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4 de fevereiro de 2017

Cenas de Sinequismo







Eu tenho pouco a dizer sobre magia. Na verdade eu acho

que nosso contato com o sobrenatural deve ser feito em

silêncio e numa profunda meditação solitária. A inspiração,

em todas as formas de arte, tem um toque de magia porque

a criação é uma coisa absolutamente inexplicável.


(Clarice Lispector. Trecho do discurso elaborado para o

Congresso Mundial de Bruxaria que foi realizado em 1975

em Bogotá, Colômbia. Clarice escreveu mais de uma versão

para o discurso, mas decidiu não ler nenhuma no evento)


   
 
Há algumas fotografias, bem como grafites e outras expressões da chamada “arte de rua”, que podem ser destacados como modelos exemplares para aqueles fenômenos que o principal teórico da Semiótica, Charles Sanders Peirce (1839-1914), define com o conceito de “sinequismo” –– ou seja, a representação do “continuum” que produz o sentido. O conceito encontra similaridades e aproximações com outras formas que o senso comum nomeia como ilusões de ótica, incluindo estados alterados de percepção que a psicologia e a psiquiatria denominam como pareidolia ou apofenia”. Nos termos descritos e desenvolvidos pela concepção metafísica de Peirce, o sinequismo tem um alcance epistemológico e ontológico, indicando a possibilidade de formulação de hipóteses ou interpretações que envolvam a ideia de continuidade tanto para a produção como para a potencialização de sentido em determinados aspectos e circunstâncias de espaço, tempo, sentimento e/ou percepção.

O conceito de sinequismo vai encontrar, nos pressupostos da semiótica de Peirce, uma complexa rede de argumentos sobre a lógica dos procedimentos de raciocínio ou dos significados pragmáticos que a mente estabelece diante de cada fenômeno. Sobre tal complexidade vale reproduzir aqui alguns trechos brevíssimos extraídos do seu imenso arcabouço teórico. Em primeiro lugar, segundo Peirce, “assim como afirmamos que um corpo está em movimento, e não que o movimento está em um corpo, do mesmo modo devemos dizer que nós estamos no pensamento, e não que os pensamentos estão em nós”, conforme citado em “Collected Papers” 5.289, 1868 (observação: para citações dos "Collected Papers" de Peirce, convencionou-se que o primeiro dígito refere-se ao volume e, após a pontuação, o número do parágrafo; o trecho citado, portanto, foi extraído do volume 5, parágrafo 289, datado de 1868). 















Cenas de Sinequismo: no alto, “Afro Taino”,
grafite assinado pelo artista Gabriel Abreu
em San Cristóbal, província da República
Dominicana, na América Central. Acima,
grafite anônimo na cidade de São Paulo
fotografado em 22 de janeiro, data em que
o prefeito recém-eleito, João Dória (PSDB),
tomou a decisão criminosa de mandar cobrir
com tinta cinza todos os grafites, incluindo o
maior mural de arte urbana da América Latina
que estava localizado na Avenida 23 de maio e
foi inaugurado no início de 2015, com 15 mil
metros e com obras de mais de 200 artistas,
entre eles OsGêmeos, Nina Pandolfo, Nunca,
Finok e Zefix. Também acima, uma intervenção
de Banksy de 2013 em um muro no distrito de
Highburyao norte de Londres, cria uma
sugestão erótica a partir da presença da
vegetação sobre o muro.

Abaixo, grafite do artista Vyrüs em Calais,
cidade do norte da França, reunindo arte
com detalhes da natureza e da arquitetura
das ruas; e duas versões para a figura
da Medusa, clássica personagem da
mitologia grega: em uma instalação doméstica
com um vaso de suculentas; e na recriação
de Vik Muniz com molho de tomate e
espaguete, Medusa Marinara, obra
e fotografia de 1999
















 


O mesmo conceito de sinequismo vai representar a expressão de continuidade entre o mundo representado pelos signos da cultura humana em sua equivalência com os signos da natureza, ou seja, aqueles objetos ou relações materiais que, na sua origem, independem do princípio gerativo da intervenção humana. Nas palavras de Peirce: “Tudo o que está presente para nós é uma manifestação fenomenológica de nós mesmos. Isso não impede que seja também um fenômeno de algo fora de nós, assim como o arco-íris é ao mesmo tempo uma manifestação do sol e da chuva. Quando pensamos, então, nós mesmos, como somos naquele momento, aparecemos como signo” (CP 5.283).



