25 de outubro de 2011

Vovó vai à guerra







O que é o som senão a polifonia de todas vozes do 
cosmo e do homem? O cinema de Alexander Sokurov 
fala sem parar, só que ele não o faz apenas por palavras. 

–– Philippe Roger, “La poétique sonore de Sokurov” (2009).   






Pode parecer estranho, mas é um filme de guerra sem cenas de guerra. Poucas vezes na história do cinema, contudo, a vida cotidiana de um exército em guerra foi tão presente e tão angustiante. Em cena, Alexandra Nikolaevna (a "diva" de outras épocas Galina Vishnevskaya, mais conhecida pelos apreciadores da música erudita, cantora de ópera e viúva do célebre violoncelista e maestro Mstislav Rostropovich), em performance comovente, impecável, é uma velha senhora que chega da Rússia para visitar e matar as saudades do neto, capitão num acampamento militar em algum lugar na Chechênia. A situação é, no mínimo, extremamente original: porque gente como aquela velha senhora não visita campos de guerra nem nos filmes e nem na vida real.

A presença solene de vovó Alexandra em pleno acampamento do exército russo é um corpo estranho, ainda mais que ela tenta modificar aquela rotina abrutalhada de poucos sorrisos, pouco sentimento e poucas palavras. Com um título enigmático que evoca tanto o nome do diretor, Alexander Sokurov (que nos créditos do filme aparece com a grafia Aleksandr Sokúrov ou em outras variações, dependendo do idioma ocidental que traduz a grafia do idioma russo), como aquele lendário centro de saber do passado remoto (e, não por acaso, tendo como cenário de guerra o mesmo território em que morreu, três séculos antes de Cristo, o mítico Alexandre, o Grande – talvez o mais célebre de todos os conquistadores da Antiguidade), "Alexandra" completa a trilogia familiar que o cineasta russo iniciou na década de 1990, com o comovente "Mãe e Filho" (1997), seguido depois por "Pai e Filho" (2003).

Na trilogia, realizada de forma intercalada no período de 11 anos em que o cineasta realizou um total de 13 filmes, o belo e profundamente angustiante "Alexandra" foi precedido por filmes a seu modo também enigmáticos. Em “Mãe e Filho”, Alexander Sokurov retrata o final da vida de uma mãe, idosa e adoentada, com o filho mais novo, dedicado e fragilizado, que cuida dela em uma jornada por paisagens oníricas, isoladas do resto do mundo, entre paradas momentâneas por estradas sinuosas e na volta para casa. Em “Pai e Filho”, o olhar alegórico do diretor e roteirista aborda uma relação das mais intensas e pouco comum: um breve período na vida de afetos extremos entre os dois personagens, que às vezes parecem irmãos, às vezes parecem amantes, isolados num pequeno apartamento de uma cidade à beira-mar. A exemplo do pai, o filho gosta de esportes, tem problemas com a namorada e é aluno de uma escola militar. 










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Com tantas simetrias com os filmes anteriores do cineasta russo, um dos grandes realizadores do cinema de nossa época, "Alexandra" (2008) poderia se chamar "avó e neto": a percepção silenciosa da velha senhora nos cenários de guerra, claustrofóbicos, melancólicos, opressivos, guia o olhar do espectador – que vê, ouve e acompanha tão somente o que vovó Alexandra percebe, vê, ouve com uma dignidade a toda prova.



Guerra sem fim



Em torno da figura por vezes frágil, por vezes imponente e grandiosa daquela velha senhora, Sokurov constrói seu relato de ficção na fronteira dos documentários mais realistas, que têm o ritmo da vida real. Atormentados pelo mau cheiro, pelo calor excessivo e pela violência permanente, o batalhão de soldados que recebe a visita inesperada da vovó Alexandra prossegue, quase indiferente, nas maquinações alucinadas de uma guerra sem fim e de objetivos tão incertos como insanos, como todas as guerras.











No curto espaço de tempo em que acompanha a rotina do alojamento militar, vovó Alexandra encontra o silêncio, entrecortado vez ou outra pelas explosões que reluzem no horizonte. Observa cada soldado, cada rosto, mas se recusa a entender o que o conflito significa. Em um breve diálogo com o comandante da tropa, depois de caminhar a esmo pelo labirinto de tendas e tanques do acampamento, ela questiona: "Vocês só sabem destruir? Quando aprenderão a reconstruir?" Não obtém nenhuma resposta.

Em outro raro diálogo, tão breve quanto revelador, Alexandra pergunta ao jovem da Chechênia que a acompanha, no trajeto de volta da vila em ruínas para o acampamento militar: "O que você pediria a Deus?" Na dúvida, o jovem, que está sofrendo na pele as agruras dos bombardeios e invasões do exército russo, responde, tomado pelo desencanto, desolado: "Liberdade". Vovó Alexandra não concorda e aconselha: "Peça sabedoria".

















