos os compêndios e pesquisadores, mas pouco conhecido durante séculos. Quando se observa suas centenas de estudos reunidos em “De Humani Corporis Fabrica”, saltam aos olhos as qualidades de metodologia científica e registro historiográfico, assim como o progresso que representou no “diálogo” que seu livro impresso inaugura entre figuras e texto.








No alto, frontispício das edições originais
de 1543 e 1642, com trabalho de ourives
em policromia. Acima e abaixo, retratos em
xilogravuras do século 16 do mestre
Andreas Vesalius de Bruxelas e reproduções de
xilogravuras que retratam Johann Gutenberg
 e uma página de sua Bíblia de 42 linhas.
 
Também abaixo, imagem de um exemplar
original da Bíblia de Gutenberg que está
no acervo da Biblioteca do Congresso
em Washington D.C. (EUA)






Magia e ciência na Renascença


Andreas Vesalius de Bruxelas, como a maioria dos sábios de sua época, também foi acusado de feitiçaria, enfrentando as ameaças terríveis da Inquisição e os princípios sagrados da tradição judaico-cristã para sobreviver como pioneiro no que estuda e ensina dissecando o cadáver humano. As pesquisas muito avançadas e as experiências de mestre Vesalius, que por diversas vezes foram consideradas heresias e o levaram aos tribunais e às listas de persona non grata, da qual faziam parte os "alquimistas" e integrantes das irmandades secretas, cometeram o sacrilégio de estabelecer a prioridade à ciência, e não mais tão somente à religião, como base e referência primeira para a observação direta dos fenômenos. Mais um motivo para reconhecer sua obra de 1543, também, como notável revolução na historiografia do livro – como destacaram autoridades contemporâneas como Marshall McLuhan em "Galáxia de Gutenberg" (1962), Alberto Manguel em “Uma História da Leitura” (1996) ou Umberto Eco em “Conceito de texto” (1984) e “Sobre a Literatura” (2003), entre outros.
Não bastasse o inventário completo descritivo e ilustrado da composição do corpo humano que Vesalius descobre e apresenta, suas ilustrações e elaborações em técnicas gráficas e tipográficas para as xilogravuras, que ele prepara em parceria com o impressor Johannes Oporinus e de outros artistas de renome, como Ticiano, inventaram procedimentos instrumentais para os processos de impressão, como cinzel em hachuras e retículas – no pontilhado e nos traços paralelos, oblíquos ou cruzados que ainda hoje, com a tecnologia digital, são usados como ferramentas de desenho e pintura para ressaltar sombreamentos, detalhes, dimensões e texturas para impressão e visualização em suportes variados.







Entre ordenações de traços e reticulados que formam detalhes para ilustrações minuciosas, as invenções de Vesalius, e dos artistas e artesãos com os quais colaborou, deixaram como saldo a primeira representação científica e pictórica, não mais manuscrita, mas em folhas impressas e encadernadas no formato do livro. Reunidos em páginas consecutivas que resumem um vasto acervo de pesquisas e de dissecções, surgem em exposição ossos e vísceras e músculos dorsais e colunas vertebrais, com as figuras e os breves textos de Vesalius dialogando e mesclando-se com surpreendente criatividade. “De Humani Corporis Fabrica” leva o leitor-observador contemporâneo a perceber um primoroso e estranho trabalho de diagramação em perspectiva e em arte descritiva, algo inigualável e que sobrevive, ainda hoje, nos diversos formatos gráficos similares do papel impresso ou das telas de tecnologias digitais.


Bíblia de 42 linhas


A combinação de forma, tipografia e ilustração, na obra de Vesalius, representa um todo inseparável de precisão em referências cruzadas que ultrapassa e aperfeiçoa os padrões das formas gráficas de letras em frases e colunas de textos que simulam o traço da caligrafia – tudo isso poucas décadas depois do aparecimento da “Bíblia de 42 linhas” do ourives alemão Johann Gutenberg (1398 – 1468), reconhecida como primeira obra encadernada e impressa em série sobre papel, por volta do ano 1450.











Porém, enquanto o livro original de Andreas Vesalius utiliza a ilustração na página para eliminar ambiguidades e delimitar aspectos de exposição verbal, os exemplares da Bíblia Sagrada de Gutenberg eram impressos apenas com números e letras uniformes. Em Vesalius, o leitor encontra evidências de um diálogo esclarecedor e extremamente inovador na composição de palavras com cada gravura, enquanto a Bíblia de Gutenberg reunia manchas gráficas ordenadas em páginas com duas colunas de texto, cada uma com 42 linhas simétricas e paralelas, sendo que apenas as impressões sob encomenda da realeza eram ilustradas com iluminuras decorativas, pintadas a mão com variações cromáticas, repetindo o que havia sido prática com manuscritos medievais produzidos principalmente nos conventos e abadias.
Na impressão da Bíblia de Gutenberg, pelo processo que teve início por volta de 1450 e terminou somente em 1455, as páginas eram vendidas em separado, sem encadernação e sem ilustrações – ficando a cargo do comprador a ilustração e pintura posterior, feita a mão, por ourives, de acordo com gostos ou posses de seus privilegiados e nobres proprietários. Apontado como marco comparável à Bíblia de Gutenberg, o livro de Vesalius também estabelece parâmetros técnicos para impressão e composição de figuras e textos, motivo pelo qual seu pioneirismo é referência obrigatória em campos tão diversos do conhecimento como a História da Arte, da Medicina, da Anatomia, das Artes Gráficas, da Semiótica (ou das linguagens) e da Metodologia Científica. Como se não bastasse, "De Humani Corporis Fabrica" também apresenta raridades da melhor xilogravura produzida nos últimos séculos.