Relações de causa e efeito



Na sua origem, a palavra “sinequismo” vem da Grécia da Antiguidade e significa “continuidade”, podendo também ser considerada como o contrário de “tiquismo”, que poderíamos, seguindo as formulações de Peirce, traduzir por “acaso”. O sinequismo estabelece relações de causa e efeito para produzir ou potencializar o sentido, enquanto o acaso seria aquele resultado não provocado ou que tenha surgido por processos indeterminados de geração espontânea. Em outras palavras: para haver sinequismo, estará envolvida no processo uma determinada intenção para a produção do sentido. Assim como as hipóteses e as interpretações são ideias ou ações que operam em sinequismo, o acaso pode ser considerado como a manifestação de algo cuja ocorrência tenha formas ou consequências injustificáveis.












Cenas de Sinequismo: no alto, grafite de rua do
artista Paul Deej na cidade de Perth, Austrália.
Acima, cobertor de plantas para o garoto que
dorme nas ruas, mural de Daniel Cortez criado
para o Numu Festival em Imbabura, norte do
Equador, na região dos Andes, tendo ao fundo
o vulcão Imbabura; e uma das gravuras mais
conhecidas de Mondrianpioneiro da Abstração,
Composition with Yellow, Black, Blue, Red and
Grayde 1921, adaptada por um artista anônimo
em Caracas, Venezuela, na favela de Petare
– que conta com mais de 800 mil moradores e
é apontada como a maior favela da América
Latina, ocupando um território três vezes
maior que a favela da Rocinha, localizada
na zona sul no Rio de Janeiro.

Abaixo, uma das criações da fotógrafa e
artista russa Helga Stentzel, que usa roupas
no varal e outros objetos cotidianos para
construir imagens surpreendentes; dois grafites
anônimos no chão da praça Marília de Dirceu,
em Belo Horizonte, em fotografias de 2010:
no primeiro, uma menina em coreografia de
torcida; no segundo, que surgiu no mesmo
local, um mês depois, substituindo o primeiro,
dois dançarinos em estilo "black power".

Também abaixo, Resistance, grafite anônimo
em fotografia de 2012 em Paris, França; e dois
exemplos que podem ser definidos por "pareidolia",
"apofenia" ou "sinequismo" (quando há intenção
de fazer uma representação de arte em
continuidade com o ambiente): um rochedo
gigantesco que lembra a forma de um elefante
em Tangaporutu Beach, Nova Zelândia; e uma
distorção ou ilusão de ótica reforçada pelo ângulo da
fotografia, sugerindo um cachorro gigante onde
na verdade há apenas um homem na neve
diante do topo de Musala, a montanha mais alta
da Bulgária e do sudeste da Europa. Também
chamada de “Deusa adormecida”, o nome da
montanha vem de “Mus Allah” (Montanha de Alá),
uma herança do Império Otomano que dominou
toda a região desde a Idade Média e até
a Primeira Guerra Mundial







 























Os processos de sinequismo e tiquismo engendram um terceiro sistema: o “agapismo”, também referido por Peirce como “lei do amor evolutivo”, como “busca de um interpretante final” ou como “lógica da investigação conscientemente aplicada”. Algo que a sabedoria popular e o senso comum traduzem em crenças como “só vemos o que queremos ver”. O conceito de sinequismo desenvolvido por Peirce, aliado à teoria das formas ou “gestalt”, desenvolvida por seu contemporâneo Cristian von Ehrenfels (1859-1932), filósofo austríaco, também fundamenta a percepção dos sintomas patológicos de ilusão de ótica descritos como “apofenia” ou “pareidolia” nos compêndios médicos de psicologia e psiquiatria, no que se refere às ilusões ou distorções do padrão cognitivo associados a psicoses e à esquizofrenia.

Os fenômenos que são descritos, muitas vezes como sintoma de patologia, como apofenia ou pareidolia, estão presentes em muitos casos de paranormalidade e de percepções de temas do imaginário religioso, especialmente nos casos de faces de personagens religiosos avistados em vidros de janelas, em fotos de fogueira, em fatias de pães torrados, em pratos de sopa etc., mas há uma distinção muito nítida entre os casos de apofenia e pareidolia em oposição ao que Peirce chama de sinequismo: é importante perceber, nos fenômenos que merecem o nome de pareidolia ou apofenia os componentes de acaso, de coincidência, ou mesmo de "delírio" psíquico ou de "inexplicável". Nos casos de Sinequismo, ao contrário, não há apenas o acaso e sim a "intenção" de provocar determinado sentido. Nos caos da construção artística é até mais fácil perceber tal intenção para construir a semelhança ou para a produção do sentido.

