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30 de setembro de 2011

As janelas indiscretas







Durante o período da Política da Boa Vizinhança, programa instaurado pelo governo norte-americano para forçar uma aproximação política e econômica com a América Latina, uma artista é escolhida como símbolo do continente: Carmen Miranda – destaca Eneida Maria de Souza em “Janelas Indiscretas – Ensaios de Crítica Biográfica”, coletânea de ensaios publicada pela Editora UFMG. “Entre 1939 e 1945, Carmen participou de vários filmes de sucesso de Hollywood. Como a construção estilizada de sua imagem guardava um pouco de cada lugar da América, é até difícil vê-la hoje como representante de uma autêntica cultura brasileira”, argumenta a autora, nesta entrevista que fiz com ela na véspera do lançamento do livro em Belo Horizonte, referindo-se aos ensaios dedicados à atriz e cantora coroada como primeira Rainha do Rádio na década de 1930 e que, em 1939, quando a Segunda Guerra estava no começo, partiu para os EUA para se tornar a “Brazilian Bombshell” (bomba brasileira), uma grande estrela da Broadway e presença marcante em filmes musicais de Hollywood de grande sucesso no mundo inteiro.

Na entrevista, Eneida também explica que o espectro investigativo e teórico reunido na nova seleção de ensaios inclui, além da revisão dos estereótipos construídos sobre a estrela Carmen Miranda, outras questões abrangentes que relacionam política, arte e literatura, como os diários de guerra de Guimarães Rosa ou os retratos de mestres como Mário de Andrade e Cyro dos Anjos pintados pelos grandes do Modernismo. O mosaico apresentado em “Janelas Indiscretas” também focaliza e questiona o papel do intelectual e a construção da identidade em torno das complexidades da cultura brasileira, das primeiras às últimas décadas do século 20, até chegar à atualidade.

Professora emérita e titular da UFMG, pesquisadora do CNPq, autora de estudos de peso publicados em livros de referência como “A Pedra Mágica do Discurso” (1999), “Crítica Cult” (2002), “Pedro Nava: O Risco da Memória” (2004), “Tempo de Pós-Crítica” (2007) e “Modernidades Alternativas na América Latina” (2009), entre outros, Eneida também está entre os finalistas do Prêmio Jabuti 2011, com o belo “Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa” (Editora Peirópolis). Janelas Indiscretas, o novo livro, retoma algumas preocupações equacionadas em estudos anteriores para desvendar as intrincadas relações entre biografia e ideologia, aprofundando análises críticas e demarcando novos limiares para questões historiográficas, conceituais e teóricas.





Janelas Indiscretas: Carmen Miranda,
a primeira Rainha do Rádio, embarcou
para os EUA em 1939 para se tornar a grande
estrela da Broadway e presença marcante em
filmes musicais de Hollywood de sucesso no
mundo inteiro, conquistando milhões de fãs
espalhados pelos cinco continentes







As novidades do viés interpretativo apresentado por Eneida Maria de Souza alcançam questões polêmicas e quase sempre rompem com o lugar-comum tantas vezes estabelecido como fronteira – não apenas na correlação entre vida e obra nos arquivos de medalhões do Modernismo, mas também nas diferenças que configuram nomes contemporâneos como Silviano Santiago e João Moreira Salles ou Caetano Veloso e Chico Buarque, entre outros. Para além da sofisticação da escrita e do repertório analítico, o resultado são reflexões atualíssimas em que projetos políticos vêm abarcar projeto autobiográfico e aventuras existenciais.



Enigmas da vida e da obra



Para começar, a professora faz um alerta, avisando que é ingênua aquela pesquisa que busca desvendar segredos e enigmas do texto na vida dos escritores. “A escolha do método biográfico impõe determinada disciplina e se afasta de aproximações ingênuas e apenas causalistas operadas por adeptos da pesquisa biográfica como caça aos segredos e enigmas que o texto revela”, destaca, na apresentação a “Janelas Indiscretas”. 
 






Janelas Indiscretas: no alto, uma reunião de

modernistas brasileiros, acima, da esquerda

para a direita, Pagu, Elsie Lessa, Benjamin

Peret, Tarsila do Amaral, Oswald de

Andrade, Anita Malfatti, Álvaro Moreyra,

Eugênia Moreira e Maximilien Gauthier

em 1929, no Rio de Janeiro, retornando de

uma viagem a Paris. Meses depois, haveria

um grande escândalo: Oswald deixaria

Tarsila para se casar com a jovem

Pagu, que estava grávida (foto acima).


