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13 de abril de 2012

Nu perante a câmera








E ambos estavam nus, o homem e a  
sua mulher, e não sentiam vergonha.  

Bíblia Sagrada, Gênesis, 2:25.   



A atitude de nudez diante das câmeras teve início quase dois séculos antes da popularização da internet e das webcams e muito antes da indústria da pornografia transformar o corpo e o sexo em mercadoria para consumo compulsivo, como destaca entre trocadilhos saborosos o breve texto que apresenta “Naked before the Camera”, exposição inédita que vai permanecer em cartaz em Nova York até 9 de setembro no The Metropolitan Museum of Art. São imagens belíssimas, todas em preto e branco e em matizes de sépia, que impressionam e apresentam um resumo da história da fotografia.

A exposição, que esta semana gerou protestos na imprensa dos EUA e manifestações em frente ao Metropolitan por chocar os juízos mais conservadores, reúne 60 obras de nomes célebres e também de autores anônimos que abarcam desde as primeiras experiências de registro das imagens fotográficas, nas primeiras décadas do século 19, até experiências mais recentes como “Double Index”, intervenções de Robert Flynt com impressão sobre papel, datadas de 2009.














Nu perante a câmera: uma seleção de fotografias
reunidas na exposição Naked before the Camera:
no alto, "Two Standing Female Nudes" (1850), de
Félix-Jacques Antoine Moulin. Acima, 16 quadros
do "Album d'Études-Poses" (1880), de Louis Igout,
e uma sequência de "Boys Playing Leap Frog", um
ensaio fotográfico de 1887 de Eadweard Muybridge.

Abaixo, fotografia da série “Nude, Campden Hill,
London”, uma curiosa versão de 1949 de Bill Brandt
para as cenas descritas por Lewis Carroll no livro
Alice no País das Maravilhas, seguida de extratos
de "Double Index", ensaio fotográfico de 2009 de
Robert Flynt; "Folded Up" (1995), do fotógrafo
Jennifer Johnson, e “Teenage Lust” (1973),
um dos ensaios polêmicos do fotógrafo
e cineasta Larry Clark












Observando a cronologia das obras em exposição, é interessante constatar que há muito mais semelhanças que diferenças entre os primeiros fotógrafos e os contemporâneos. Um olhar mais atento pode perceber, inclusive, que as imagens mais recentes – como é o caso de Robert Flynt e do registro de Jennifer Johnson intitulado “Folded Up”, de 1995 – curiosamente lembram muito, nos enquadramentos, nas texturas e nos tons esmaecidos, os trabalhos de pioneiros da fotografia também presentes na mostra, como os franceses Felix Nadar (1820-1910) e Julien Vallou de Villeneuve (1795–1866).

Entre os fotógrafos contemporâneos, também há trabalhos de Robert Mapplethorpe, Diane Arbus, Garry Winogrand e Larry Clark, entre outros. De Larry Clark, também cineasta, a curadoria incluiu na mostra uma imagem sem título que integra “Teenage Lust”, série que ele realizou entre 1972-1973. A imagem de Clark, que está entre as mais recentes apresentadas na mostra, antecipava as cenas fortes e a temática de seu filme mais polêmico, “Kids”, de 1995, que também provocou a ira dos moralistas ao abordar sem subterfúgios o avanço da aids e a sexualidade de adolescentes e pré-adolescentes em Nova York. 











"Desde o início da história da arte, retratar o corpo humano tem sido um dos maiores desafios dos artistas e resultou em realizações supremas, como pode ser comprovado nas galerias de estatuária grega e romana ou nas pinturas de mestres renascentistas”, aponta o diretor do museu nova-iorquino, Thomas Campbell, no texto que apresenta a exposição. As 60 fotografias reunidas vêm do extenso acervo do próprio museu e de universidades norte-americanas, onde integram coleções de antropologia e de história da fotografia.



