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7 de junho de 2012

Relíquias de Marc Ferrez







Depois da existência da fotografia e do cinema, 

a reprodução desenhada ou pintada da verdade 

não interessa nem vai interessar a mais ninguém. 

–– Giacomo Balla (1871–1958).    



Boas e más notícias trouxeram de volta à mídia o nome de Marc Ferrez (1843-1923), um dos mais importantes fotógrafos brasileiros de todos os tempos. As boas notícias: uma parte considerável da obra completa de Ferrez foi adquirida pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que lançou no Brasil e na França um catálogo impecável reunindo ensaios escritos por especialistas e uma coleção de 160 imagens primorosas do final do século 19 e do começo do século 20.

Além das fotografias reunidas na edição, há também um acervo de mais de 300 imagens originais de Ferrez, a maioria belas panorâmicas em negativos de grande formato (40cm X 110cm), que permanece em exposição itinerante nas sedes do IMS e em outros espaços no Brasil e no exterior. Parte do acervo também está aberta ao público no site que o IMS mantém na internet. Tanto o catálogo impresso como a mostra itinerante e as imagens disponíveis no site revelam a arte grandiosa de Ferrez, que criou no Brasil, antes de qualquer outro pioneiro da fotografia, uma linguagem que se tornaria universal e quase obrigatória em livros e reportagens de turismo e no formato de cartões postais.

Também há más notícias: o nome de Marc Ferrez frequentou as páginas policiais por conta de um grande roubo no acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, registrado em 2005, quando desapareceram cerca de 150 de suas fotografias mais raras e celebradas. Um crime perfeito, que não deixou pistas, aparentemente realizado sob orientação de especialistas: além das séries valiosas de Ferrez, também furtaram fotografias e negativos originais de importantes e pioneiros fotógrafos do século 19, entre eles August Stahl (1828-1877), Guilherme Liebenau (1838-1900) e Benjamin Mulock (1829-1863).











Imagens de Marc Ferrez: o fotógrafo em
autorretrato datado de 1876, aos 33 anos.
No alto, registro da primeira locomotiva
(Trem de Ferro) e o grupo de engenheiros
responsáveis pelas obras da Estrada de
Ferro Rio-Minas, fotografados por Ferrez
no alto da Serra da Mantiqueira, no ano
de 1882. Acima, Ferrez registra a imperatriz
Teresa Cristina e Dom Pedro 2°  com a
princesa Isabel e a família reunida no
Paço Imperial do Rio de Janeiro, em 1887.
Abaixo, entrada da Baía de Guanabara no
Rio de Janeiro, vista de Niterói, em
fotografia de 1890 de Marc Ferrez






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As boas e as más notícias colocaram em evidência o gênio de Marc Ferrez, nome fundamental da fotografia e do cinema brasileiro que, em seus 80 anos de vida, registrou todo o Brasil em belas panorâmicas e em retratos impressionantes, entre ilustres personalidades e anônimos que encontrou em cada região do país. Filho de um casal de escultores e gravadores franceses que vieram para o Brasil em 1816, com a Missão Artística Francesa, Ferrez foi comparado aos grandes pintores pelos intelectuais do Império e da primeira República, o que era a mais nobre das distinções, numa época em que o trabalho de fotografar estava longe de ser considerado uma arte. 



Arauto da Modernidade



O livro, na verdade um belo catálogo fotográfico intitulado “O Brasil de Marc Ferrez”, traz detalhada biografia, cronologia de seus principais trabalhos e ensaios de Françoise Reynaud, curadora do Museu Carnavalet, em Paris, e dos pesquisadores Maria Inez Turazzi, Pedro Karp Vasquez, Laurent Gervereau, Frank Stephan Kohl, Sérgio Burgi e Antônio Fernando De Franceschi, superintendente do IMS. Com a publicação e a exposição itinerante do acervo, foi a primeira vez que a obra de Marc Ferrez chegou ao público de forma abrangente.
 







Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
visita do imperador Pedro 2°, no ano
de 1882, à inauguração do Túnel da
Mantiqueira, na primeira Estrada de Ferro
que interligava Rio de Janeiro e Minas
Gerais. Acima, a princesa Isabel
Cristina de Bragança em 1887.
Abaixo, vista da construção da
Estrada de Ferro Santos Jundiaí
pela São Paulo Railway em 1880






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Nas fotografias de Marc Ferrez, o que mais surpreende, junto com sua demonstração de domínio da luz, é sua precisão na escolha do ponto de vista para ressaltar no enquadramento a qualidade estética das cenas registradas. São imagens comoventes, mesmo depois de todos os avanços tecnológicos da maquinaria fotográfica. Como destaca De Fraceschi em um dos ensaios do livro, abordando as singularidades da obra de Ferrez e sua influência sobre pintores célebres que se dedicaram às paisagens do Brasil:

O que interessa, cada vez mais, é compreender as relações passadas e presentes entre a fotografia e a pintura, sobretudo agora, quando as vanguardas contemporâneas parecem ter se desinteressado do mundo objetivo, deixando para a fotografia a inteira responsabilidade de se ocupar do real. Diante da obra monumental de Marc Ferrez, fica mais fácil compreender porque se atribui às suas belas imagens, produzidas na segunda metade do Oitocentos e nas primeiras décadas do século 20, os primeiros registros sobre a entrada do Brasil na Modernidade”.







