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3 de dezembro de 2011

O animal humano





Escravo é aquele que não pode dizer o que pensa.

(L'esclave est celui qui ne peut pas dire ce qu'il pense.)

–– Eurípides (circa 411-409 a.C.).     


Nem tudo são flores para a “prova de verdade” que a fotografia sempre pode representar. Desde a primeira metade do século 19, os pioneiros do registro fotográfico usaram a pretensa “verdade” da imagem fotográfica para ganhar fortunas reproduzindo, especialmente, os seres humanos considerados “exóticos, selvagens ou monstros” – muitos deles capturados como animais em seus países de origem e depois exibidos em feiras, circos e zoológicos das maiores e mais “civilizadas” capitais da Europa e Estados Unidos.

Por incrível que pareça, a última dessas grandes e populares exposições em jardins zoológicos com “humanos exóticos, quase animais” foi realizada em 1958, em Bruxelas, na Bélgica. A apresentação em uma jaula de uma “autêntica família de um vilarejo do Congo” foi interrompida antes da data prevista, apesar do estrondoso sucesso popular que levava todos os dias multidões ao “espetáculo”: críticas na imprensa e pressão dos países vizinhos provocaram o fechamento do próspero negócio. Não há registro sobre o destino da “autêntica família”.

Presentes em todos os manuais de história da fotografia, uma amostra das cenas registradas em daguerreótipos, dioramas, cartões postais, filmes de curta duração e outras técnicas pioneiras dos tristes espetáculos de “humanos exóticos, quase animais” foram reunidas pela primeira vez em uma exposição no Museu do Louvre, em Paris, no ano 2000, intitulada "Ces Zoos Humains de la République Coloniale" (Os zoológicos humanos da república colonial). O acervo, revisto e ampliado, retorna agora em "L'Invention du Sauvage" (A invenção do selvagem), uma impressionante exposição permanente aberta no museu Quai Branly, também em Paris, uma das capitais da Europa que também mobilizaram multidões para visitar jardins zoológicos também exibiam instalações com “humanos exóticos, quase animais”







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    O animal humano – acima: 1) índios Galibi, que

    viviam no Oiapoque (território entre o norte do Brasil

    e a Guiana Francesa), são exibidos em uma jaula

    em espetáculo etnológico no jardim zoológico da

    Acclimatation, em Paris, em 1893; 2) e 3) nativos do

    Congo, África, exibidos em Bruxelas, na Bélgica,

    em um zoológico humano instalado em 1897;

    e 4) menina capturada nas tribos do Congo, África,

    é exibida em Bruxelas, em 1958, durante uma exposição

    que reconstruiu, na capital da Bélgica, o zoológico humano

    que fazia muito sucesso na segunda metade do século 19.


    No alto da página, o italiano apresentador de shows

    “excêntricos” Guillermo Antonio Farini posa com

    com pigmeus no Royal Aquarium de Londres,

    em 1888. Abaixo, o africano Ota Benga, nascido no

    Congo, grande sucesso de público durante exibição

    nos EUA, em 1904, no Louisiana Zoo, Missouri,

    e em 1906, no Bronx Zoo, em Nova York.

    Todas as imagens desta postagem fazem

    parte do catálogo da exposição permanente do

    museu Quai Branly "L'Invention du Sauvage"












Antes da exposição no museu Quai Branly, as imagens selecionadas do acervo haviam sido publicadas na Inglaterra pela Liverpool University Press em 2008 no catálogo “Human Zoos – Science and Spectacle in the Age of Empire” (Zoos humanos, ciência e espetáculo na era do império), resultado de uma minuciosa pesquisa feita durante décadas pelo historiador francês Pascal Blanchard. Sobre o mesmo tema há, também, o romance que Didier Daeninckx publicou em 1998, "Cannibale", que tem por tema a exposição colonial no Bois de Vincennes, em Paris, em 1931, que apresentava, em jaulas, famílias inteiras do povo Kanak capturadas nas ilhas do Pacífico Sul e transportadas como escravos para exibição nos "espetáculos" parisienses.  

No texto de apresentação para o catálogo da exposição "L'Invention du Sauvage", que traz mais de 600 cartazes, fotografias e fotogramas de época, Pascal Blanchard defende a tese de que o desumano e popular espetáculo que proliferava em vários países da Europa e nos Estados Unidos tinha um objetivo político e ideológico: justificar e fazer propaganda das missões de guerra e de ocupações imperiais ao sul da linha do Equador nas Américas, na África e na Ásia pelos países da Europa. Segundo Blanchard, que assina como curador científico da exposição no museu Quai Branly, os espetáculos de “zoológicos humanos” legitimaram a colonização e influenciaram o desenvolvimento de terríveis ideias racistas que perduram até nossos dias.