Daguerreótipos e outros suportes



Há desde os antigos daguerreótipos em vidro a ampliações em suportes diversos, com cenas que remetem a aspectos que vão da história à sociologia, à etnologia e até à mitologia. Mas o que se destaca em primeiro plano na exposição é a mesma questão que as representações do nu sempre provocaram na maior parte das culturas: discussões apaixonadas sobre a moral, a censura, o pecado e a sexualidade. Acompanhando a cronologia das imagens, desde o século 19, também sobressaem questões de identidade e as alterações que cada época impõe aos padrões da arte e aos cânones de beleza.











Nudez no Oitocentos: no alto, "Standing Female Nude"
(1860), de Félix Nadar; ao centro, "Standing Male Nude"
(1855), atribuído a Charles Alphonse Marlé. Acima,
"Male Musculature Study" (1890), de Albert Londe.
Abaixo, "Young male nude seated on leopard skin",
fotografia de 1890 do italiano Guglielmo Plüshow









A maior parte das imagens pode ser descrita como “estudos sobre o corpo humano” – uma vez que algumas lembram as investigações científicas promovidas em laboratórios de anatomia ou os desenhos de observação sobre o corpo humano que há séculos são exercitados nas escolas de artes plásticas. Desde as primeiras experiências, na década de 1820, a produção de fotografias provou ser um substituto barato e fácil para o modelo vivo e um convite inquestionável às fantasias de sugestões eróticas.

Muitas das fotos mais antigas trazem a indicação de que foram produzidas para facilitar o trabalho dos pintores, mas com o passar do tempo se transformaram em obras de arte por si mesmas. O texto de apresentação de Thomas Campbell destaca que algumas das imagens da exposição têm uma semelhança tão grande com pinturas conhecidas que, provavelmente, serviram mesmo de modelos para artistas célebres. 









No alto, "Reclining Female Nude" (1853),
fotografia de Julien Vallou de Villeneuve.
Acima, "Femme avec un Parrot" (1866),
pintura de Gustave Courbet. Abaixo,
modelo nu na fotografia de Brassaï,
"L'Académie Julian", de 1931.

Também abaixo, "Turkish Woman" (1881), 
de Charles-Albert Arnoux Bertall; e "Female
Nude" (1853), de Julien Vallou de Villeneuve








Entre as fotografias em exposição no Metropolitan, há exemplos facilmente perceptíveis de que a fotografia serviu mesmo de base para o traço figurativo de gravuras e pinturas. Um dos casos mais evidentes de “apropriação” é a fotografia intitulada “Nu feminino reclinado” (1853), de Julien de Villeneuve, que “inspirou” um quadro célebre: Mulher com um papagaio” (1866), do pintor realista francês Gustave Courbet (1819-1877).

Entre tantas belas imagens, impressionam o erotismo e a sensualidade explícita de fotografias de meados de século 19 do francês Charles-Albert Arnoux Bertall (1820–1882), além de Nadar, Villeneuve, Moulin, Marlé e Thomas Eakins, entre vários outros, que somente sobreviveram aos rígidos códigos de censura da época porque foram adquiridas por colecionadores – como se vê em “Turkish Woman”, série que Bertall realizou em 1881, durante uma viagem ao Império Otomano, ou das jovens prostitutas francesas e mulheres nativas da Indonésia retratadas por volta de 1850 pelo também francês Félix-Jacques-Antoine Moulin (1800–1875).









Propostas libertárias


A exposição também reúne imagens do final do século 19 e início do século 20 produzidas com fins medicinais e para analisar distorções de anatomia, mas que também unem o erotismo e a sensualidade. Mais tarde, no decorrer do século 20, artistas como o húngaro George Brassai (1899-1984), o americano Man Ray (1890-1976) e o alemão Hans Bellmer (1902-1975) utilizam o nu como propostas libertárias na arte, investindo na exposição do corpo humano como veículo perfeito para jogos visuais e para distorções com objetivos estéticos de experimentação e de prospecção psicossexual.

As imagens reunidas na exposição do Metropolitan, todas disponíveis no portal do museu na internet, também podem ser admiradas como uma trajetória dos nomes mais célebres entre os pioneiros na história universal da fotografia, em que rivalizam uma maioria de franceses, seguidos por norte-americanos – entre eles o destaque de pioneiros como Eadweard Muybridge (1830–1904) – e os húngaros como André Kertész (1894–1944) e o citado Brassai, entre outros. 