Família de militares



Dos breves momentos da relação instável e afetiva que Sokurov flagra no acampamento de guerra, entre o neto militar e sua querida "babushka", imagens poéticas e nostálgicas, comoventes, vêm à tona. Em um destes momentos, imprevisto, o capitão cede, vai às lágrimas, penteia os cabelos da avó com todo afeto e, por fim, a toma nos braços, numa inversão da pose clássica ao estilo "Pietá". É quando vovó Alexandra ganha um tom de grandiosidade, soberbo, que faz o espectador mais cinéfilo lembrar de figuras como Anna Magnani, a diva italiana comovente dos clássicos do neo-realismo na época da Segunda Guerra.

Sokurov, cineasta do primeiro time, faz mais um de seus belíssimos filmes, contemplativo e sofrido, alegórico, sobre silêncios e sobre uma extensa galeria de rostos sem identidade e sem história para contar. Nome principal do cinema russo na atualidade, hábil nas artimanhas da ficção e na realização de documentários, considerado por muitos o melhor sucessor de Andrei Tarkovsky (1932-1986), de quem foi amigo, assistente e aprendiz, e também de outros mestres do porte de Aleksandr Dovjenko, de Dziga Vertov, de Serguei Eisenstein, Sokurov nasceu na Sibéria, numa família de militares – motivo pelo qual é irresistível procurar por aspectos autobiográficos no que ele dá a ver em "Alexandra" e em outras de suas obras-primas no cinema.








Vovó vai à guerra: Galina Vishnevskaya 
e Alexander Sokurov fotografados no
set de filmagens de "Alexandra"












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Pelo olhar de vovó Alexandra, tudo são destroços de guerra, tudo é desilusão e solidão. Mas ela resiste, em sua mistura de coragem e incertezas, entre silêncios. Em outra cena emblemática, a velha senhora caminha sem aviso para um mercado na cidade vizinha ao acampamento militar e, aos poucos, é tomada de simpatia por uma mulher chechena que ela não conhece e que nunca viu antes. A mulher leva Alexandra para a sua casa, um prédio bombardeado, entre ruínas, onde ela serve com cuidado e com receio uma xícara de chá. A cena de civilidade e hospitalidade em meio ao caos e à miséria da guerra comove e impressiona a personagem e ao espectador de Sokurov que assiste a tudo com uma incerteza de emoções e surpresas.



Sensação de descoberta



Hábil na condução do som e da imagem, Alexander Sokurov deixa no espectador uma sensação de descoberta e de algo novo, apesar das tantas sequências em que quase nada acontece. Lembra um poema que nos toca por algo intangível no intervalo das palavras ou um conto curto, daqueles que se lê em minutos e que depois permanece no pensamento por um longo tempo. A diferença: o que Tolstoi, Dostoiévski, Turgev, Tchekov e outros mestres da literatura russa fizeram no século 19 com a caneta e palavras, Sokurov faz com as imagens, com a câmera e com a montagem, que em seus filmes sempre levam à reflexão permanente e ao silêncio, praticamente abrindo mão de narração em palavras e da tradição dos diálogos.

























Na paisagem de guerra de "Alexandra" não há cenas de batalha ou tiroteios. As explosões se ouve apenas ao longe, quase um eco, quase imperceptíveis. E há uma estranha poesia no olhar de Alexandra, que a tudo observa com alguma ternura. Em outro breve diálogo, um militar graduado pede para que ela, durante sua breve estadia no acampamento de guerra, não perturbe os jovens recrutas. Na sequência, ela se aproxima de um deles e recomenda, quase sussurrando: "Ei, não deixe sua raiva consumi-lo. Em vez disso, aprenda a ser um bom garoto."

A construção dramática de Sokurov parece calculada para que cada espectador faça as pontes entre Alexandra e as metáforas que ela representa: a avó, a mulher, a Rússia. É uma figura pensada para simbolizar, pelo contraponto, a banalidade da guerra e suas consequências entre os soldados, entre as famílias, entre as nações, entre cada um de nós e nossos afetos, nossas lembranças pessoais mais emotivas.

Da primeira à última cena, o cenário desolador e sombrio que Sokurov retrata pelos olhos da velha senhora parece fugir para além da Chechênia, para além dos mapas dos territórios e fronteiras instáveis do leste europeu, para além de qualquer posição ideológica demarcada. Sua reflexão melancólica alcança as raízes irracionais da intolerância e de todas as guerras e as feridas, físicas e psíquicas, que cada uma delas inevitavelmente vem provocar.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Vovó vai à guerra. In: Blog Semióticas, 25 de outubro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/10/vovo-vai-guerra.html (acessado em .../.../…).



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11 comentários:

  1. Fiquei emocionada com esta página sobre o filme Alexandra, meu querido José, e olha que nunca assisti a um filme do Sokurov. Lembrei de minha avó e de outros filmes que tiram a gente do chão e levam para o espaço... Seu texto e sua bela edição de imagens comprovam qualidade e sofisticação a toda prova, e prova que a grande arte diz o indizível, exprime o inexprimível, traduz o intraduzível.
    Parabéns e vida longa a este blog incrível. Muito obrigado pela gentileza de compartilhar. Grande abraço para ti!