          



No alto, Igreja de São Francisco de Assis 
em Ouro Preto, Minas Gerais, uma das obras-
primas do Barroco Mineiro e do mestre
Aleijadinho, retratada por Marc Ferrez
em 1880. Acima, Paul Ferrand fotografado
por Marc Ferrez na Serra do Itacolomy,
em Ouro Preto, no ano de 1886. Abaixo,
vista do Porto de Santos em 1880



         



Além do privilégio da nomeação como primeiro (e único) Fotógrafo da Marinha Imperial, Ferrez pôde percorrer o país como um dos principais nomes da Comissão Geológica do Império, a partir de 1875, fotografando atividades econômicas, a construção das principais estradas de ferro, as construções seculares da arquitetura barroca, as minas de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, as belas paisagens e os cenários desconhecidos das cidades, das florestas e das fazendas, seus costumes e personagens dos salões, das ruas, dos grotões.

Funcionário dos mais destacados nos quadros do Segundo Império, primeiro entre seus pares a visitar os confins do território nacional e registrá-los em fotografias e documentos cartoriais, Marc Ferrez também desenvolveu equipamentos próprios e introduziu experiências técnicas como as fotografias coloridas, por ele batizadas de autocromo, em aperfeiçoamento à invenção dos irmãos Lumière. Observar a evolução temporal de sua arte equivale a uma leitura da história do Brasil e da trajetória da fotografia, dos processos químicos mais primitivos aos avanços da tecnologia das câmeras, lentes e processos de revelação e reprodução.










Cartões postais de Marc Ferrez: no alto,
escravos no garimpo de ouro na região de
Diamantina, no interior de Minas Gerais,
em 1888. Acima, paisagem surpreendente
às margens do Rio São Francisco no
Nordeste do Brasil no ano de 1875. Abaixo,
a praia de Ipanema, Rio de Janeiro, 1895









Expedições do Império



Filho mais jovem do francês Zéphyrin Ferrez, contando com mais quatro irmãs e um irmão, ficou órfão de pai e mãe no Rio de Janeiro aos sete anos. Mandado para a França, onde estudou até a adolescência, retornou ao Brasil em 1859 e passou a trabalhar na Casa Leuzinger, uma papelaria e tipografia que tinha começado a trabalhar com uma seção dedicada à fotografia. Na Casa Leuzinger, Ferrez aprenderia as técnicas da arte de fotografar com o alemão Franz Keller (1835-1890). Aos 21 anos, em 1865, investiu tudo que tinha para abrir a firma Marc Ferrez & Cia., um estúdio fotográfico que o colocou entre os principais profissionais da corte.

Em 1875, a trajetória de Ferrez mudou radicalmente quando ele recebeu convite para integrar, como fotógrafo, a expedição chefiada pelo geólogo canadense Charles Frederick Hartt (1840-1878) e financiada pela Comissão Geológica do Império. Hartt faria história como autor da primeira obra rigorosamente científica sobre a geografia do Brasil – “Geology and Physical Geography of Brazil” (1870). A Expedição Hartt percorreu várias regiões do país e acendeu em Ferrez o gosto pela aventura de desbravar e registrar os confins de norte a sul do território nacional.













Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
menino índio, fotografia de 1880, e
índia e seu filho fotografados no sul
da Bahia, em 1875, e índios botocudos
no interior de Mato Grosso (1876).
Acima, a primeira fotografia no interior
de uma mina de ouro, em Ouro Preto,
Minas Gerais, no ano de 1888. Abaixo,
fotografia da série de 1876 dedicada
aos índios botocudos; um grupo de
índios Bororo em fotografia de 1880;
e duas fotografias que registram aspectos
da vida indígena feitos na década de 1870
e apresentados no Museu Nacional em 1882
na Exposição Antropológica Brasileira




             



              












Depois da experiência com a Expedição Hartt, Ferrez passa a investir esforços nos estudos sobre geologia e geografia e, no ano de 1880, decide encomendar na Europa a confecção de uma máquina fotográfica por ele idealizada, para a execução de imagens panorâmicas em grandes dimensões. Daí aos cargos oficiais de maior importância no Império de Dom Pedro 2°, também entusiasta da fotografia, foi um passo.

O destaque como funcionário a serviço da nação continuaria nos primeiros tempos da República. Reconhecido no Brasil e no exterior como fotógrafo de paisagens, de obras públicas, de cartões postais e de retratos de políticos e personalidades que se tornariam célebres, entre eles os escritores Machado de Assis e Rui Barbosa, Ferrez realizaria a partir de 1903 uma de suas séries mais reproduzidas até a atualidade: a documentação completa das obras no Rio de Janeiro de instalação da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, dos antigos edifícios às construções que foram erguidas no começo do século 20.





Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
mata de Araucárias, no interior do Paraná,
em fotografia datada de 1884. Abaixo, grupo
de escravos e seus filhos reunidos em uma
fazenda de café na Serra da Mantiqueira,
Sul de Minas Gerais, no ano de 1885;
e escravos na colheita do café em uma
fazendo do Vale do Paraíba,
no Rio de Janeiro, em 1882





Qualidade estética e documento histórico



Marc Ferrez obteve em sua época as mais importantes condecorações pela excelência de seu trabalho fotográfico, tanto no Brasil como em outros países, em diversas instituições internacionais, entre elas os primeiros grandes prêmios em exposições nos EUA (Philadelfia, 1876) e na França (Paris, 1878), além de ter suas fotografias exibidas com destaque na Exposição Universal de 1900, em Paris. Várias de suas séries e álbuns também foram incorporadas desde o final do século 19 aos acervos da Société Géographique, sediada na França.

Como se não bastasse, o nome de Marc Ferrez ainda está ligado ao nascimento do cinema no Brasil: foi ele quem patrocinou a produção dos primeiros filmes nacionais e instalou em 1907, no Rio de Janeiro, o Cine Pathé, primeira sala de exibição permanente de espetáculos cinematográficos. Ainda nesse ano, a Casa Marc Ferrez & Filhos tomaria para si a distribuição da grande maioria dos filmes exibidos nas diversas salas de cinema que surgiram no Rio de Janeiro. 










O Rio Antigo segundo Marc Ferrez:
no alto, panorâmica da Ilha Fiscal na
Baía da Guanabara, em 1885. Acima, a
Avenida Central no Rio de Janeiro de 1910.
Abaixo, a estação da estrada de ferro da
Central do Brasil, Rio de Janeiro, 1899







 
A extraordinária qualidade estética, formal e documental da obra de Marc Ferrez na produção de retratos de personalidades, além das panorâmicas, tanto as urbanas quanto a paisagem natural que emoldura e envolve seus enquadramentos, foi preservada intacta por seus familiares no último século. Depois da morte do fotógrafo patriarca, o guardião de sua obra completa foi Gilberto Ferrez (1908-2000), neto de Marc e um dos mais destacados historiadores da iconografia brasileira e da obra dos viajantes estrangeiros no decorrer da história do Brasil.

Desde a morte de Gilberto, a guarda e a preservação dos arquivos dos Ferrez estão a cargo de sua filha, Helena Ferrez, que mantém há décadas a catalogação dos documentos da família. Os catálogos preservados contam com um extenso patrimônio em suportes variados, no qual estão incluídos desde as relíquias de Zéphyrin, pai de Marc e tataravô de Helena, às clássicas séries de ensaios em panorâmicas registradas em daguerreótipos e fotografias por Marc Ferrez.











Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
amostra da experiência de Marc Ferrez
com o autocromo em cores, realizada em
1915 na Quinta da Boa Vista, no Rio de
Janeiro, seguida de duas imagens do Rio no
ano de 1875: o Pão de Açúcar, visto a partir
do bairro do Flamengo, e uma panorâmica da
entrada da Baía da Guanabara. Abaixo, o Largo
do Paço e a Rua Primeiro de Marco, no 
Rio de Janeiro, em 1890. No final da
página, mais duas imagens de Marc Ferrez em
1875: orla do Rio de Janeiro, com vista para o
Cais Pharoux e adjacências, e panorâmica que
registra os arrecifes e o porto do Recife, feita
por Ferrez no alto do Farol da Barra, tendo
em primeiro plano o Forte do Picão, que foi
construído em 1614 e batizado desde então
pelos holandeses como Castelo do Mar








Aos cuidados de Helena Ferrez também estão os acervos reunidos durante décadas por Gilberto Ferrez e todos os arquivos e filmes em negativo do filho de Marc e pai de Gilberto, Júlio Ferrez (1881-1945) – pioneiro que trouxe os primeiros equipamentos de cinema para o Brasil e realizou as primeiras filmagens em território brasileiro. Os catálogos dos Ferrez contam ainda com séries de correspondências, muitos álbuns da intimidade da família, cadernos de anotações das várias gerações, peças de artes plásticas e impressos em geral.

A maior parte deste imenso acervo, entretanto, não faz parte do material reunido no livro e na mostra “O Brasil de Marc Ferrez”. As imagens que constam do livro e da mostra foram selecionadas da coleção adquirida pelo IMS em 1998 – uma coleção que totaliza cerca de 5.500 fotografias diferentes, produzidas no século 19 e começo do século 20, incluindo mais de 4 mil negativos originais em superfícies de vidro.

Importante como resgate da importância capital do trabalho de Marc Ferrez, o livro, assim como a mostra e a manutenção do acervo pelo IMS, também consolidam e estendem para além do círculo de especialistas um trabalho que é um dos mais importantes legados visuais do Segundo Império e da República Velha. Compreendida no período que vai de 1865 a 1918, a perícia técnica e a grande arte de Marc Ferrez se mantêm, até os dias de hoje, como um dos registros fundamentais da fotografia no Brasil e no mundo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Relíquias de Marc Ferrez. In: Blog Semióticas, 7 de junho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/reliquias-de-marc-ferrez.html (acessado em .../.../...).



 







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