Abaixo, encontro de Mário de Andrade,

Tarsila e Oswald, o mitológico trio do

Modernismo no Brasil, recriado na ficção,

no teatro e na minissérie Um Só Coração,

obra com roteiro escrito por Maria Adelaide

Amaral, produzida e exibida pela TV Globo

em 2004. Na ficção, os papéis de Tarsila,

Oswald e Mário foram interpretados por

Eliane Giardini, José Rubens Chachá e

Pascoal da Conceição. Também abaixo, o

chamado Grupo dos Cinco do Modernismo

no Brasil na década de 1920: Mário de

Andrade, Tarsila, Oswald de Andrade,

Anita Malfatti e Menotti Del Picchia














Abordagens críticas sobre o texto, o livro, o filme e as canções surgem em cada ensaio de "Janelas Indiscretas" não pela via da explicação causal, que vê a obra como espelho da existência, mas pela elucidação de propostas poéticas, entre questões teóricas e contextuais. “O mundo midiático fez nascer um novo fenômeno que deve ser considerado pela crítica: o autor se converteu em personagem de si mesmo. Assim, os acervos literários se tornaram uma janela para compreensão dessas relações em que o escritor mistura a ficção e a realidade”, explica Eneida.

Nesta entrevista, concedida às vésperas do lançamento do livro em Belo Horizonte, a autora de "Janelas Indiscretas" destacou certos aspectos em que a biografia se traduz em arte e literatura a partir das questões de identidade nacional como projeto autobiográfico, introduzidas pelos modernistas no Brasil da década de 1920. São questões que permanecem atuais, segundo Eneida.

A questão de identidade nacional representava um projeto mais coletivo, por defender a necessidade de construção da nacionalidade cultural brasileira”, aponta. “Somente mais tarde é que os modernistas, como Drummond, Pedro Nava, Oswald de Andrade e Murilo Mendes escreveram suas memórias. Mário de Andrade escreveu milhares de cartas, logo, contribuiu para a sua autobiografia.”








Questionada sobre a natureza da obra de arte, que sempre coloca em suspenso a verdade biográfica, Eneida explica que a biografia nunca precede a obra. “Esta posição diz respeito à antiga crítica biográfica. Hoje, a obra é que restaura a biografia, pelos elos metafóricos entre os dois registros. Não importa, também, se o que está sendo articulado como autobiografia tenha realmente acontecido, ou se pertence a uma verdade biográfica. O critico joga com os dois polos, a obra e a vida, por isso não se deve dar mais valor a cada um dos dois registros”, completa. 



A 'morte do autor'
 


Sobre a “morte do autor” defendida nos anos de 1970 pelo pensador francês Roland Barthes (1915-1980), como uma das condições para que a crítica pudesse alcançar a complexidade da obra de arte, Eneida alerta que, nos ensaios do novo livro, as reflexões sobre autoria não abandonam as célebres teorias lançadas por Barthes. Tais pressupostos são, na verdade, retomados em novos contextos sob as coordenadas de questões de política, de arte e de literatura que em nossa atualidade estão em evidência.

“Considero principalmente as reflexões que seguem o que, na década de 1970, Roland Barthes entendeu como a volta do autor, explica Eneida. Esta volta do autor, ou seja, o autor tomado como personagem, retoma e amplia o lugar teatral e distanciado do autor em relação ao seu texto original. Só que acrescentada com sua presença enunciativa, com a escrita do corpo e o apelo ao leitor”.

 




Janelas Indiscretas: o pensador francês
Roland Barthes fotografado em ação,
na sala de aula, no Collège de France,
em Paris, no ano de sua morte, 1980.
Abaixo, Macunaíma de Andrade, uma
versão do personagem da literatura de
Mário de Andrade recriado pelo
traço do artista Arlindo Daibert














O título do livro, "Janelas Indiscretas", remete inevitavelmente a uma das obras-primas de Alfred Hitchcock, um dos principais ilusionistas da história do cinema e autor de uma filmografia sempre pontuada por referências autobiográficas. O título foi escolhido para uma relação intencional, segundo a autora. “O titulo remete sim ao filme de Hitchcock”, reconhece Eneida, esclarecendo uma sutileza que vai além da mera semelhança. “Só que o título do livro está no plural e tende a ser tanto as janelas abertas do mundo virtual da Web como a posição da análise crítica em esmiuçar, pela janela do texto, a obra e a vida dos escritores. Mas sem a preocupação jornalística de desvendar segredos ou de apontar verdades escondidas dos mesmos. Essas janelas têm, inclusive, a possibilidade de fornecerem lentes de aumento como o zoom das câmeras da fotografia e do cinema”, completa.