    Aline Maria Mendes

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  2. Belíssimo texto! Também nunca vi os filmes do Sokurov, mas seu texto desperta um grande desejo de começar por Alexandra.
    Parabéns e sucesso ao blog.

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  3. "Vocês só sabem destruir? Quando aprenderão a reconstruir?" Construir 'e uma arte que poucos buscam.(Nao consigo achar os acentos no teclado gringo, to puto. Mas vou seguir o exmplo da vovo e transformar minha raiva em outra coisa, kkk) Fazer um filme de guerra sem cenas de guerra 'e incrivel. Sair do cliche bomba, helicopteros, "Eu vou te salvar, sou um heroi!!) No caso do Sokurov, a vovo 'e o heroi. Muito doido, pois quem iria imaginar que o heroi nao precisa ser jovem, bonito, forte, usar a cueca por cima da calca(no caso do superhomem) O barato esta nas "entrelinhas". Continuarei estudando(tentando achar as entrelinhas dos meus roteiros) e quem sabe um dia receber uma critica sua, caro Jose! Aqui nesse blog fantastico. Vou esperar por esse filme e 'e claro pelos proximos de Sokurov. Abrs
    Walfried Weissmann

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  4. Meu querido José Orlando suas palavras sempre serenas, carregadas de conhecimento e astucia me fazem faltam, mas logo me recupero desse sentimento de saudade quando me vejo surpreendido por esse texto incrível falando a respeito de uma relação entre os opostos, como você mesmo disse no inicio do texto, é um cenário de rotina abrutalhada de poucos sorrisos, pouco sentimento e poucas palavras convivendo com uma figura, que em minha opinião na sua maioria, emana ternura e afeto. E essa sensação fica mais forte quando nos deparamos com toda alma do filme resumida em sua capa e enxergamos essa oposição apenas em uma imagem. Estou no mínimo ansioso para assistir o filme e conferir de isso tudo de perto. Forte abraço.

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  5. José Orlando, que maravilha de blog, meu amigo. Quando falaram do seu blog Semióticas achei que fosse mais um daqueles blogs de rascunho, apressados e que repetem o que se vê nos jornais do Rio e de São Paulo e na TV. Mas nada disso. Seu blog é uma revista eletrônica da melhor qualidade, com assuntos sofisticados, personagens surpreendentes, seus textos maravilhosos e edição inteligente.
    Aliás, seu blog é surpreendente. Comecei por esta página sobre o filme do Sokurov (Soukurov?) e não parei mais. Vou ter que voltar muitas outras vezes. Que maravilha...
    Dizem que a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios e que por isso quem é vivo deve cantar, chorar, dançar, amar e sorrir intensamente antes que a cortina se feche. No seu caso, não sei o que dizer, pois a peça de teatro é só sucesso: jornalista brilhante, professor amado por todos os alunos, amigo de caráter invejável...
    Deus te abençoe, meu caro.
    Vida longa e prosperidade, é o que posso desejar.
    E obrigado por proporcionar tanto conhecimento e por ter a gentileza de compartilhar. Parabéns!

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  6. As páginas de seu blog são um espetáculo, José Orlando, especialmente as que tocam em cinema, como esta sobre o filme do Sokurov. Quero ler outros textos seus sobre cinema. Como faço? Tem outros em outro blog? Manda aqui alguma página. Quem sabe Glauber e o cinema novo no Brasil? Ou a Nouvelle Vague de Godard e Truffaut? Ou os italianos, Fellinni, Rossellini, Bertolucci... Aguardo para ler e mando parabéns pra você, porque seu trabalho está incrível. Virei fã. Grande abraço!

    Fernando Silveira

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  7. Cheguei agora por essa matéria sobre Sokurov e viajei. Com estas imagens lindas e seu texto conduzindo o pensamento, entendo perfeitamente tantos elogios. Parabéns demais, meu querido autor do blog Semióticas. Seu trabalho é sensacional. Eu também virei fã.

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  8. José Alexandre de Moraes4 de novembro de 2014 às 08:46

    Parabéns por esta e por todas as outras belíssimas matérias que encontrei por aqui. Show!

    José Alexandre de Moraes

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  9. Manoel de Almeida Nagib5 de novembro de 2018 às 10:53

    Tudo o que já assisti de Sokurov é obra-prima de grande impacto. Este seu artigo consegue traduzir muito deste impacto em palavras e imagens de sabedoria e beleza. Parabéns pelo alto nível. Manoel de Almeida Nagib

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  10. Gostei imensamente do filme do Sokurov e encontrar este seu artigo sobre ele foi uma alegria, porque me ajudou a entender ainda mais "Alexandra" e a arte do Sokurov. Muito obrigado por esta beleza.

    Maurício Botelho

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  11. Uma amiga que sabe do meu amor por Sokurov enviou o link para este blog Semióticas e é a minha melhor descoberta neste ano novo. Muito obrigado por compartilhar. Maravilhosa postagem. Parabéns pelo blog que é um espetáculo em tudo.

    Ana Regina Alves

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