Nus fotografados em fragmentos: no alto,
 "Arm" (1935), de Man Ray; ao centro,
"Nude" (1931), de Brassaï. Acima,
"Nude" (1928), de Germaine Krull.
Abaixo, nu feminino em registro de
um fotógrafo anônimo datado de 1856







Entre os principais representantes da fotografia nos movimentos de vanguarda que agitaram Paris e outras capitais de países da Europa nas primeiras décadas do século 20, além de Man Ray e Kertész há ainda uma artista e importante ativista política que também viveu durante alguns anos no Brasil: a francesa de ascendência polonesa Germaine Krull (1897–1985), que também transformou a nudez do corpo humano em veículo para a manipulação surreal da beleza.

Depois da Segunda Guerra, como apontam as imagens ousadas de Edward Weston ou Emmet Gowin – que realizam autorretratos para comunicar uma conexão íntima com seus corpos – o uso da fotografia, e mais especificamente a nudez, começa a surgir como instrumentos de denúncia contra o preconceito, a segregação ou os extremos: dos aspectos mais naturais aos mais doentios do comportamento psicossexual.













No alto, "Distortion # 6" (1932), fotografia experimental
de André Kertész; no centro, "Nude on Sand, Ocean"
(1936), de Edward Weston, e "A Naked Man being
Woman, N.Y.C" (1968), de Diane Arbus; acima,
"Edith, Danville, Virginia" (1967), de Emmet Gowin.
Abaixo, nu feminino reclinado no divã em
fotografia de 1856 de Gustave Le Gray








A partir da década de 1960, os registros apresentados na exposição avançam em direção à política, incluindo fotografias que registram protestos em praça pública ou a reclusão de ambientes distintos, seja em cenas de prostíbulos, seja em casais e famílias inteiras em acampamentos e praias de nudismo – como se vê em duas fotos da norte-americana Diane Arbus, "Homem aposentado e sua mulher em casa um amanhã em um acampamento nudista" (1963) e "Um homem nu sendo uma mulher, N.E.C" (1968).

A revolução sexual e seu contraponto, estabelecido com a crise gerada pelo avanço da aids nas últimas décadas do século 20, também são perceptíveis na cronologia que a exposição enumera. Nas imagens mais recentes, de Mapplethorpe, Diane Arbus e Larry Clark, é quando a nudez e sua representação assumem novos significados, como provocações ou declarações de liberdade frente às restrições sociais. E também como afirmações de identidade individual, de sexualidade e de gênero fora dos padrões de uma certa normalidade.





   
 




No alto, "Nude N° 57" (1950), fotografia de
Irving Penn, seguida por "Patti Smith" (1976),
de Robert Mapplethorpe, e "Two Man in
Silhouett" (1987), de Mark Morrisroe.

Abaixo, duas fotografias de 1981 também de
Mark Morrisroe: "Self portrait" e "Self portrait
standing in the shower". Também abaixo,
"Cavorting by the Pool at Garsington",
fotografia de 1916 de Lady Ottoline Anne
Cavendish-Bentinck Morrell; e o autorretrato
"Thomas Eakins & John Laurie Wallace on
a Beach" (1883), de Thomas Eakins










Ao apresentar um resumo da história da fotografia exclusivamente através das representações da nudez, “Naked before the Camera” provoca a sensibilidade e o senso crítico do público para além dos domínios da arte e das fantasias mais ou menos explícitas de sedução erotismo. Cada uma das imagens em exposição – mesmo aquelas que sob a distinção de "estudo de artista" enganaram os censores para dar início ao que se tornaria nas décadas e no século seguintes no próspero comércio da pornografia – tem um apelo tão forte que pode levar o espectador a examinar tanto as motivações como os significados sobre o que há de mais humano e que deveria ser o estado mais natural em nossa civilização: a nudez de nossos próprios corpos.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Nu perante a câmera. In: Blog Semióticas, 13 de abril de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/04/nu-perante-camera.html (acessado em .../.../...).


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