Entre tantos enfoques e gêneros que os ensaios reunidos em “Janelas Indiscretas” alcançam, há autores e obras que definem a atualidade da “crítica biográfica”. “Há, entre outros, Silviano Santiago, que sempre pautou sua obra pela relação com a ficção de sua vida. Daí a autoficção construída com os restos e o jogo malicioso entre dados pessoais e recriação ficcional”, explica a professora. Muitos dos livros de Silviano Santiago brincam com essa relação deslizante entre os polos da arte e da vida. Sem esquecer, é claro, a presença e a importância de Jorge Luis Borges, o escritor que mais burilou e inventou associações falsas e verdadeiras entre os dois registros da arte e da vida”.






Janelas Indiscretas: dois registros
latino-americanos na abordagem
dos ensaios reunidos por Eneida no
livro, com um certo Jorge Francisco
Isidoro Luis Borges Acevedo (acima)
e, abaixo, a estrela Carmen Miranda
em cenas de Down Argentine Way,
filme de 1940 que marca sua estreia em
Hollywood e que no Brasil foi
lançado
nos cinemas como
Serenata Tropical.
Também abaixo, a professora
Eneida Maria de Souza
em 2010,
fotografada por Maria Tereza Correia


















Biscoitos finos



Há também em “Janelas Indiscretas” ensaios dedicados a Mário de Andrade e a seu Macunaima” (entre eles Macunaima: quem é você?”, sobre as qualidades da personagem apresentada no livro de 1928, e Macunaima de Daibert”, sobre os desenhos do artista Arlindo Daibert inspirados no livro e sobre outras ilustrações baseadas na personagem elaboradas por Carybé, Rita Loureiro, Pedro Nava) e referências saborosas à citação do modernista Oswald de Andrade e seu trocadilho sempre repetido – “a massa ainda comerá do biscoito fino que eu fabrico”, sem esquecer o destaque para a figura emblemática de Carmen Miranda, personalidade que aparece em foco nos ensaios “Do kitsch ao cult” e “O tic-tac do meu coração”. As análises de Eneida destacam na imagem pública de Carmen Miranda várias metamorfoses. Há a fase brasileira da cantora, que também participou de filmes e compreende os 10 anos entre a sua primeira gravação (1929) e a partida para os Estados Unidos (1939). Nesta primeira fase destaca-se especialmente a ênfase na brasilidade e a importância de Carmen na popularização do samba e do carnaval.

E há a fase americanizada de Carmen, que por força das críticas pesadas e frequentes na imprensa do Brasil terminou estigmatizada na memória do público, mas nem por isso menos popular. Hoje em dia, mais de meio século anos depois de sua morte, sobrevivem na mídia sobretudo a imagem festiva e carnavalesca da estrela Carmen Miranda, carregada de clichês visuais como as bananas e abacaxis na cabeça, os turbantes exóticos e os vestidos de baiana estilizados, de cores fortes, que apresentava nos filmes de Hollywood. Carmen viveu por 16 anos nos Estados Unidos e foi – durante muito tempo, a artista mais bem remunerada do país e a maior pagadora de imposto de renda da América.

O argumento que conclui a análise sobre Carmen Miranda destaca, na presença emblemática do sucesso duradouro da estrela tanto na cultura brasileira como na cultura pop de diversos países, os modos e gradações através dos quais ela profetiza uma convivência conflitiva, e ao mesmo tempo salutar, entre questões da arte e questões do mercado. Segundo Eneida, se hoje a academia em geral aceita, com certa naturalidade, as lições que a música popular pode oferecer às nossas mentes ilustradas, tal fato se deve à contaminação dessas manifestações artísticas, até pouco tempo atrás consideradas de menor importância, espúrias ou mesmo inadequadas, no universo nem tão puro da arte e da literatura.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. As janelas indiscretas. In: Blog Semióticas, 30 de setembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/09/janelas-indiscretas.html (acessado em .../.../…).









Janelas Indiscretas: uma tradução do
Brasil na imagem de 1928, ano em que
Tarsila do Amaral pintou o Abaporu,
quadro a óleo batizado pelo poeta
Raul Bopp e por Oswald de Andrade
 (namorado de Tarsila na época) e que iria
inspirar o Movimento Antropofágico.
Vinculada ao Movimento Modernista,
a Antropofagia queria deglutir, engolir
a cultura europeia, que era a cultura
até então dominante no Brasil,
para então transformá-la
em algo bem brasileiro.

O Abaporu, que segundo Tarsila
era uma representação dos monstros
das histórias que as amas negras
contavam para ela em sua infância,
é a mais valorizada pintura brasileira:
em 1995, em um leilão da Christie's,
em Nova York, foi comprada por
U$ 1,5 milhão pelo colecionador
argentino Eduardo Constantini,
criador do Malba, o Museu de Arte
Latino-Americana de Buenos Aires



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