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20 de abril de 2016

Fetiches à mostra









O que leva à substituição do objeto pelo fetiche é
uma conexão simbólica de pensamentos que, na
maioria das vezes, não é consciente para a pessoa.

–– Sigmund Freud, 1905.   



A história do erotismo talvez seja inseparável de um certo fetiche para despir até a intimidade do corpo nu. Com suas regras fluidas e cada vez mais instáveis com o passar do tempo, na intimidade ou em público, a história e o jogo social do erotismo em vestir e despir, a partir dos últimos três séculos, recebem agora uma retrospectiva provocante que transfere as “roupas de baixo” à categoria de obras de arte. Batizada de “Undressed: A Brief History of Underwear” (Desvestidos: uma breve história da roupa íntima), uma exposição em Londres, aberta no Victoria & Albert Museum, resgata as relações entre o corpo, a moda e a roupa íntima desde 1750 até a atualidade.

Trata-se de um acervo nunca antes reunido com mais de 250 objetos e imagens que são puro fetiche (veja o link para uma visita virtual à exposição no final deste artigo) – incluindo fotografias, cenas de filmes, pinturas e desenhos, embalagens e anúncios publicitários que fizeram História. Entre tantos apelos de sedução, o grande destaque são as peças originais de roupas íntimas de várias épocas, tanto femininas quanto masculinas, criadas para envolver órgãos genitais, seios, cinturas, coxas, pernas, nádegas – peças que somente há poucas décadas a publicidade passou a expor em público sem bloqueios de recatos e pudores.

Diante da variedade tão sugestiva da coleção de calcinhas, sutiãs, cuecas, calções, espartilhos, corseletes, anáguas, meias transparentes, cintas-liga, camisolas e pijamas apresentados na exposição, em marcações cronológicas por vezes surpreendentes, o observador pode ter o prazer de cruzar as fronteiras fluidas e instáveis do erotismo e da sexualidade que a arte e a literatura descobriram bem antes de 1750 – data inicial da trajetória que o recorte temático da mostra reconstitui. São estas fronteiras de regras fluidas e instáveis que tiveram nos escritos do século 19 do francês Charles Baudelaire sobre a Modernidade seu marco inaugural como questão fundamental da vida em sociedade.









Fetiches à mostra: no alto, espartilho
em seda e metal fabricado em 1890
e usado para reduzir a cintura, manter
o tronco ereto e conferir mais elegância
ao corpo – uma das raridades reunidas
na exposição do Victoria & Albert
Museum. Acima, dioramas de
1900 registram damas da
nobreza vestindo espartilhos
e armações para saias e
vestidos. Abaixo, desfile
da primeira coleção de lingerie
de luxo lançada em 1998, em
Paris, pela estilista australiana 
Collette Dinnigan; e vitrine da
Corsetiere, última loja especializada
em corsetes, corseletes, espartilhos e
roupas íntimas sob encomenda, no East
End de Londres, que fechou as portas em
maio de 1968, fotografada em 1961 por
John Claridge. Todas as imagens
reproduzidas nesta página estão no
catálogo da exposição Undressed










O jogo social do erotismo gira hoje em torno da seguinte questão: até onde pode ir uma mulher digna sem se perder?” – interrogava Walter Benjamin, na década de 1930, em uma das passagens de “Jogo e Prostituição”, um dos ensaios inspirados, instigantes, que o pensador alemão dedicou aos escritos de Baudelaire. É verdade que tanto Baudelaire quanto Benjamin tinham em mente as figuras femininas das ruas e salões do Oitocentos, cenários das transformações sociais que surgiram e se desenvolveram na Paris do Segundo Império, mas suas reflexões cabem, como uma luva, também para as mitologias de valor efêmero que a publicidade e a cultura pop disseminam em nosso tempo presente.



Contraponto histórico



A questão filosófica e sociológica, profundamente semiótica, que Walter Benjamin apresenta, espelhado em Charles Baudelaire, poderia constar em destaque, como epígrafe, na mostra do museu britânico, indicando um sem número de aspectos transdisciplinares que sobrepõem variáveis: das amarras da tradição aos hábitos de higiene, das normas da elegância aos impedimentos do poder econômico, dos hábitos cotidianos de consumo e comportamento condicionados em segmentos de classes sociais.









Fetiches à mostra: no alto, amostras
raras das roupas íntimas usadas pela
nobreza da Europa no século 18.
Acima, espartilhos com cordas
e metal usados no século 19.
Abaixo, corsete em seda
e algodão de 1890 com
detalhes bordados em ouro;
uma rara peça unissex: a cinta
usada por homens e mulheres
no Oitocentos para moldar a
cintura e reduzir a barriga; e uma
peça que fez história na década de
1990: o sutiã cônico em modelo corsete
criado por Jean-Paul Gaultier para a
turnê "Blonde Ambition"
de Madonna


 








.