Na origem, os termos sinequismo, tiquismo e agapismo, em consonância com as categorias definidas pelas tríades de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, no complexo arcabouço teórico que Peirce apresenta, fundamentam o crescimento contínuo, a criatividade, a variedade e a diversificação entre nossos conhecimentos e nosso pensamento em relação às leis universais da natureza. Nos pressupostos da teoria semiótica formulada por Peirce, o sinequismo, de forma muito específica, também vem a ser considerado como uma ocorrência do procedimento de “abdução”, ou seja, uma espécie de hipótese extremamente criativa que surge de forma involuntária, ou um tipo de raciocínio, instintivo e intuitivo, baseado na afinidade de nossa mente com a natureza e capaz de proporcionar, até mesmo de maneira não consciente ou não racional, um conhecimento realmente novo –– identificado, portanto, como uma “invenção” ou uma “descoberta”. Para Peirce, assim como para Platão e outros sábios desde a Antiguidade Clássica, a natureza deve ser sempre tomada como parâmetro para o pensamento porque ela é a mais perfeita entre todas as obras de arte.













Cenas de Sinequismo: acima, Ballerina, arte
pintada delicadamente em 2012 pelo misterioso
artista do grafite Banksy, com spray, a percorrer
a parte de trás de um quadro não identificado do
Museu Britânico, em Londres, sobre o fio que
surge como se fosse uma corda bamba; um
mural de setembro de 2001 do artista francês
Nicolas de Crécy em Manhattan, Nova York;
e uma imagem que viralizou na internet: um
pôster promocional instalado por um cirurgião
plástico ao lado do elevador no saguão do prédio
onde está sua clínica em Beverly Hills, Califórnia.
No pôster, um detalhe da obra renascentista de
1511 de Michelângelo que representa Deus
criando o primeiro homem e, abaixo da
imagem, o slogan "nascer de novo"
e o nome da clínica.

Abaixo, publicidade da American Disability
Association (Associação norte-americana de
pessoas com deficiência) nas escadas de acesso
ao Metrô de Nova York alerta: “para alguns,
é o Monte Everest. Ajude a construir mais
instalações para deficientes”. Também abaixo,
um esqueleto em rosa choque criado em uma
grade de esgoto de rua no bairro de Trastevere,
em Roma, Itália, em fotografia de 2012; o cubo
mágico (Rubik's Cube) que surge à beira mar
em uma praia de Haia, na Holanda, em arte
e fotografia de 2012 de Bart van Damme;
Alienarte e fotografia de 2008 nas
ruas de Parma, Ohio (EUA), em criação
do grafiteiro e designer Joe Baran



















Cruzamentos entre códigos



Sobre este aspecto da cultura humana coexistir em relação permanente, e sempre dependente, ao grau de perfeição das leis da natureza, Peirce escreveu: “O universo como um argumento é por força uma grande obra de arte, um grande poema – pois um belo argumento é sempre um poema, uma sinfonia – da mesma forma que o verdadeiro poema é sempre um argumento significativo. Comparemo-lo antes com uma pintura – com uma marinha impressionista” (CP 5.119).

Nas imagens de grafites e fotografias reproduzidas e apresentadas como exemplificação neste artigo, destacamos a presença do sinequismo nas relações de sentido e de representação que são produzidas por meio dos cruzamentos entre vários códigos. Tais cruzamentos, conforme as sínteses dos conceitos e teorias de Peirce apresentadas por Umberto Eco em obras fundamentais como “Tratado Geral de Semiótica” (1976), “Semiótica e Filosofia da Linguagem” (1984) e “Os Limites da Interpretação” (1990), entre outras, podem ser verificados no processo de generalização das sensações particulares, vividas por cada um de nós, quando estamos em busca pelo significado de uma determinada obra.















Cenas de Sinequismo: no alto, arte e instalação
de 2013 do artista turco Mehmet Ali Uysal no
parque de Chaudfontaine, na Bélgica, utiliza
um pregador gigante de três metros de altura.
Acima, Caravane, grafite de 2011 do artista
conhecido como OakOak nas ruas de Paris.