Hierarquia racial



Pascal Blanchard explica que durante o século 19 se desenvolveram noções sobre a raça e o conceito de hierarquia racial, com teses absurdas como aquela que defende que os negros africanos seriam o elo que faltava entre o macaco e os homens brancos ocidentais, ou o "homem normal", como consideravam os cientistas. Seguindo a cronologia das imagens do catálogo publicado por Blanchard, a exposição começa com as primeiras chegadas de povos "exóticos" à Europa, trazidos pelos exploradores, como o caso da família de índios tupinambá, do Brasil, que desfilaram, em 1550, para o rei Henrique 2º e a nobreza em Rouen, na França.







O animal humano: acima, fotografia
para anúncio publicitário do grande
"espetáculo" de Guillermo Antonio
Farini, com adultos e crianças da tribo
Boschiman (de Botswana, Namíbia
 e África do Sul) são exibidos em
Paris entre 1898 e 1905. Abaixo, a
capa do romance de Didier Daeninckx
sobre a exposição colonial de 1931 no
Bois de Vincennes, em Paris; e o 
 casal de noivos da tribo Zulu,
levados da África para exibição em
um parque em Londres. A fotografia,
atribuída à equipe da revista norte-
americana National Geographic,
foi a primeira imagem de uma
mulher de seios nus publicada
pela revista e provocou grande
escândalo em 1896 não pela
situação de escravidão, mas
pela simples exibição dos seios













Londres, que foi a cidade pioneira ao apresentar uma exposição de índios brasileiros Botocudos em 1817, iria transformar-se na "capital dos espetáculos étnicos", seguida pela França, Alemanha, Bélgica e Estados Unidos. A exibição em Londres, em 1810, e em Paris, em 1815, da sul-africana Saartje Baartman, conhecida como "Vênus Hotentote", também foi um "espetáculo" que marcou época, atraindo multidões de espectadores e firmando no imaginário popular o sinistro e bizarro aspecto de “humanos exóticos, quase animais”. A palavra Hotentote (associada ao título de Vênus, a deusa do amor da Roma Antiga), era o nome pelo qual a tribo da sul-africana Saartje Baartman era conhecida à época. 

Saartje Baartman, exibida totalmente nua como grande atração numa jaula para plateias incrédulas, e ávidas por aberrações e monstruosidades, tinha como característica principal nádegas muito proeminentes e marcou, segundo Blanchard, uma reviravolta nesse tipo de apresentação. Depois do sucesso popular da negra nua de nádegas exageradas, pessoas com deformações físicas e mentais também passariam a servir de atração para exibições em forma de espetáculo para as plateias das cortes europeias na época. A história real de Saartje Baartman foi transformada em livro (no formato de história em quadrinhos ou "romance gráfico", também conhecido como "graphic novel") e em filme, em 2010, ambos com o título "Vênus Negra" (Vénus Noire), pelo cineasta franco-tunisiano Abdellatif Kechiche.








O animal humano: negras sul-africanas
da tribo Khoisan (ou Hotentote, como
era conhecida) como Strinée (acima, em
fotografia de Louis Rousseau), com
nádegas extremamente proeminentes,
eram exibidas como atrações na Europa
 durante o século 19. A mais famosa negra
Hotentote nos zoológicos das capitais europeias
foi Saartje Baartman (gravura abaixo),
conhecida como Vênus Hotentote, exibida
pela primeira vez em Londres, em 1810.
Também abaixo, a capa do livro e o cartaz
original do filme de 2010. Livro e filme,
ambos com autoria do franco-tunisiano
Abdellatif Kechiche, foram baseados
na história real de Saartje Baartman














Esses "shows", apresentados com maior frequência desde o começo do século 19, nas capitais da Europa e nos Estados Unidos, se profissionalizaram e renderiam fortunas, com interesse cada vez maior do público, tornando-se uma indústria de espetáculos de massa. Os “animais humanos em jaulas” atraíam multidões em suas extensas turnês internacionais, mas é constrangedor constatar, como alerta Blanchard, que não há registro de que alguma vez tenham ocasionado qualquer impedimento ou sequer algum incômodo jurídico ou ético para os promotores dos tais "espetáculos".