"Dos mestres de ofício dos séculos 18 e 19 aos designers e estilistas mais famosos de nossa época, permanece o apelo das relações fascinantes entre a roupa interior e a roupa exterior, entre a roupa íntima e o corpo", destaca Edwina Ehrman, diretora do acervo de moda e materiais têxteis do Victoria & Albert Museum e curadora da mostra. No dossiê de imprensa sobre a exposição, a curadora também destaca uma série de contrapontos históricos que distinguem a trajetória das roupas íntimas feitas para mulheres e para homens.

Um destes contrapontos: as roupas íntimas femininas sempre tiveram como objetivo o apelo sexy, a sedução, que não raro traziam junto o desconforto e até mesmo a exigência de um certo grau de sacrifício. Por outro lado, a roupa íntima masculina tem por princípios, desde outras épocas, o conforto e a simplicidade, das antigas faixas de recortes de linho, que eram fáceis de lavar e serviam para proteger os genitais do contato com as armaduras de metal e com os ásperos tecidos dos uniformes militares, aos mais modernos modelos contemporâneos feitos de tecidos sintéticos ou de algodão com costuras invisíveis.











 










                                     




Fetiches à mostra – no alto, uma relíquia

original e valiosa: uma cueca de algodão

produzida na Inglaterra em 1890. Acima,

modelos anônimos fazem pose em 1915,

vestindo roupas íntimas longas, para um

catálogo de vendas das lojas Sears de Chicago;

a caixa de cuecas de papel descartáveis

lançada em Londres pela L.R. Industries

em 1970; um anúncio publicitário de calções

de banho de 1955 da grife Catalina, uma das

mais antigas fabricantes de roupas ainda

em atividade, criada em 1907 na Califórnia;

Sean Connery antes da fama, ao lado de

Chopper Hawlett, em um concurso de

fisioculturismo em 1953, usando um

ousado modelo de sunga de algodão.

Também acima, Clint Eastwood, outro

astro do cinema antes da fama,

posando de modelo fotográfico em 1955;

e o anúncio de lançamento de cuecas no

novo formato “sleep” que iria revolucionar o

mercado, aposentar o formato da tradicional

das cueca samba-canção e se tornar uma

peça de escândalo pela ousadia nunca vista

em um catálogo industrial, criação da grife

inglesa Dean Rogers Menswear. Abaixo, os

Brixton Boys fotografados para um anúncio

da Calvin Klein, em 2001; o anúncio de 2012

com David Beckham exibindo a coleção de

cuecas da grife H&M; um anúncio de 2015

das cuecas de seda da grife AussieBum;

Claudia Schiffer vestindo Chanel 

nas passarelas em 1993

















A exposição, com sua meta de traçar um painel técnico e comportamental sobre a evolução no design de roupas íntimas, revela que o uso de materiais como metal, cordas e cordões vem, gradativamente, cedendo lugar a tecidos como linho, seda, algodão, rendas, cada vez mais suaves e em cortes e formatos progressivamente mais encurtados e simplificados nos adereços. A evolução das primeiras peças, exclusivas e artesanais, chega aos processos técnicos da fabricação em série, depois em escala industrial, mas sempre moldando os ajustes das silhuetas às formas de um almejado corpo ideal, seguindo os padrões de cada época e atendendo aos apelos libertários em detrimento do recato e das vigilâncias da moral.



O jogo: exibir e esconder



No jogo social do erotismo, o equilíbrio entre exibir e esconder vem, quase sempre, pontuado por determinados paradoxos e contradições: para mulheres da burguesia, desde o final do século 19, era comum mostrar parcialmente, em público, um ou outro detalhe das novas formas de lingerie como indicativo de poder e riqueza; para os homens, as novidades são menos numerosas e quase sempre restritas a mudanças mínimas na modelagem de ceroulas e calções.












Fetiches à mostra: no alto e acima,
peças da coleção de lingerie de 2015
da grife Stella McCartney; e a coleção
de calcinhas da Cheekfrills, criação
de Lily Fortescue e Katie Canvin.
Abaixo, dois anúncios da
coleção “pornô-chic”
batizada de Tamila, lançamento
de 2015 da grife Agent Provocateur,
fotografados por Sebastian Faena;
e o espartilho com cristais e pérolas
criado em 2011 por Mr. Pearl
para a atriz Dita Von Teese











Nas roupas íntimas masculinas, uma das poucas mudanças perceptíveis nas últimas décadas talvez sejam as calças mais folgadas na cintura, para deixar à vista as barras superiores de sungas e cuecas. A tendência, que primeiro causava um certo estranhamento, desde os célebres e pioneiros anúncios publicitários das grifes Calvin Klein e Empório Armani, nas décadas de 1980 e 1990, acabaria se tornando comportamento coletivo. A exposição também confirma que a roupa íntima, como a própria sexualidade e a intimidade de famosos e de anônimos, provoca muito interesse, debate e, quase sempre, controvérsias – mais pelas peças de escândalo do que pelas preciosidades resgatadas de outras épocas.