De Humani Corporis Fabrica: acima e
abaixo, amostras em fac-símile das primeiras
pranchas anatômicas do corpo humano
segundo Vesalius de Bruxelas,
impressas por xilogravuras em 1543









.







Lição de Anatomia


Nos detalhes das mais de 200 gravuras reunidas na edição nacional, e nas breves e precisas anotações de Vesalius, é possível reconhecer tanto a perfeição plástica quanto o entusiasmo com que o homem sábio da Renascença descobriu o corpo humano do obscurantismo medieval e dos milênios de tabus e dogmas religiosos. Na edição nacional, que faz parte do projeto Edições Históricas de Medicina, parceria entre Editora da Unicamp, Imprensa Oficial de SP, Ateliê Editorial e Editora Elsevier, o trabalho de Vesalius é apresentado em fac-símile à edição bilíngue inglês/alemão, de 1934, publicada pela Academia de Medicina de Nova York e pela Biblioteca da Universidade de Munique.
A edição bilíngue de 1934, intitulada “Icones Anatomicae” – que também foi a primeira sobre a qual há registros desde 1543 – em sua maior parte foi impressa direto das chapas de madeira originais, entalhadas em Veneza por Vesalius e redescobertas depois de 400 anos. A bela edição nacional, em capa dura e projeto gráfico que respeita as dimensões da publicação original, em formato semelhante à página de jornal impresso tamanho standard, inclui ensaio biográfico, análise das ilustrações e reprodução da íntegra da arte de Vesalius que sobreviveu até nossos dias.










A partir das anotações traduzidas do latim por J.B.D. Saunders e Charles O'Malley, a edição nacional apresenta as séries de entalhes didáticos das “Tabulae Sex” e da “Carta da Vivissecção”, que circularam como excertos anônimos em diversos livros de Medicina desde o século 16, e os impressionantes esboços de frontispício (as primeiras páginas da edição, ou páginas de rosto originais) para o “De Humani Corporis Fabrica” – com as cenas de sábios e seus discípulos reunidos em uma cerimônia de dissecação do cadáver, as mesmas cenas que seriam recriadas quase um século depois, em 1623, por Rembrandt, na célebre pintura “Lição de Anatomia do Professor Tulp”.


Náufrago no Paraíso


Vesalius, nascido Andries Van Wesel, em Bruxelas, antes mesmo da publicação do seu livro havia ficado muito conhecido nas academias da Europa na Renascença por conta suas aulas e demonstrações de dissecação do corpo humano, testemunhadas por estudiosos, nobres e magistrados. Catedrático da Universidade de Bolonha, o sábio autodidata centralizou todos os processos envolvidos no seu livro. Ele mesmo escreveu, organizou e acompanhou cada passo dos minuciosos trabalhos da impressão pioneira de sua obra magnífica em diversos aspectos.
Em ilustrações, diagramações e considerações teóricas, o trabalho de Vesalius também revela tributos e correções importantes para estudos clássicos que vieram antes dele, na tradição greco-latina, com interpretações revolucionárias e releituras para a fisiologia do corpo humano e sobre preceitos de saúde, da interação com a natureza e das recomendações sobre a atividade física que vigoravam desde a Antiguidade, atribuídos a Aristóteles (384-322 a.C.) e Galeno de Pergamum (século 2 d.C.), entre outros mestres.


















Acima, pranchas anatômicas publicadas em
1543 no livro De Humani Corporis
Fabrica e Vesalius em autorretrato em
xilogravura com detalhes de ourives na
policromia sobre papel. Abaixo, Vesalius
representado em litografia em policromia
de 1861 por Edouard Hamman; a capa
da edição nacional; e a célebre pintura
de Rembrandt de 1632, considerada
uma homenagem a Vesalius, intitulada
Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp






O pioneirismo de Andreas Vesalius também estende-se à noção de arte, concebida por ele como “criação da inteligência, sujeita a regras de perfeição apreensíveis e que podem ser formuladas e ensinadas com precisão científica”. Pela audácia de suas experiências e de seu empreendimento com o livro, um trabalho sem precedentes, Vesalius de Bruxelas acabou condenado à morte pela Inquisição, sob acusação de que teria dissecado um homem vivo. Mas escapou, por misericórdia de Filipe 2°, rei da Espanha, que conseguiu transformar a sentença final em uma peregrinação de Vesalius à terra santa de Jerusalém.
No breve ensaio biográfico que acompanha “De Humani Corporis Fabrica”, o leitor descobre que, depois de enfrentar séries intermináveis de peripécias dignas de galerias de heróis picarescos da melhor ficção, Vesalius ainda sobreviveria de forma mirabolante a um terrível naufrágio, na sua viagem de volta de Jerusalém à Europa. Morreu, finalmente, na condição de náufrago, um sobrevivente esquecido à espera de resgate na ilha de Zante, periferia da Grécia, na época um território desabitado, até hoje citado como um dos cenários especialmente paradisíacos no Hemisfério Norte.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. De Humani Corporis Fabrica. In: _____. Blog Semióticas, 6 de outubro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/10/de-humani-corporis-fabrica.html (acessado em .../.../...).


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