Shows étnicos



Um dos “espetáculos” que percorreriam durante anos e anos as capitais e maiores cidades da Europa foi aberto em Paris, em 1895, quando um "vilarejo" africano foi montado em jaulas próximo à Torre Eiffel. Um sucesso que marcou época e provocava filas com antecedência, destaca Blanchard sobre a “aldeia dos animais humanos”, com apresentações sensacionalistas de mulheres quase sempre nuas ou seminuas e suas crianças assustadas, protegidas por homens por vezes manuseando seus instrumentos musicais estranhos, por vezes furiosos, anunciados como seres perigosos e canibais.










O animal humano: no alto, guerreiros
da tribo Nyambi, da África, exibidos
no jardim zoológico da Acclimatation de
Paris, em 1937. Acima, um grupo do povo
Kalina, chamados de índios Caribe pelos
colonizadores espanhóis, capturado na
região norte da América do Sul e exibidos
com grande sucesso de público também
no jardim da Acclimatation de Paris em 1882.

Abaixo, fotografia das jaulas da
exposição no Champs de Mars, também
em Paris, em 1895, com mais de
300 nativos da África capturados
no Senegal e no Sudão; a jaula com
a Vila dos Senegaleses na Exposição
Universal de 1905 em Liége, na Bélgica;
e um grupo de crianças da tribo Omaha,
capturado no território de Nebraska, nos EUA,
exibido como espetáculo em um zoo instalado
na Acclimatation, em Paris, no ano de 1883
















"É em um contexto expansionista e colonialista das grandes potências ocidentais e de pesquisa desenfreada dos cientistas da época com suas teses bizarras que essas exibições vão ganhar legitimidade necessária para existir e para atrair o interesse popular", afirma Pascal Blanchard no catálogo da mostra (clique aqui para acessar o catálogo). O apogeu das exibições de “zoológicos humanos” nas capitais da Europa e em outros países, explica o curador, ocorreu entre 1890 e até o final da década de 1930, perdurando ocasionalmente nas décadas seguintes, até ser extinto tardiamente no ano de 1958.


































O animal humano: no alto, cartão-postal
apresenta javanesas Kapong exibidas na
jaula durante a Exposição Universal de
Paris de 1889, que marcou a inauguração
da Torre Eiffel. Acima, mulheres da etnia 
Ashanti, de Gana, são exibidas com seus 
filhos no jardim zoológico da Acclimatation
de Paris, em 1903. Abaixo, casal de etnia
da Índia, exibido em jaula, na década
de 1920, também no zoo da Acclimatation;
a "instalação" com selvagens das tribos do
Senegal, em 1905, também na Acclimatation;
e uma seleção de pôsteres de época,
incluindo o cartaz da exposição
realizada no Museu de Quai Branly










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Depois da década de 1930, e após o término da Segunda Guerra, os "shows étnicos" foram pouco a pouco deixando de existir por razões diversas: falta de interesse do público, surgimento do cinema falado, e posteriormente do "Cinemascope" em suas cores espetaculares, e também pelo desejo das potências da Europa de excluírem o "selvagem" da propaganda de colonização. Blanchard resgata documentos e notícias publicadas na época para revelar que, antes da extinção definitiva dos shows que exibiam “humanos exóticos, quase animais”, um percentual considerável das populações das maiores cidades da Europa pagaram ingressos para ver os seres humanos trazidos de lugares distantes, ao Sul do Equador, apresentados em jaulas: somente pelos registros oficiais, mais de 1 bilhão de pessoas assistiram aos espetáculos exóticos realizados entre 1800 e 1958.

Contraponto ao secular antropocentrismo exclusivamente europeu e acervo que provoca reflexões, tanto sobre o comportamento do ser humano e sobre o racismo como sobre a evolução do gosto das grandes plateias nos centros urbanos, a exposição permanente em cartaz no museu do Quai Branly seguirá um calendário itinerante para uma extensa turnê internacional. O calendário terá, por ironia do destino, o mesmo roteiro que seguiram os nativos de lugares exóticos, aprisionados e exibidos em jaulas, há até pouco mais de meio século, nos espetáculos dos “zoológicos humanos”, pelas capitais e pelas maiores cidades da Europa e dos Estados Unidos.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O animal humano. In: ______. Blog Semióticas, 3 de dezembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/12/o-animal-humano.html (acessado em .../.../...). 

















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