As peças mais valiosas, no acervo reunido pelo Victoria & Albert Museum, são também as mais antigas – da segunda metade do século 18 e do começo do século 19. Entre outras raridades de exotismo que sobreviveram por séculos até nossos dias, há as “roupas de baixo” e as calçolas majestosas com rendas, armações de metal e madeira e adornos infinitos criados sob encomenda da realeza e da nobreza. E há as formas de ampulheta distorcida em espartilhos, corpetes e corseletes de barbatanas em ouro e pedrarias, com dezenas de fios e hastes metálicas reforçando a amarração – peças usadas pela maioria das mulheres da nobreza e de posição social destacada até as duas primeiras décadas do século 20, quando foram enfim inventados os sutiãs – oficialmente patenteados nos EUA, em 1914, pela costureira Mary Phelps Jacob.















Fetiches à mostra: no alto, meia-calça
transparente com cinta-liga, criação de
artesãos franceses na década de 1870
que voltou à moda com o sucesso de
Marlene Dietrich no filme alemão de
Joseph von Sternberg O Anjo Azul
(Der Blaue Engel, 1930). Acima,
duas criações de Christian Dior:
colete em corsete com cinta-liga,
em releitura de 1950 para
as peças tradicionais do
século 19, e a camisola com
robe de chambre em fotografia
de 1953 de Irving Penn para
a revista Vanity Fair. Abaixo,
a camisola de luxo com saia curta,
criação de Cristobal Balenciaga de
1958; o corpete de nylon, novidade
da década de 1960 em criação de
Mary Quant; o vestido com espartilho
aparente criado por Antonio Berardi
em 2008 para a atriz Gwyneth Paltrow;
Kate Moss, com Naomi Campbell em
uma festa da Elite Models em 1993,
em Nova York, com um vestido de
seda transparente que deixava
à mostra a calcinha e
os seios nus













 
Contudo, não são estas peças raras de outros séculos, das eras vitoriana e eduardiana, que mobilizam a atenção da grande maioria do público, e sim as peças de roupas íntimas que ganharam fama graças a celebridades do mundo fashion e da cultura pop às quais elas estão por algum motivo associadas. Nesta seção da mostra estão também os modelos de trajes transparentes de 1911 de Paul Poiret, as criações das décadas de 1920, 1930 e 1940 de Coco Chanel, as peças históricas de Dior, Givenchy, Balenciaga e Mary Quant dos anos 1950 e 1960 e, entre vários outros, sucessos recentes das passarelas e das linhas de lingeries de luxo de Vivianne Westwood, Gianni Versace, Jean Paul Gaultier, Alexander McQueen, John Galliano, Dolce & Gabbana e Stella McCartney.

A retrospectiva equivale a uma boa aula de História – em suas interfaces com a moda, a sexualidade, a moralidade e a tecnologia industrial. Porém, para além do sucesso de público, dos holofotes e das referências a celebridades muitas vezes tão instantâneas quanto efêmeras, o sentido de uma mostra dedicada a roupas íntimas, em um museu conceituado, por certo permite muitas leituras e polêmicas. Também permite críticas negativas argumentando sobre a falência da alta cultura, sobre os sintomas da obra de arte inexistente na pós-modernidade, do culto à futilidade, à submissão feminina, ao fetichismo da mercadoria. Ou, talvez, exposições como esta do Victoria & Albert Museum sejam apenas sinais bem característicos do tempo enigmático em que vivemos.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Fetiches à mostra. In: _____. Blog Semióticas, 20 de abril de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/04/fetiches-mostra.html (acessado em .../.../...).


Para uma visita à exposição do Victoria & Albert Museum,  clique aqui.














Fetiches à mostra: Sophia Loren na capa
da revista Life em setembro de 1966,
fotografada por Alfred Eisenstaedt
durante as filmagens de
Matrimonio all'Italiana, filme
de Vittorio De Sica, e vestindo peças
de lingerie criadas exclusivamente para ela
por Pierre Balmain em Les Millionaires,
comédia com direção de Anthony Asquith e com
Petter SellersVittorio De Sica no elenco, um dos
maiores sucessos de bilheteria de 1960. A canção tema
do filme, Goodness Gracious Me” (Zoo Be Zoo Be Zoo)
que permaneceu mais de um ano como Top 5 na Inglaterra,
nos Estados Unidos e em outros países, foi o primeiro grande
sucesso de George Martin, que depois seria o produtor musical
dos Beatles. Também acima, pôster publicitário criado por
Hans Schleger para Charnaux Patent Corset Co. Ltd
em 1936. Abaixo, uma seleção das galerias da exposição
no Victoria & Albert Museum em Londres













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