Abaixo, grafite anônimo no bairro Floresta,
em Belo Horizonte, Minas Gerais, em
fotografia de 2013; e o mural batizado
de Tanuasú, Tierra y Noblezacriado
por Matías Mata, membro do coletivo
Sabotaje al Montaje, em julho de 2016,
durante o Festival de El Paso
em La Palma,
nas 
Ilhas Canárias, arquipélago espanhol
situado no Oceano Atlântico, ao leste da
costa do Marrocos, na África











O significado, construído na relação permanente entre signos, objetos e interpretantes, vai brotar da percepção de um plural de possibilidades e, por meio da comunicação, poderá produzir o sentido compartilhado ou coletivo, contínuo, tanto na vida cotidiana como na experiência científica, na formulação filosófica ou na criação artística. Exatamente porque depende de vários, e não apenas de um único código, o significado só pode ser representado como um sistema dinâmico: está sempre em movimento permanente, em toda e qualquer circunstância, sob todos os aspectos.

Em tal multiplicidade é que as relações entre acaso e significado, essenciais à progressão das artes e das ciências, também irão aproximar o conceito de sinequismo a outros fenômenos cognitivos, muito similares entre si, tais como aqueles estados que a psicologia e a psiquiatria denominam como pareidolia ou como apofenia: aquela percepção de padrões familiares em sistemas vagos e aleatórios de imagens ou de sons (por exemplo, o reconhecimento de uma forma que lembra um rosto humano em uma paisagem ou a descoberta de uma nuvem no céu que sugere a figura de um animal, comuns em situações ilusórias passageiras, tais como as chamadas ilusões de ótica, mas também às crenças supersticiosas e aos estágios patológicos com viés cognitivo).



Relações de signos simultâneos



Ou seja: as relações permanentes entre a obra e o seu contexto histórico, social e cultural, permitem à arte e à ciência a descoberta cognitiva de elementos que significam e ressignificam não apenas a leitura da própria obra, mas também o signo exterior –– inscrito no âmbito do imaginário social –– que passa a ter com a obra uma determinada ligação ou relação. De novo estamos diante do conceito de sinequismo: nas imagens apresentadas, o significado, ou antes a produção de sentido, está, na verdade, no cruzamento que resulta de pelos menos três signos simultâneos:

1° signo –– a vegetação, ou a estrutura física, ou o condicionante material que já existia naquele contexto antes da iniciativa da representação;

2° signo –– o ângulo da fotografia, ou a perspectiva do desenho ou da pintura, ou a intervenção artística que tomou aquele determinado material como seu objeto para a representação;

3° signo –– a obra (o 1° signo somado ao 2°) que se apropriou da vegetação, ou do espaço, ou do contexto material pré-existente para produzir ou potencializar um sentido.



















Cenas de Sinequismo: no alto, convite à
arte e alerta sobre a preservação ambiental
em Värikynä (lápis de cor), duas intervenções
e fotografias de 2011 de Jonna Pohjalainen,
artista da Finlândia. Acima, Twelve Twigs
(Doze galhos) arte e fotografia de 2012 de
Chris Kenney; e dois murais de autores
diferentes, em países diferentes, que
compartilham a mesma ideia –– a partir do alto, 
arte de novembro de 2014 na fachada de um
prédio em Esteponana província de Málaga,
Espanha, criação de José Fernandez Ríos;
e uma arte de setembro de 2013 de
Natalia Rak na fachada de um prédio em
Bialystok, cidade do nordeste da Polônia.

Abaixo, uma seleção de imagens do
portfólio do fotógrafo britânico Denis Cherim
que registram momentos decisivos” e foram
premiadas em outubro de 2016, em Londres,
durante o festival Parallax Art Fair












Esses pressupostos da semiótica da comunicação, apresentados em sua complexidade e variedade nos argumentos de Peirce, que foram tão mal recebidos e tão pouco compreendidos em seu tempo, no final do século 19 e na primeira metade do século 20, surgem agora, na contemporaneidade, como parâmetros transdisciplinares fundamentais nos quais a noção de signo é definida, simultaneamente, como meio e como mensagem –– por onde a informação perpassa e se desenvolve de forma múltipla e potencialmente ilimitada. Estranhamente, são esses mesmos parâmetros transdisciplinares que ganham cada vez mais os holofotes, em destaque, com a proliferação dos sistemas de Inteligência Artificial, dos algoritmos e das mídias digitais e interativas nestas primeiras décadas do século 21.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Cenas de Sinequismo. In: Blog Semióticas, 4 de fevereiro de 2017. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2017/02/cenas-de-sinequismo.html (acessado em .../.../…).


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